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5. A PESQUISA: PROFESSORES DE EDUCAÇÃO INFANTIL EM ATIVIDADE

5.1 Conceitos Matemáticos em Movimento

5.1.3 Elementos do sistema de numeração

O grupo que solucionou a tarefa proposta socializou aos demais grupos a lógica utilizada e assim a situação-problema “O Segredo da Canastra” serviu de suporte para retomarmos os elementos que compõem o sistema de numeração decimal, sob uma perspectiva histórica.

O envolvimento do grupo na solução do problema apresentado pela história virtual desenvolveu a necessidade de apropriação dos elementos que compõem um sistema de numeração a fim de compreender a lógica do sistema de numeração da Emília, um sistema fictício estruturado com base no sistema de numeração decimal. Após a socialização da resolução da tarefa, a professora Eva relatou: “Isso me fez pensar o quanto foi complexa a construção do sistema de numeração que hoje utilizamos e ainda como podemos trabalhar esse conhecimento, essa história com as crianças” (EVA, ED 03).

Iniciava-se nesse momento uma nova atribuição de sentido sobre o sistema de numeração, que até então se apresentava como um conceito óbvio, aparentemente sem qualquer dificuldade de compreensão ou de exploração com as crianças. Neste contexto,

Ao considerarmos que os conceitos são criações históricas, nas quais os conhecimentos estão objetivados no plano mental, a apropriação deles, ao mesmo tempo, estrutura e revela uma forma de pensamento, no caso o teórico. (MOURA et al., 2012, p. 2482)

Com a proposta de desvendar “O Segredo da Canastra” vimos que houve ressignificação de um conhecimento que parecia cristalizado, o sistema de numeração decimal. As ações das professoras em relação à organização do processo de ensino do sistema de numeração decimal indicavam comportamentos fossilizados, os quais, como vimos no capítulo 4, dedicado à metodologia, referem-se a “comportamentos mecanizados ou automatizados que perderam sua origem ao longo do tempo” (VIGOTSKI, 2007, p. 68); o que dificulta, senão impossibilita, “estudar alguma coisa historicamente [...] no processo de mudança [...] requisito básico do método dialético” (ibidem).

No entanto, esse comportamento fossilizado parece ter se modificado à medida que as professoras começaram a questionar a compreensão resultante de seu processo de aprendizagem sobre o sistema de numeração decimal, assim como a atuação na organização do ensino de matemática na educação infantil, o que pode ser observado nos relatos de Camila e Eva sobre a realização da situação desencadeadora “O Segredo da Canastra”:

Esse processo de entender como funciona o sistema de numeração decimal também nos leva a pensar como a gente ensina para a criança, para trabalhar com o sistema de numeração de base quatro, houve a necessidade de desconstruir conceitos já concretizados. (CAMILA, ED 03)

Essa exploração do sistema de numeração não acontece nem no ensino fundamental. (EVA, ED 03)

Esse não seria um dos motivos pelo qual as crianças possuem dificuldade em matemática? (CAMILA, ED 03)

Embora, o comentário de Camila não tivesse maiores desdobramentos e discussões, permanecendo apenas como uma espécie de reflexão em voz alta, tal relato nos indicou o início do movimento de atribuição de um novo sentido aos elementos que compõem o sistema de numeração.

Outro aspecto interessante que podemos destacar neste contexto é que a fala da professora Camila nos pareceu uma linguagem egocêntrica, definida como “a forma transitória da linguagem exterior para a linguagem interior” (VIGOTSKI, 2009, p. 65) posto que a verbalização individual em voz alta decorre da transferência de “formas sociais de pensamento e formas de colaboração coletiva para o campo individual” (VIGOTSKI, 2009, p. 64).

Neste sentido, a verbalização da professora Camila nos pareceu um pensamento verbalizado voltado à compreensão de como poderia organizar o ensino da matemática de modo a garantir às crianças a apropriação desse sistema. Como vimos no capítulo 2, destinado à fundamentação teórica, este relato nos indica a generalização da experiência adquirida por meio do sistema fictício de numeração da Emília, rumo à ordenação desses elementos em categorias conceituais, que é uma atividade intensa e complexa.

Sendo a linguagem humana signo mediador por excelência e sistema simbólico fundamental na mediação entre o sujeito e o objeto de conhecimento que possui as funções de intercâmbio social e pensamento generalizante, temos que a linguagem da professora Camila nos indicou, para além da função de comunicação, indícios de estruturação do pensamento teórico sobre o sistema de numeração.

Discutimos o conceito de base relacionando o sistema de numeração decimal com o sistema de numeração da Emília (base 4), sendo que trabalhar em uma base numérica distinta da habitual consistiu em tarefa árdua para as professoras. A atividade envolveu a exploração dos elementos que compõem nosso sistema de numeração indo-arábico, o qual constitui

[...] a síntese de vários conceitos presentes nos outros sistemas de numeração. Seus signos não fazem referência explícita às quantidades representadas. Assim, estão presentes em sua estrutura de funcionamento: ordenação e sequência, agrupamento e propriedade aditiva, base e valor posicional e valor posicional do zero. (MOURA, 1996, p. 72)

Para tanto, explorar o sistema de numeração decimal numa perspectiva histórico- cultural pressupõe o domínio por parte dos professores dos elementos que compõem esse sistema, no entanto, entendemos que para dominar esses elementos “é preciso recordar o difícil aprendizado do manejo dos números, para perceber que se trata na verdade de algo inventado e que tem de ser transmitido” (IFRAH, 2005, p. 9), com a clareza de que não se trata de uma transmissão direta e mecânica a ser memorizada, mas sim de uma transmissão que revele o seu processo constitutivo.

Com o objetivo de explorar o conceito de base de contagem, utilizamos o ábaco para representar o número desvendado, na base quatro, o que se apresentou como tarefa bastante complexa. Trabalhando em pequenos grupos, a maioria das professoras separaram as peças para serem distribuídas no ábaco: um dos grupos realizou a tarefa desenhando em uma folha de papel enquanto os demais utilizaram concretamente as peças, realizando agrupamentos e trocas. Houve a necessidade de constante diálogo entre os pares e mediação da formadora no decorrer da atividade.

A partir da socialização de como se desenvolveu a resolução da situação-problema “O Segredo da Canastra”, sistema de numeração de base quatro, algumas professoras evidenciaram não explorar o sistema de numeração com as crianças, como produto de uma necessidade, como uma produção histórica. Neste sentido, Ifrah (2005) afirma que “o uso dos algarismos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 0 nos parece em geral tão evidente que chegamos a considerá-lo como uma aptidão inata do ser humano, como algo que lhe aconteceria do mesmo modo que andar ou falar” (IFRAH, 2005, p.09).

Embora a experiência cotidiana possibilite o reconhecimento dos numerais e as formas de utilizá-los no cotidiano, o conhecimento do sistema de numeração decimal não é inato, mas sim se desenvolve por meio da aproximação do sujeito com o objeto de conhecimento de forma mediada objetivando-se desvelar sua essência e seus modos de criação, o que precisa ser apropriado pelos professores para que possam desenvolver uma organização de ensino que desenvolva nas crianças tal apropriação.

Nesse sentido, retomamos o registro individual desenvolvido pela professora Bia, a qual questionou a viabilidade da situação desencadeadora “O Segredo da Canastra” ao invés

de pautar o ensino da matemática em atividades cotidianas por meio de brincadeiras e situações que estivessem mais próximas das crianças.

A questão é que atrelar o plano de ação, como foi feito com a canastra da Emília, é interessante, mas talvez as atividades do cotidiano, as brincadeiras, vídeo-games estejam mais próximas das crianças e até das professoras, se formos pensar em conhecimentos prévios, interesses... Talvez discutir sobre atividades diárias e elaborar novas no grupo traga acréscimos e uma melhor compreensão dos conceitos trabalhados. (BIA, RI 01/04/2014)

Tal relato nos permitiu inferir que a professora Bia até aquele momento não atribuía sentido em explorar o sistema de numeração como uma produção humana desenvolvida historicamente, por isso, a argumentação de desenvolver atividades ligadas ao cotidiano.

No entanto, a apropriação dos elementos que constituem o sistema de numeração decimal na perspectiva histórico-cultural pelas professoras Camila, Dani e Duda parece ter provocado um novo sentido sobre o movimento conceitual de apropriação desse sistema, na medida em que as professoras se envolveram na resolução da história virtual “O segredo da Canastra” e verbalizaram dúvidas, concordâncias, discordâncias e apropriações. Embora o sistema de numeração decimal inicialmente parecesse ser um conceito dominado e desenvolvido junto às crianças sem qualquer dificuldade, as professoras passaram a rever esse conceito no momento em que se depararam com um sistema de numeração com base diferente da habitual, o sistema de numeração da Emília, com base quatro, o que motivou o movimento de ressignificação conceitual acerca do sistema de numeração decimal.