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A mais generosa philantropia não consiste em reformar leis e em modificar instituições, mas em ajudar os nossos concidadãos a elevarem-se e aperfeiçoarem-se.

[...]

Instruir vossos filhos é o vigoroso anhelo que deve se aninhar ao intimo de todas as vossas almas – deveis obedecer cegamente ao seu generoso impulso.

A escrita deste capítulo teve início a partir do seguinte questionamento: quem foi Elisa Scheid? Quem foi essa mulher que vem recebendo visibilidade em diferentes estudos acadêmicos127, que ocupou a presidência do Partido Operário Independente, que também foi relatora da comissão de instrução e redação e, posteriormente, redatora dA União Operaria e que discutia as questões acerca da instrução e da emancipação indígena?

Ao longo do processo da pesquisa, nos deparamos com muitas facetas de Elisa e, na construção delas, a instrução aparece como fio condutor de grande parte das ideias propostas pela docente. Embora a professora se apresente como uma figura feminina substancial que mereça nossa atenção, é fundamental destacar que ela não foi a única a estar envolvida com essas questões, naquele momento, e que a nossa proposta está vinculada à ideia de perseguir, ainda que de maneira inicial, as propostas da líder

127 FRACCARO (2008), BATALHA (2009), GARZONI (2012), COSTA (2012), MARTINS (2018),

90 operária para a instrução dos trabalhadores residentes no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro.

Conforme destaca Silva (2018, p.147) – em diálogo com as ideias propostas pela professora Áurea Correa de Martinez e publicadas no Correio da Manhã – as mulheres, ainda na primeira década do século XX, eram vistas como dependentes do homem e ingressavam na carreira do magistério não apenas por vocação, mas também por necessidade. Desse modo, o autor salienta que o percurso da carreira docente, especialmente para as mulheres, se deu numa arena de combates que, de alguma maneira, resultou em rompimentos com o status quo, fosse por meio de ações simples e cotidianas, fosse “propondo-se a realizar algo que era considerado fora dos padrões morais, até questões mais elaboradas, envolvendo, por exemplo, o debate sobre a participação política”.

A respeito da inserção das mulheres no magistério – sobretudo, o ensino primário, na cidade do Rio de Janeiro – Schueler (2002) salienta que o número de professores, e principalmente de mulheres, cresceu consideravelmente, assim como o número de estabelecimentos de ensino oficiais, ainda no Império. A partir dos dados presentes no Relatório do Ministério do Império de 1884 do ano de 1872, até a publicação do documento, o número da atuação feminina quase triplicou: dos 197 mestres de escolas primárias, 107 eram mulheres.

Meninas e mulheres das elites recebiam formação direcionada para a administração do lar, hábitos de civilidade e sociabilidade, valorização de línguas estrangeiras, sobretudo a francesa, música, canto e dança de salão. Já as meninas das camadas populares, desde cedo, tinham formação restrita às atividades cotidianas e tarefas domésticas, à agricultura e ocupação com o trabalho na urb.

Nesse cenário, é fundamental considerarmos as diferenças e a pluralidade de identidades e vivências históricas das mulheres para colocar em xeque, conforme destacam Gondra e Schueler (2008), a existência de uma suposta natureza feminina e uma existência de um sujeito universal. Na perspectiva dos autores, balizados em estudos historiográficos, as experiências históricas das mulheres não podem ser tomadas no singular.

Com isso, embora Elisa estivesse envolvida com questões que não se encaixavam nos padrões construídos e, possivelmente, esperados para as mulheres – pelo menos para aquelas que pertenciam à classe burguesa, visto que o trabalho já fazia

91 parte do cotidiano das mulheres pertencentes às classes menos abastadas – talvez ela também não estivesse tão perto das propostas do movimento feminista, por exemplo. Na perspectiva de Garzoni (2012), embora a professora se posicionasse de maneira contrária ao governo de Campos Salles, nos artigos a respeito das questões indígenas, pouco questionava sobre o papel da mulher na sociedade; ao contrário, suas preocupações estavam vinculadas à manutenção da virtude da honestidade e das características como a fragilidade, o sentimentalismo e a importância do apoio dos homens das letras para alcançar as reivindicações propostas por ela e por seus companheiros e companheiras de luta.

Nesse sentido, segundo a autora acima citada, a questão do discurso, propagado pela professora, poderia ser classificada como mais conservadora; porém, essa assertiva não é um consenso nos estudos que se dedicam, ainda que de maneira embrionária, à trajetória de Elisa Scheid. Para Martins (2018), a presidente do Partido Operario Independente (POI) poderia ter seu discurso enquadrado como mais moderado, já que estava dialogando com propostas e sujeitos que, de certa maneira, não se enquadrariam nas questões de caráter conservador.

Esse aspecto não será o tema principal deste capítulo, tampouco um caminho fundamental para sabermos mais da personagem Elisa, inclusive porque compreendemos que a história e a trajetória dos sujeitos não são fixas ou imutáveis e, sim, um processo que dialoga com as experiências que esses tiveram ao longo do seu processo de formação. Assim, ainda que a docente apresentasse propostas consideradas menos transgressoras – do ponto de vista das concepções de outras mulheres que figuravam as páginas da imprensa carioca – seu discurso não é propriamente conservador, tendo em vista que o fato de ser presidente de um partido voltado à causa operária nos permite, pelo menos, tentar repensar o enquadramento proposto por Garzoni (2012).

Seguindo seu percurso de vida e as bandeiras por ela erguidas e defendidas, sua relação com as problemáticas dos operários da ferrovia poderia estar vinculada ao fato de seu pai, Henrique Scheid, ter ocupado o cargo de engenheiro residente na Estrada de Ferro Central do Brasil, e seu irmão128, Custódio Scheid, ao que parece, de acordo com a publicação dA União Operaria, também tivesse algum vínculo com a Estrada de Ferro

128 A professora tinha outros 5 irmãos, porém só foram localizados os nomes de 2 deles: Alexandre

92 Sapucahy. Não nos preocupamos em perquirir a trajetória da família Scheid, tendo em vista que o objetivo principal deste capítulo é apreender um pouco mais das ações de Elisa no campo da instrução, no distrito de Inhaúma, mais especificamente, na região do Engenho de Dentro.

O fato de Elisa ser filha de pai alemão e mãe índia129 – logo, mestiça – pode tê-la aproximado das questões indígenas e tê-la feito produzir uma série de 7 artigos, publicados pelo Correio da Manhã, entre dezembro de 1901 e janeiro de 1902, intitulados Índios Brasileiros. De acordo com Garzoni (2012), a coluna tinha o intuito de ouvir o brado feminino, que solicitava aos poderes públicos que se atentassem para a condição dos índios a qual, segundo a professora, era um atestado notório do atraso social do país.

Figura 6 - Elisa Scheid.

Fonte: Gazeta de Notícias, sexta-feira, 5 de janeiro de 1906.

129 De acordo com Boenavides (2018, p. 106), a revista Renascença, publicada em 11 de novembro de

1905, afirma que Elisa Scheid era “filha de um alemão socialista e de uma índia criada na natureza [...]”, porém, ainda que a publicação aponte para tal perspectiva, não foram localizadas outras pistas que comprovem essa afirmação. Desse modo, optamos por dialogar com a informação localizada pela autora, mesmo considerando que é preciso realizar buscas mais aprofundadas nesse sentido, para então afirmar se a professora e líder operária, de fato, era filha de uma índia ou se a mestiçagem da docente estava relacionada a uma ascendência negra.

93 É pertinente salientar que a temática da mestiçagem estava sendo discutida a pleno vapor, por diferentes figuras, ao longo das últimas décadas do século XIX e começo do XX, tendo em vista que, além de o país estar reconstruindo seus símbolos e sua identidade enquanto nação, a abolição da escravidão era recente no cotidiano daqueles indivíduos. Conforme destaca Dantas (2009), naquele momento, o Brasil café com leite buscava uma unidade nacional, embora essa temática, do ponto de vista intelectual, não tenha sido interpretada de maneira homogênea, considerando que esta análise implicava a questão do que seria valorizado ou não como produto deste tipo nacional de alma mestiça130.

Ainda nesse sentido, a autora evidencia que, desde a entrada das teorias raciais, no Brasil, o país passou a ser visto como um espaço de mistura de raças, o que resultaria, de alguma forma, em uma impossibilidade de civilização e progresso do país, algo que não trazia conforto para aqueles que compunham a intelectualidade brasileira. Desse modo, o discurso de Elisa Scheid vai de encontro ao que vinha sendo discutido pela sociedade, sobretudo, no que diz respeito a uma suposta diferença entre raças e uma hierarquia natural, além de uma análise do darwinismo social, que abriria a possibilidade de defesa de um branqueamento.

Na coluna publicada pela professora, em 4 de janeiro de 1902, no Correio da Manhã, Elisa salienta que houve quem julgasse sua opinião como exagerada, quando afirmou que a índole dos índios era passiva e mansa, tendo o como instincto feroz e não raro indômito, declaração que nos leva a crer que, de certa forma, esses adjetivos possibilitariam à professora a colocar os índios como sujeitos menos civilizados que os demais indivíduos. Já na publicação de 15 de janeiro, em artigo sobre a importância da fé para que os índios saíssem do constrangimento intelectual, a professora afirma que só havia um meio para tanto, era a intrucção guiada pela fé.

Nesse caminho, os escritos dela em prol da formação indígena giravam em torno dos argumentos nacionalistas. Elisa, assim como Leolinda Daltro131, por exemplo,

130 Ver: Renato Ortiz. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1986; VENTURA,

Roberto. Estilo tropical: História cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1991; GUIMARÃES, Antônio Sergio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. São Paulo: Editora 34, 2002; AZEVEDO, Célia; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

131 A professora Leolinda de Figueiredo Daltro foi uma das precursoras do indigenismo no Brasil,

defendia a incorporação dos índios brasileiros à sociedade, por meio da alfabetização laica e, em 1896, deu início ao seu projeto de percorrer o interior do país para pôr suas ideias em prática. Sua investida pelo interior do país chegou ao fim em 1897, quando retornou à cidade do Rio de Janeiro e fundou o Grêmio

94 utilizava a imprensa como arena para debates, com o intuito de pleitear e contribuir para a independência e soberania da radiosa e amada patria132 e enaltecer bandeiras que ela costumava levantar, não somente em favor das questões indígenas, mas também em favor dos operários (GARZONI, 2012). Dessa forma, ainda que não seja possível afirmar, podemos levantar alguns pontos, mesmo que sem respostas, sobre o posicionamento de Elisa com relação às questões indígenas.

Como podemos perceber, a partir da fotografia da professora, ela advinha do casamento entre um europeu e uma índia, sendo esta oriunda de Iguaçu, Sabina Rocha Scheid. Naquele momento, as questões raciais, que permeavam o Brasil, compunham as hierarquias sociais, econômicas e/ou políticas da população. Por conseguinte, nos perguntamos de que maneira essa problemática afetava a professora elementar? Será, que esse processo de branqueamento que assolava a sociedade, de alguma maneira, fez com que Elisa se colocasse como pertencente a uma classe e/ou raça diferente daquela em que ela se encontrava inserida?

Nessa fase, não buscamos responder, mas é importante lançá-las ao leitor para que possamos compreender Elisa para além de suas concepções em favor da classe trabalhadora, sobremaneira como uma mulher que se via imbuída dos anseios e discursos daquele período. Sendo assim, nossa preocupação está amparada nas concepções de Levi (1996), por meio do qual se compreende a narrativa biográfica como uma narrativa que considera os elementos contraditórios dos indivíduos e as diferentes representações que deles se possa ter, de acordo com os pontos de vista e a época.

Contemplando as multiplicidades dos indivíduos, nesse aspecto, embora Elisa tivesse relação com a Igreja e retórica pautada na religiosidade, a professora não poupava a instituição de duras críticas no que diz respeito à necessidade de retirar a questão indígena dos poderes do clero, além de retomar a temática da desvinculação de Igreja e Estado, já que, para ela, os índios precisariam desfrutar dos benefícios da civilidade, dentre eles, a educação e o trabalho. Porém, ainda que a docente propusesse acesso a direitos, assim como outras missivistas, aparentemente, a professora acreditava que os representantes do mundo civilizado eram mais capacitados que os povos

Patriótico Leolinda Daltro, com a proposta de defender a catequização dos índios sem a interferência da Igreja. Para além das questões indígenas, a professora também se dedicou à defesa da cidadania plena das mulheres, tendo fundado, inclusive, o Partido Republicano Feminino.

95 indígenas e que esses deveriam ser tutelados por aqueles, para que pudessem ser capacitados e, assim, evoluírem, por vezes desconsiderando ou obscurecendo a diversidade entre diferentes nações indígenas (GARZONI, 2012).

Portanto, não pretendemos nos alongar acerca das ações propugnadas para os indígenas por parte da docente, mas, a partir desses apontamentos, retomar nossa discussão sobre a pluralidade que compõe o percurso de Elisa Scheid. Acompanhando as assertivas de Bourdieu (2006), compreendemos a trajetória da professora não como uma construção cronológica, unidirecional, coerente, tampouco constante, mas sim como um caminho primordial para investigarmos quais pautas ela elencava.

No decurso da pesquisa, Elisa se mostrou uma mulher de seu tempo, não uma heroína ou a Cleopatra do operariado brasileiro133, como fora apontada por Placido Peres Bittencourt, representante da UOED no Rio Grande do Sul. Outrossim, mostrou- se como uma figura notável e interessante para compreendermos ou, pelos menos, esmiuçarmos como seus posicionamentos refletiam as temáticas suburbanas em disputa, na cidade, quanto à formação dos trabalhadores residentes nos subúrbios da Central.

Antes de adentrarmos as ações propostas por Elisa, no que diz respeito à instrução dos operários e suas iniciativas nesse campo, é crucial nos dedicarmos ao seu percurso no magistério. Um dos primeiros registros da carreira docente de Elisa Scheid foi noticiado pela Gazeta de Notícias, ainda no ano de 1899, quando foi concedida a subvenção para a escola – situada em Cascadura, 8º distrito escolar da freguesia de Inhaúma – regida pela professora. Contudo, a primeira ocorrência da docente, atuando no magistério municipal, só se deu no ano de 1902, através das páginas do Almanak Laemmert: Administrativo, Mercantil e Industrial, quando ocupava as salas de aula da escola, fixada na Rua Aguiar, nº 1, também no distrito de Inhaúma. Já em 1903, a docente foi uma das requisitadas para comparecer ao edifício da Escola Normal, a fim de conferir sua habilitação e realizar o exame da prova escrita referente ao Edital de Convocação da Prefeitura134.

Suas iniciativas foram mantidas, no mesmo endereço, durante um período significativo, substancialmente, nas primeiras décadas do século XX. No ano de 1903, Elisa estava à frente de uma escola voltada, exclusivamente, para o sexo feminino, que funcionava no mesmo logradouro daquela apontada no ano anterior, onde se manteve

133 Jornal do Brasil, 15 de janeiro de 1908. 134 Gazeta de Notícias, 3 de fevereiro de 1903.

96 nos anos seguintes. Em 1910, passou a aparecer em outros estabelecimentos, como foi o caso da Collina Aguiar, e em outra unidade de ensino, na Praça da República, n. 156, respectivamente, em 1910 e 1911.

Nos anos seguintes, Elisa Sheid voltou a ocupar o posto de professora elementar no mesmo endereço onde se apresentou pela primeira vez, agora no número 42, onde se manteve até o ano de 1916. Depois dessas ocorrências, a professora só volta a figurar as páginas do Almanak135 em 1922, já como docente do 14º distrito escolar, na 1ª escola masculina136, localizada na Rua D. Pedro, n. 113, onde permanece, até ao que parece, o ano de 1927137. Assim, o que se percebe é que Elisa atuou em diversas instituições, localizadas em endereços distintos, nem sempre no subúrbio, tendo uma carreira docente de destaque, chegando a se tornar professora catedrática, ainda na década de 1920138.

No entanto, para além das escolas nas quais Elisa Scheid atuou, existe uma iniciativa em que ela esteve envolvida, sobre a qual nos interessa saber mais, as Escolas Operarias “Elisa Scheid”; mas, para caminharmos nessa direção, é preciso que compreendamos melhor a sua atuação no movimento operário. Portanto, é hora de seguir viagem e partir rumo à próxima estação.

135 Intitulado Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro, o

anuário ficou conhecido como Almanak Laemmert e foi publicado regularmente todos os anos, entre 1844 e anos iniciais do século XX. O impresso divulgava serviços profissionais “dos mais diversos ramos de atividade periódicos publicados na Corte, instituições religiosas, sociedades de leitura, comércio, livrarias e tipografias, academias científicas, escolas, aulas avulsas e colégios (públicos, privados, militares, religiosos), hospitais, asilos, associações” (LIMEIRA, 2010, p. 14).

136 A escola, a priori, era mista, porém, por decisão do inspetor escolar, Alfredo Cesario de F. Alvim, essa

passa a atender somente o público masculino, e as meninas que ali estudavam foram transferidas para uma escola próxima, localizada naquela mesma região, na Rua do Campinho, n. 35.

137 Essa foi a última ocorrência localizada no Almanak Laemmert da professora atuando na cena do

magistério municipal.

138 Localizamos essa informação através da concessão de um pedido de licença para tratamento de saúde

97

3.2. O Partido Operario Independente e a liderança operária a favor da instrução