• Nenhum resultado encontrado

5. A PESQUISA: PROFESSORES DE EDUCAÇÃO INFANTIL EM ATIVIDADE

5.3 Organização do Ensino da Matemática na Educação Infantil

5.3.1 Episódio I – Contagem de rotina

A contagem rotineira de alunos é uma atividade frequente no cotidiano das instituições de Educação Infantil. As professoras realizam diariamente a contagem das crianças presentes e registram o resultado dessa contagem na lousa ou em um cartaz confeccionado especialmente para isso; algumas vezes, as professoras realizam a contagem de meninos e de meninas separadamente, exercício que após algum tempo pode avançar para a soma de meninos e meninas por meio da contagem de todos os alunos, apresentando a ideia de somar, agrupar ou juntar.

O exercício de contagem diária de alunos, denominado “chamadinha”, foi relatado por algumas das professoras participantes do experimento didático, logo no primeiro encontro.

A matemática faz parte da rotina de ensino, mas essas atividades muitas vezes não aparecem no diário de classe, fazemos contagem dos alunos, uso de calendário. Sempre trabalhei matemática, nunca tive dificuldade (CAROL, ED 01)

Na Educação Infantil acabamos trabalhando a matemática na rotina não elaborando uma atividade específica (EVA, ED 01)

Nós trabalhamos cotidianamente com os números, contagem, brincadeiras, comemorações de aniversários, hora de comer a bolacha, contagem do tempo etc. (BIA, RI 01/04/2014).

Figura 14 – Chamadinha

Fonte: Arquivo pessoal

A contagem rotineira conforme explicitada pelas professoras consiste num exercício de repetição da sequência numérica, que embora estabeleça uma relação entre o número de crianças e o numeral, não garante a apropriação do conceito de número ou de sequência numérica.

Identificamos nos relatos das professoras a ideia de exploração da matemática por meio de situações cotidianas, a partir do que é conhecido e vivenciado pelas crianças, como por exemplo contagem de alunos, utilização do calendário, data de aniversário, músicas e brincadeiras que envolvem a verbalização da sequência numérica. Essa tendência pode ser justificada pelas orientações didáticas para crianças de quatro a seis anos contidas nos RCN (1998), que favorecem tais meios para que as crianças possam adquirir conhecimentos sobre números e sistema de numeração, conforme discutimos no item 3.1.

Embora a exploração de conceitos matemáticos na Educação Infantil possa partir de situações cotidianas, essa abordagem possui limites que devem ser considerados pelos professores ao planejar uma situação desencadeadora de aprendizagem. Por si só, a contagem rotineira dos alunos como exercício não permite a compreensão dos elementos que compõem o conceito de número, visto que

A noção de número recobre dois aspectos complementares: o chamado cardinal, baseado unicamente no princípio da equiparação, e o chamado ordinal, que exige ao mesmo tempo o processo de agrupamento e da sucessão. (IFRAH, 2005, p. 48)

Chamamos de exercício a exploração matemática realizada pelas professoras por meio da “chamadinha” por compreender que não poderíamos denominá-la como atividade. O exercício na acepção da palavra significa “ato de se exercitar ou exercer, atividade corporal com o fim de desenvolver e manter a aptidão física, aquilo com que se exercitam as faculdades físicas e intelectuais, prática” (MICHAELIS, 2012), definição que mais se assemelha ao ato mecânico e corpóreo, distanciando-se demasiadamente da concepção de atividade fundamentada por Leontiev (2012). Embora num primeiro momento e na acepção comum a palavra “atividade” possa estar relacionada à ideia de ação, na perspectiva histórico- cultural a atividade define-se como processo psicológico dirigido por objetivos, os quais coincidem com os motivos que levam o sujeito a agir diante de uma necessidade ou resolução de um problema, conforme mencionado no item 2.1, “Teoria da Atividade”.

Se, em conformidade com Leontiev (2012), atividade é o processo psicológico que satisfaz a necessidade do homem na sua relação com o mundo, a qual pode ser derivada de ordem espontânea ou criada – como no ambiente escolar, onde são desenvolvidas situações- problema a fim de explorar conceitos matemáticos –, vemos que a atividade matemática desenvolvida com as crianças deve partir de uma necessidade, ainda que tenha sido criada pela professora, com o objetivo de propiciar apropriação de um conceito. Nesse sentido, buscamos relacionar esse exercício denominado “chamadinha” à estrutura de uma atividade, na perspectiva histórico-cultural, a fim de explicitar os limites do cotidiano para a compreensão do conceito numérico.

Ao tomar necessidade, motivo, ações, objetivos e operações como elementos estruturantes da atividade, inferimos que as ações propostas pela professora ao realizar a contagem diária por meio da “chamadinha”, embora pareça objetivar a apropriação da sequência numérica pelas crianças, não se constituiu como atividade na perspectiva da Teoria da Atividade (LEONTIEV, 2012), visto que a exploração do conceito de sequência, quantidade e numeral são alguns dos elementos que compõem a apropriação do sistema numérico e não podem ser explorados por meio de exercícios de repetição. As ações organizadas pela professora Bia até o encontro didático 06 dão indícios de que ela não via sentido em organizar o ensino de modo a criar nas crianças a necessidade do conceito por

meio da resolução de um problema, e por isso considerava satisfatórias situações que envolviam a repetição dos numerais.

Com o decorrer dos encontros didáticos e o desenvolvimento compartilhado de situações desencadeadoras de aprendizagem junto às crianças, a professora Bia revelou indícios de mudança de sentido atribuído às formas de apropriação do conceito de número; relatou surpresa ao observar que muitas crianças da sua turma (crianças de quatro anos) não haviam se apropriado da sequência numérica mesmo com o exercício de contagem diária.

Na semana anterior eu distribuí balas aos alunos e a proposta foi que as crianças deveriam dizer a quantidade de balas que elas queriam e deveriam contar a quantidade de balas solicitadas. Eu estava tentando explorar a sequência numérica com essa situação e me surpreendi em perceber que muitas crianças não haviam se apropriado da sequência de um a dez, mesmo eu fazendo essa contagem diversas vezes por dia, seja na contagem de alunos, na verificação do horário do relógio ou ainda por contar até dez para que as crianças retornassem aos seus lugares na carteira e ao contar as balas muitas crianças pularam a sequência contando um, dois, três, sete. (BIA, ED 07)

A fim de contextualizar o momento do movimento de mudança de sentido atribuído pela professora Bia ao conceito de número e aos meios para sua apropriação, evidenciamos que este relato ocorreu no sétimo encontro didático, momento em que o grupo havia vivenciado a história virtual “O segredo da canastra” e discutido sobre os elementos que compõem o sistema de numeração com base nos textos: “Os Números: a história de uma grande invenção” (IFRAH, 2005) e “Atividade Orientadora de Ensino: unidade entre ensino e aprendizagem” (MOURA et al., 2010).

A noção de sequência não está presente apenas na numeração decimal; a recitação de um poema, por exemplo, possui uma determinada sequência. Assim, seria indiferente a professora contar até dez ou recitar um poema a fim de marcar um período de tempo para que as crianças retornassem aos seus lugares. Compreender a sequência numérica significa compreender a noção de sucessão, ainda que após sua constante utilização possa tornar-se uma contagem abstrata.

O conceito de sucessão tem como princípio a utilização do corpo humano como instrumento de ordenação associado à ideia de quantidade, como vimos no item 3.1. Ainda que nós, adultos, disponhamos de uma abstração da sequência numérica e do conceito de número, o qual abrange aspectos de cardinalidade e ordinalidade, essa compreensão e abstração não são apropriadas pelas crianças de forma espontânea nem tampouco por meio da repetição da sequência numérica, seja na contagem rotineira ou por meio de músicas. Nesse sentido, Vigotski (2009) propõe que

[...] um conceito é mais do que a soma de certos vínculos associativos formados pela memória, é mais que um simples hábito mental; é um ato real e complexo de pensamento que não pode ser aprendido por meio da simples memorização, só podendo ser realizado quando o próprio desenvolvimento da criança já houver atingido o seu nível mais elevado. A investigação nos ensina que, em qualquer nível do desenvolvimento, o conceito é, em termos psicológicos, um ato de generalização. (VIGOTSKI, 2009, p. 246)

Os conteúdos que devem ser abordados pela escola são aqueles que derivam da experiência humana, não devendo se limitar a questões práticas e utilitárias; por isso é necessário organizar um processo de ensino que possa subsidiar a apropriação de conceitos matemáticos, colocando a criança diante desse movimento de produção histórica e cultural. Para tanto, o professor precisa ter se apropriado desse movimento conceitual sobre o sistema de numeração.

Compreendemos que a dificuldade das professoras em explorar conceitos matemáticos num movimento de apropriação que reconheça o conceito como produção histórica pode ser justificada pela formação docente de forma polivalente, “onde a matemática é, via de regra, abordada do ponto de vista da didática dos conceitos aritméticos elementares, deixando a desejar um maior aprofundamento dos conceitos fundamentais da matemática e de suas relações com outras áreas” (LANNER DE MOURA, 2005, p. 18).

No encontro didático 12, em discussão sobre o desenvolvimento do jogo de boliche com as turmas de estágio, quando a professora Lídia socializou o desenvolvimento de sua turma diante da atividade proposta e a dificuldade das crianças em realizar pequenas somas, Bia compartilhou a dificuldade das crianças da sua turma em somar, além de nomear corretamente a sequência numérica, dizendo que por isso havia modificado a estratégia de contagem rotineira das crianças presentes.

Os meus alunos também apresentam dificuldade em somar a primeira e a segunda rodada do jogo de boliche, por isso, na contagem de rotina, atualmente eu conto as crianças por grupos, ou seja, por mesinhas e vou colocando na lousa representando cada mesa com a letra inicial de cada criança e depois contamos os alunos por meio do desenho na lousa. (BIA, ED 12)

Embora a contagem de rotina não tenha sido foco de discussão no experimento didático, sendo relatada como uma prática diária das professoras com o objetivo de explorar a sequência numérica, percebemos na reorganização das ações da professora Bia indícios de transformação do motivo que a impulsionava inicialmente a organizar o processo de ensino sobre sequência numérica. Como vimos no item 2.1, o motivo é que estimula o sujeito a

executar a atividade, que por sua vez coincide com o objeto da ação. Para compreendermos como ocorre a transformação do motivo, Leontiev (2012) nos responde que “é uma questão de o resultado da ação ser mais significativo, em certas condições, que o motivo que realmente a induziu”; isso porque “ocorre uma nova objetivação de suas necessidades, o que significa que elas são compreendidas em um nível mais alto” (LEONTIEV, 2012, p. 70).

A partir da percepção de que o sistema de numeração não é apropriado de forma espontânea nem por meio da repetição, Bia parece se apropriar da complexidade desse sistema, respaldada pelo experimento didático e pelas mediações estabelecidas, passando a reorganizar o processo de ensino de forma consciente acerca dos elementos que compõem o sistema de numeração.

Se no primeiro momento a situação de contagem rotineira proposta às crianças consistia em contar de maneira “recitada”, sendo finalizada com a professora registrando o numeral resultante da contagem das crianças presentes, no segundo momento, conforme relato anterior (BIA, ED 12), o mesmo exercício parece ter ganhado uma nova qualidade quando a professora passa a sugerir uma contagem dos alunos de forma relacional, explorando a correspondência um a um.

A professora Bia passou a representar na lousa cada criança por meio da letra inicial de seu nome e a desenhar a distribuição de mesinhas dispostas na sala, conforme esquema a seguir:

Figura 15 – Esquema de contagem por correspondência a partir do registro individual da professora Bia.

Com essa dinâmica, a professora passou a explorar noções de correspondência, onde cada letra correspondia a uma determinada criança; de agrupamento, de sete crianças no conjunto de mesinhas; e de comparação de quantidades, entre o número de crianças em cada conjunto de mesinhas.

Por seis meses eu trabalhei a sequência numérica com as crianças diariamente através da contagem dos alunos e quando pensei que todos haviam se apropriado dessa sequência, me deparei com um menino que contava 1, 2, 3, 7, 40, ou seja, eles repetiam mecanicamente, mas não tinham se apropriado da sequência, as crianças repetiam sem sentido. (BIA, ED 27)

Tomando o exercício de contagem de rotina desenvolvido com as crianças de Educação Infantil percebemos que

O número está criado, as condições objetivas que levaram a sua criação não estão mais presentes para quem o aprende, hoje. Mas o que é sempre atual é o conteúdo do método de criação do número, os nexos conceituais, sendo um deles, o “fazer corresponder objeto a objeto” na contagem e que lhe é nexo por se constituir no concreto do pensamento como ideia de equivalência. (LANNER DE MOURA, 2005, p. 22)

A ideia de número contempla uma gama de elementos além do conceito de correspondência, como ordenação, sequência, agrupamento, propriedade aditiva, base e valor posicional; conceitos que se constituem como essenciais para a apropriação do sistema de numeração de modo a desenvolver o pensar matematicamente. De acordo com Lanner de Moura (2005, p. 22), “hoje, não é possível pensar numericamente a realidade sem que se tenha elaborado todos os nexos numéricos”; caso contrário, caímos na falsa compreensão de um sistema de numeração, quando na realidade o recitamos e o reproduzimos sem sentido, sem que haja real apropriação do conceito. Nesse sentido, percebemos que a professora Bia passou a atribuir um novo sentido à organização do processo de ensino da matemática, evidenciando os elementos e os nexos que compõem esse sistema.

Embora a contagem de rotina não apresente potencial para apropriação de todos os elementos que compõem o sistema de numeração, esta dinâmica pode contemplar alguns desses elementos num movimento processual de pensar sobre o conceito, compreendendo-o em sua gênese e não apenas em sua superficialidade. Nas palavras da professora,

A gente costuma lidar com a matemática como resultado e com essa discussão passamos a olhar para o processo, por exemplo, eu sei aplicar a fórmula de Bhaskara, mas até o hoje não tenho noção para que ela serve, qual a sua origem, na verdade eu decorei. (BIA, ED 27)

Em outras palavras, a apropriação dos elementos que constituem o sistema de numeração supõe um trabalho processual, intencional e sistematizado, que só é possível diante da compreensão de que esse sistema, embora atualmente se apresente como conceito pronto, passível de utilização em situações cotidianas, perpassa a apropriação das formas de seu desenvolvimento histórico.

Neste episódio, vimos que inicialmente Bia organizava a exploração da sequência numérica por meio de exercícios de contagem rotineira das crianças presentes na sala, ação desarticulada com o objetivo de apropriação de sequência numérica, por não trabalhar as noções de correspondência, de ordem, de sucessão; a ação inicial de Bia retrata a falta de nexo conceitual, visto que, conforme relato da professora, as crianças recitavam a sequência numérica sem que tal verbalização fizesse corresponder o numeral com cada criança.

Diante da percepção de que as crianças não haviam se apropriado da sequência numérica, mesmo após uma rotina de exercício de contagem das crianças presentes durante seis meses, Bia passa a refletir sobre suas ações, amparada pelos aportes teóricos da teoria histórico-cultural, da Teoria da Atividade e do conceito de Atividade Orientadora de Ensino, num movimento de compartilhamento de dúvidas e novas propostas de ações. Nesse movimento vemos que as ações da professora Bia se tornam conscientes e, portanto, coerentes com seu objetivo; o sentido das ações se transforma, remetendo-a ao desenvolvimento de novas ações, num movimento de ressignificação de aprendizagens e modificação da prática docente.

Assim, revelamos nesse episódio indícios de transformação do motivo que impulsionava a professora Bia a organizar o processo de ensino sobre sequência numérica, impactada pelo resultado do desenvolvimento da situação desencadeadora de aprendizagem “O jogo de Boliche” conforme apresentamos no Isolado II, episódio I (5.2.1), uma vez que o resultado empreendido no jogo demostrou-se mais significativo do que o motivo que a impulsionava inicialmente.