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Período 4: Neutralização de fantasia e reprodução –

2.2 OS 4 PERÍODOS DO CONCEITO DE FANTASIA

2.2.4 Período 4: Neutralização de fantasia e reprodução –

A teoria da reprodução é definida rapidamente como dupla

presentificação188. Esta dupla presentificação significa uma dupla apreensão da mesma aparição. No n° 170 dos manuscritos, destaca-se o tema das representações de fantasia e do recordar. A fantasia é por hábito a modificação reprodutiva da percepção. E o recordar também é modificação de uma percepção anterior. Diz sobre a memória: “Ele vale também com o recordar. Eu me recordo um processo: ele está ali ‘na fantasia’ e ao mesmo tempo na crença rememorante como tendo sido ali. Mas somente aquele: eu tinha percebido é evidente. O recordar presente é uma presentificação do processo, mas a presentificação consiste nos atos que tem na reflexão o caráter de presentificações de percepções anteriores”189.

A memória entra como intencionalidade relacional das imagens que se misturam com a coisa física, aquelas imagens antes explicadas por via da consciência de imagem, e que

187 HUSSERL. Phantasie. Beilage VII. P. 147. 188 Doppelten Vergegenwäartingung.

dependiam de uma base física para impulsionar a consciência imaginativa. A imagem aparecendo em objetos físicos depende mais da memória do que da percepção como consciência de base. As imagens da recordação e da rememoração são imagens contidas na esfera da fantasia. O recordar intuitivo é denominado de presentificação190, esta intencionalidade apesar de se incluir na esfera da fantasia, não é em si mesma fantasia, mas apenas seu correlato aparece como imagem ficcional ausente, a sua diferença está na relação temporal com o passado. A presentificação de fantasia e as imagens ficcionais puras não tem base no passado da consciência, ou seja, não foram vividas anteriormente, seu objeto é sem temporalidade.

A aparição de fantasia se eu atento no presente da consciência, eu as tenho agora. O tomar atenção à aparição de fantasia é um intencionar agora a fantasma. “A possibilidade de tomar atenção não ao objeto, mas a seu aparecer, a seu ser- fantasmado como estando-ali ‘ser criado na fantasia’ faz parte da essência da fantasia”191. A possibilidade de voltar-se para a ficção mesma é uma característica intencional reflexiva da consciência pura de se voltar aos seus dados puros. O recordar é pensado através do conceito de rememorar o representativo. “No recordar, eu coloco o fantasmado’ em crença ao passado, no rememorar, o não agora (inerente a toda fantasia) representa um passado”192. A importância da memória aos estudos da fantasia é tentar compreender como as imagens da consciência do passado se relacionam com a irrealidade de sua não-presença atual. Os atos do recordar se inserem nas discussões sobre a fantasia, diz: “Na fantasia, tomada no sentido mais largo da palavra, nos encontramos também o rememorar”193.

190 HUSSERL. Phantasie. [170] n° 2, C), p, 186. 191 HUSSERL. Phantasie. [170] n° 2

192“In der Erinnerungsetzeich das Phantasierteglaubend in die Vergangenheit,

in der Wiedererinnerungrepräsentiert das NichtJetzt (das in –aller Phantasie

liegt) ein Vergangen.” HUSSERL. Phantasie. [170] n°2, p, 178.

193 “In der Phantasie, das Wortimweitesten Sinn genommen, findenwirauch

No mesmo ponto 2 sobre a reprodução, aparece um trecho194 já posterior as Lições do tempo195 que tratam justamente da leitura da reprodução na corrente temporal, entre a relação com a impressão perceptiva. “Toda reprodução é reprodução de uma impressão”196. As impressões são as partes reais da percepção. A reprodução é modificação da impressão consciente do aparecer. No ano de 1904 a 1909 a modificação recordativa de fantasia é chamada de fantasia na fantasia, um recordar de fantasia está contido nela. Husserl se pergunta: ‘temos, pois uma consciência de imagem?”197. A resposta é não. Trata-se de uma modificação de fantasia, a fantasia no recordar dela mesma, é a chamada fantasia de fantasia. Vê-se como a consciência de imagem é substituída pela intervenção do recordar no ato fantástico.

Um recordar transfere um fantasmado (um quase percebido) no passado e ordena este passado ao mesmo mundo, ao olhar precisamente do passado desse último. O gênero de sua atestação exige as passagens da fantasia à fantasia, todavia todo tempo caracterizado como recordar. A simples fantasia (fantasia perceptiva) é modificação imaginada da posição perceptiva. A fantasia de recordar é representação de fantasia de um passado em relação ao agora198. A modificação que transforma em reprodução é diferente da modificação de crença199. A primeira transforma uma impressão em reprodução. Ele é quase percepção.O quase é o caráter da reprodução, do mesmo modo ocorre com a fantasia. O recordar é consciência de ser reprodutiva. A simples fantasia é diferente da presentificação de fantasia. A primeira diz respeito a percepção e a segunda é a modificação da percepção. Numa frase pouco comum e questionável, Husserl afirma: “a fantasia é presentação quase;

194 Ano de 1908.

195 As lições para uma consciência interna do tempo (abreviado como Lições do

tempo) será o texto trabalhado no capitulo 2. O tema da reprodução como memória que substitui a tese da consciência de imagem e se conjuga com a fantasia através do conceito de presentificação e sua característica irreal, será detalhada a partir desse texto, mas com o cotejamento aos manuscritos do volume XXIII.

196 HUSSERL. Phantasie. [170]. N° 2, p, 190.

197 “Haben wir also ein BiIdbewusstsein?” HUSSERL. Phantasie. N° 2. P, 192. 198 Husserl. Phantasie. N° 3, p, 217.

presentificação estas são as diversas formas do recordar, que na sua medida tem sua modificação”200. A fantasia como consciência no modo do quase é facilmente afirmada em várias passagens dos manuscritos e outras obras, mas a Ideia de todas as formas de presentificação estarem subjugadas à memória como se ela fosse a forma de síntese entre percepção e fantasia, parece um tanto contestável diante do percurso argumentativo da obra. Se pensar na Ideia do recordar, está incluído no campo da fantasia e não ao contrário; tem-se a Ideia da semelhança entre recordar e fantasiar, ao menos, no campo da crença posicional neutralizada. A consciência fantástica teria uma modificação específica para os casos das imagens passadas, as reproduções. A tese de Fink parece estar solidificada sob a Ideia da memória como ponto de equação da fantasia, pois, para Fink, a fantasia nunca está totalmente livre da percepção, mesmo que seja sob a atenção do recordar, ela acaba por ter sempre um fundo real.

O recordar é uma consciência de um novo. O recordar tende a um escoamento, este é recordar do escoamento perceptivo anterior. Cada recordar particular consciente é membro de um vago recordar englobante, de um plano de fundo do recordar. Todo recordar tende para o antes, mas, é ponto terminal de tendências. Plano de fundo do passado relacionado com o agora. O recordar não é simples fantasia e crença vazia, mas é consciência determinada para a essência dos encadeamentos espaciais e coexistentes, fundados na percepção externa. No atentar, tem-se uma nova aparição de fantasia numa consciência. A aparição de fantasia é um núcleo de apreensões particulares. A fantasia presentificante é quase percepção, ou seja, consciência de inatualidade. O inatual é igualmente sustentado pela consciência de nadidade. A inatualidade é a modificação da posição de existência, no caso da fantasia ela é não posicional ou inatual.

A modificação reprodutiva permite recolocar a percepção sob a forma modificada na consciência interna do tempo. Esta passagem garante uma solução ao colocar entre parêntese a tese da posição de existência dada na percepção, a exigência da intencionalidade de fantasia para compreender o campo das essências puras é também a exigência do afastamento do mundo,

e mesmo das intencionalidades voltadas ao mundo. Há ainda outro nível de modificação mais elevado. A modificação de neutralidade é o modo como a consciência fantástica age sob as outras presentificações da fantasia. A neutralização é a aplicação em geral da redução fenomenológica a cada noema intencional seja perceptivo, seja reprodutivo, ou mnemônico. Neutralizar é colocar entre parentes a posição de existência da intencionalidade referida. A fantasia atua como neutralizadora, pois tem em sua essência fenomenológica a característica de vivenciar o mundo sob o modo do possível, ou do como se. Este é o motivo da fantasia ser a intencionalidade privilegiada metodologicamente na construção e execução da tarefa infinita de descrever o sentido das conexões transcendentais.

A neutralização é o conceito mais expressivo para compreender a novidade da fantasia e sua autonomia no arcabouço conceitual da fenomenologia. A neutralidade da fantasia é a característica responsável por dar uma nova interpretação às vivências fantásticas, pois, neutralizar significa colocar entre parênteses a posição de existência, a crença na existência do algo aparecendo. A grande diferença da fantasia fenomenológica é sua capacidade de não tender ao plano real, de não depender de uma confirmação no mundo fático e ainda ampliar as pesquisas fenomenológicas. Pensar a fantasia como neutra é pensa-la como a intencionalidade ideal para intuir as essências ideais. É a neutralidade juntamente com a definição temporal das vivências em presentificação a chave para a compreensão da novidade da fantasia e de sua tarefa especial no decorrer da construção da ciência fenomenológica.

Husserl trata da neutralidade nas Investigações Lógicas de 1900 quando fala das modificações qualitativas. Ele faz menção as modificações nos manuscritos do volume XXIII no ano de 1909: “Nas Investigações Lógicas tinha separado modificação qualitativa e modificação imaginativa. (V investigação, §§39-40). O último título parece inadequado desde então. Eu tenho avançado, e reconheci que a apreensão de fantasia não é uma autentica apreensão, mas, simplesmente, a modificação da apreensão perceptiva correspondente”201. O tema aparece também nas

Ideias I202, obra publicada em 1913, na qual se discute a diferença da neutralidade universal e a neutralidade de fantasia voltada ao

noema particular. A fantasia é a modificação de neutralidade

universal responsável pela redução da posição de existência. Nesta obra o tema torna-se mais claro tendo sua definição final a qual é utilizada em outros textos da husserliana.

Nos manuscritos do volume XXIII, os quais impulsionam as pesquisas e formam o conjunto de textos mais expressivo sobre a temática da fantasia, encontra-se a neutralidade nos anos finais da compilação, mais especificamente entre 1920 a 1924. A neutralidade insere-se na análise sobre a fantasia e a possibilidade. A abertura possível da vivência fantástica como sua estrutura essencial está vinculada ao modo como está abertura de possibilidade se concretiza através do modo neutralizante. Fantasia, neutralidade e possibilidade são concepções complementares e até mesmo similares no desenvolvimento da argumentação husserliana. A neutralidade é a redução da posição de existência, ou seja, ao neutralizar a crença positiva ou negativa, verdadeira ou falsa da existência, alcança-se o plano do quase, o modo do como se, da possibilidade.

Os textos encontram-se no N° 19 e 20 dos manuscritos apresentados no volume XXIII. O primeiro passo é mostrar a característica do como se da fantasia que é dada pela modificação de neutralidade. Diz Husserl: “A consciência de fantasia é uma consciência modificada. Entende-se por isso uma consciência na qual um objetual é consciente, como se ele estivesse em experiência ou tendo sido em experiência etc. O fantasmado é consciente como ‘sendo como se’”203. A modificação da fantasia mencionada acima é a modificação de neutralidade. ““A experiência ‘na’ fantasia é ela mesma uma experiência possível”. Uma pura possibilidade será uma possibilidade tal que nenhuma realidade individual será co-posicionada como realidade efetiva e por consequência seria um objetividade que se constitui

exclusivamente através de uma quase experiência

fantasmada”204. A fantasia é definida como neutralização em: A fantasia pura neutraliza, modifica toda crença, ela não a modaliza

202 Entre os §§ 111 à 114.

203 HUSSERL. Phantasie. N° 19, p, 546. 204 HUSSERL. Phantasie. N° 19. P, 547.

numa nova crença, de um ser modalizado”205. A explicação da neutralidade na fantasia e sua função diante do aparecimento fantástico permite reconhecer a importância desse conceito ao tema da originalidade da fantasia. No número 20 dos manuscritos, datado entre os anos de 1921-1924 temos a neutralidade assemelhada à redução fenomenológica. Ela passa a ser pensada como redução aplicável num sentido específico. Define-se a neutralidade como dupla epoché206, para diferenciá-la da redução fenomenológica tradicional ao nível da consciência pura em relação aos correlatos. “Aqui temos uma dupla fantasia, ou neutralidade”207. Ela pertence a fantasia como fantasia. “...é a motivação de neutralidade que é igualmente a característica de fantasia reprodutiva e de toda ficção”208. A presentificação de fantasia é também presentificação de neutralidade num momento especifico, mas nem toda presentificação é fantasia, mas a neutralidade depende da fantasia. Há ainda na obra Experiência e

juízo209 do ano de 1939, referências ao tema da neutralidade. A fantasia é um tipo particular de modificação de neutralidade; a fantasia e a consciência de imagem estão no modo da reprodução, no que tange a tomada de atitude, elas são um tipo de modificação do como se, ou seja, que se abstém da tomada de atitude. Tais considerações estão entre os § 38 e § 40 dessa obra e tratam da principalmente da fantasia como presentificação não-posicional ou neutralizada.