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POSSIBILIDADE E JOGO: QUASE E COMO – SE

O tema da neutralidade está intimamente ligado ao tema da possibilidade. Entender a fantasia como “consciência de possibilidade” é entendê-la como uma vivência no modo do “como se” (Als-ob) ou do “quase” (quasi). As vivências neutras não tem nada de validade efetiva, mas somente instauram-se na validade do como se. O modo de doação no como se ou quase surge a partir da modificação da apreensão intencional, mas também da modificação da crença com a neutralidade. Na modificação de uma consciência perceptiva à fantástica na consciência interna do tempo, esta passagem no campo temporal permite pensar a fantasia como consciência quase-presente, este quase tem a ideia do mundo fantástico fora do tempo, neutralizado da presença do fenômeno. A modificação em seus vários níveis faz abrir um campo de possibilidade. Sobre a possibilidade e a fantasia diz Fink: “Face às estas imaginações localizadas, referidas ao mundo factual, há as imaginações ditas puras que seguem seu próprio caminho no jogo aberto das possibilidades.”394

Nas Ideias I, Husserl explica haver uma divisão nas modificações posicionais, entre posição atual e posição potencial. A presença atual da vivência pode ser modificada em presença possível do vivido como imagem quase-presente. O ser percebido é realmente presente, o ser imaginado é quase-presente. A diferença de uma vivência como ser realmente presente e uma vivência imaginária, é que esta, apesar de ter o mesmo conteúdo, carateriza um ser quase-presente, isto é, um ser como pura imagem. Os vividos de reflexão imanente ou percepções imanentes atingem o ser atual de seus objetos, esta reflexão dispõe o ser. Percepção se refere à coisa aparecendo como presente e viva, mas também indica que o eu se apercebe e atinge a coisa que aparece como sendo verdadeira. A atualidade da

393 SARAIVA. A imaginação segundo Husserl. P, 248.

394 Na tradução francesa consta o termo imaginação, contudo utiliza-se

posição de existência é neutralizada na consciência perceptiva do retrato, do fictum. A consciência atinge a coisa não como real, mas sob a modificação do quase. A posição atual é convertida numa posição de quase. “Toda vivência de fantasia como esta não é caracterizado como existindo efetivamente no presente, mas

quase existindo no presente”395.

O como se surge também na neutralização de recordações, pois as recordações doam seu objeto como posicionais. Diz Husserl: “Há consciência do fantasiado, mas não como ‘efetivamente’ presente, passado ou futuro, ele apenas ‘se vislumbra’ como tal, sem atualidade da posição”396. A neutralidade é sinônimo de modo de aparecimento no como se. E o como se é o modo operacional da fantasia em seu mundo próprio. Pode-se dizer que um mundo imaginário corresponde à unidade do tempo de uma experiência possível.

Nos manuscritos do volume XXIII, reúnem-se vários períodos dos textos de Husserl, o que permitir ter uma visão alargada da evolução do tema em obras publicadas, como por exemplo, nas Investigações Lógicas, Lições do tempo, Ideias I,

Meditações Cartesianas. No período até 1905, fala-se de

possibilidade da fantasia sob a via do conceito de flutuamento e fantasma. O flutuamento é o termo para designar a falta de existência de realidade do ficcionado, indica que a imagem não está no mundo como algo espaço-temporal, mas flutua diante da consciência. Este flutuar tem o sentido de não existência real, e sim existência irreal ou ficcional dada na fantasia. “Eu me represento o castelo de Berlim, isto quer dizer, que eu o torno representado uma imagem, a imagem me flutua no espírito”397. Outro exemplo: “A pirâmide do estereoscópio só aparece como um nada e não como intenção caída, como fenômeno de posição, mas ao contrário como qualquer coisa, flutuando simplesmente no espírito: sem posição” 398. Aqui, deve-se recorda a diferença entre

fictum e imagem. O fictum é a imagem perceptiva e a imagem é

correlato da fantasia. O fictum aparece diretamente na unidade da realidade efetiva, tal como no exemplo do boneco de cera.

395 HUSSERL. Ideias I. § 113. 396 HUSSERL. Ideias I. § 113. 397 HUSSERL. Phantasie. Nº 1, § 11. 398 HUSSERL. Phantasie. Apêndice L.

O fantasma tem a Ideia de tornar irreal a apreensão da fantasia, mas este termo é suprimido após a ideia da neutralidade. Sobre o fantasmar e sua condição de não realidade: “Ora fantasmar não é fazer experiência, um individual fantasmado não é um individual dado. O conteúdo individual de fantasia não é conteúdo efetivo, falar do dado do conteúdo da fantasia é um propósito que modifica”399. Esta modificação é a mudança da neutralidade ao modo do como se.

Os termos “como se” e “quase” apesar de terem o mesmo sentido possuem uma diferença de uso. Husserl dedica um parágrafo para falar desta diferença desvendada no título: “O quase da reprodução e o como se da fantasia (Das Gleichsam der Reproduktion und das Als ob der Phantasie)”400. Esta é uma interessante passagem por reunir todos os conceitos referentes à intencionalidade da fantasia e suas ramificações, tais como a reprodução de fantasia e a fantasia de percepção. Fala-se de fantasmar, irrealidade, quase, como se e possibilidade. Todos esses conceitos além de estarem relacionados ou mesmo definirem a fantasia, permitem compreender melhor como se dá o processo de compreensão da própria consciência pura em sua totalidade. A fantasia está definida como consciência irreal e o fantasmar é um conceito adquirido da leitura do conteúdo hyletico, o fantasma é o oposto da sensação, sensação esta que compõe a percepção, logo falar de fantasmar seria o mesmo que falar de uma vivencia não efetiva. Existe o quase da reprodução de fantasia, que é o quase com o mesmo sentido aplicável à consciência de imagem. Ao ter uma experiência não efetivamente, mas no modo do fantasmar, esta vale para nós como se nos fizéssemos experiência. Cita-se um exemplo para aclarar tal situação: “...que um indivíduo se toma sob nossos olhos como determinado assim e assim em conteúdo, mas somente no como se. Numa intuição viva nos olhamos os centauros, as sereias, etc; eles estão diante de nós, se expondo de tal e tal lado, mudando e dançando. Mas tudo isso sobre o modo do como se e este modo impregnado todos os modos temporais, e o conteúdo que é

399 HUSSERL Phantasie. Nº 18, [505].

400 A tradução francesa é: Le quasiment da reprodução et Le como si de La

phantasia. Em português optamos por quase, embora o termo alemão seja Gleichsam, literalmente igualmente ou mesmidade como é traduzido na sequência do texto francês.

apenas em um modo temporal”401. Na simples fantasia todas as vivencias são orientadas no modo do como se. “Toda forma desta consciência da consciência de ser que caracteriza uma experiência são por assim dizer castradas, tem admitido a forma sem força do como se da fantasia.”402 A experiência fantástica exige o modo de doação no plano do possível, este se determina pela expressão como se, que caracteriza um modo de doação neutralizada.

A teoria do jogo como abertura ao possível nos manuscritos do volume XXIII. Na fantasia perceptiva, explica-se que a passagem da experiência à fantasia é dada no modo “como se”. Explica Husserl: “Considera-se esteticamente uma bela paisagem tem valor para nós como simples decoração. A efetividade torna- se efetividade como se, torna-se para nós um jogo, os objetos aparecem, simples objetos da fantasia”403. O jogo aparece na esfera da consciência estética; por isso, os exemplos dados são muitas vezes trazidos da arte. Diz Husserl: “A arte é o domínio da fantasia colocada em forma, perceptiva ou reprodutiva”404. E ainda diz em outra citação com exemplo de imagens: “Vivemos num mundo da imagem, esse mundo não é posicionado, mas colocado fora de circuito. Os móveis não são imagens para os

fictas e na atitude do espectador vivendo no jogo, eles não são

moveis efetivos, são móveis em fantasia. Eles são aparência e tem seu conflito com a efetividade. Ora o quarto é uma ficção aberta por conflito.”405 Entre outro exemplo para falar do jogo da possibilidade aberta pelo modo como se destacam as artes do: o teatro, a fotografia, escultura, música, pintura.

Como exemplo ao parágrafo anterior sobre a arte ser uma reprodução ou percepção da fantasia, cita o teatro e como descrevê-lo fenomenologicamente através da fantasia perceptiva (como substituição da teoria da Bildbewusstsein ou consciência de imagem): “Numa apresentação de teatro vivemos no mundo da fantasia perceptiva. Resta esclarecer até onde a imagem-cópia tem função estética. Os atores produzem uma imagem, a imagem

401 HUSSERL. Phantasie. Nº 18. [505]. 402 HUSSERL. Phantasie. Nº 18. [505].

403 Negrito nosso. HUSSERL. Phantasie. Nº 18, [512]. 404 HUSSERL. Phantasie. Nº 18, b).

de um processo trágico, cada imagem de um personagem agindo. Mas a imagem de não quer dizer imagem cópia de, é preciso separar a figuração, do comediante”406. A imagem da fantasia aqui é chamada perceptiva por ter uma origem na percepção, no caso do teatro a matéria é real, mas a imagem formada é irreal. O ator é base material, a imagem é a personagem interpretada. A imagem ali não é imagem cópia como nas teorias da imaginação clássicas, como as já apresentadas no capítulo 1, mas a fantasia mesmo tendo a base material na efetividade, só doa vivência inefetiva. Esta inefetividade em todos os modos da fantasia a torna uma novidade na história da filosofia.

A consciência modificada em fantasia: não contém objetos de fantasia como ser, não há mundos de fantasia como ser. Os objetos de fantasia são objetos possíveis, os mundos de fantasia,

mundos possíveis. O que a fantasia torna representado necessita

de um livre colocar em jogo por ter uma direção fixa sobre uma objetividade como possibilidade de objeto determinado e o preenchimento deste colocar em jogo sob forma de determinação necessita de um livre fazer de determinação, da escolha do preenchimento, para que a objetividade receba uma prescrição com novas indeterminidades que são de novo livremente preenchidas. “A fantasia pura neutraliza, modifica toda crença, ela não a modaliza numa nova crença, de um ser modalizado. Ela constitui, portanto as possibilidades ideais puras.”407.

Nas Meditações Cartesianas, Husserl dedica o parágrafo 25 exclusivamente para tratar da diferença entre efetividade e quase- efetividade, a qual remete diretamente à diferença essencial entre percepção e fantasia. Sobre o conceito de possibilidade e a ligação com a fantasia: “Do lado da fantasia desponta um novo conceito geral de possibilidade, que, no modo da simples concebilidade (um figurar-se como se fosse assim), repete modificadamente todos os modos de ser, começando pela simples certeza de ser. Ele fá-lo a maneira de modos da inefetividade”408. Todos os modos da consciência, do juízo, da reflexão, da percepção, memória, tudo é pensado sob a via da modificação ao

406 HUSSERL Phantasie. Nº18, b). 407 HUSSERL. Phantasie. Nº 19, b).

modo do como se ou do quase, modo de possibilidade pura, possibilidade de sentido e de descrição.