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Sobressai do entendimento generalizado da jurisprudência e da doutrina que a licença urbanística é independente de quaisquer direitos privados de terceiros, encontrando-se sujeita exclusivamente às normas do direito do urbanismo, como se de um “compartimento estanque” se tratasse.

Isso significa que nos procedimentos de licenciamento e na comunicação prévia, que correm seus trâmites legais junto dos municípios, o direito do urbanismo “reina sem rival”, de nada relevando que ocorra qualquer violação das normas de direito privado ou quaisquer prejuízos dos direitos de terceiros de boa-fé que daí possam advir.

Reconhecemos, por isso, ao supra mencionado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 23/06/1999, o mérito que teve no que respeita à abertura de horizontes mais alargados, nomeadamente no que concerne à apreciação dos projetos de arquitetura, no âmbito dos procedimentos administrativos com vista à obtenção de licença ou na comunicação prévia para execução de operações urbanísticas.

Repara-se que segundo este aresto “[t]odo o administrado, em obediência ao princípio da boa-fé também consagrado no âmbito da atividade administrativa pelo art. 6.º-A do C.P.A. deve, em pedido dirigido à Administração Pública fornecer todos os elementos necessários e suficientes para que ela possa proferir decisão rápida e justa”.

Mais defende o mesmo aresto que “[v]iola o aludido princípio o requerente que em pedido de licenciamento para a construção de um muro para vedar determinado prédio, cuja propriedade se arroga, omite a existência de um direito de servidão sobre o imóvel a vedar, constituído em benefício de outro ou outros prédios”, estabelecendo que caberá aos Municípios ordenar as diligências necessárias à averiguação do direito de servidão que onera o prédio onde o dono da obra pretende construir.

De facto, este entendimento, com o qual nos identificamos, consagra o ordenamento jurídico como um todo, não permitindo separação entre o direito privado e o direito público, pois, tratando-se de direitos diferentes, não significa que a administração apenas dirija a sua atenção e se paute unicamente pelo respeito e cumprimento do direito do urbanismo.

De facto, rejeita-se esta visão algo “redutora” de submeter os procedimentos administrativos às regras do direito do urbanismo, com exceção das questões de legitimidade dos intervenientes, abandonando ao mero acaso o respeito pelas demais regras de direito privado, em prejuízo dos legítimos direitos de terceiros de boa-fé.

Antagónico a esta linha de pensamento, corre o entendimento de ANTÓNIO PEREIRA DA COSTA o qual, num comentário ao mesmo aresto do STA de 23/06/1999, considera que, se eventualmente, a construção prevista afeta uma servidão de passagem, o beneficiário desta apenas tem de socorrer-se das instâncias judiciais, e, se nestas obtiver ganho da causa, poderá impedir a construção licenciada.

Mais defende que “o que não pode é a Administração dirimir o conflito existente, impondo ao requerente do licenciamento a existência de servidão, correndo o risco de o tribunal decidir em sentido contrário.”

Na verdade, não podemos concordar com esta visão, atendendo que, contra o terceiro lesado recai o ónus de se dirigir às instâncias judiciais, com os inerentes gastos (geralmente avultados) com advogados, solicitadores, custas processuais, etc..., sem esquecer toda a incomodidade e morosidade daí decorrentes.

Aliás, conforme reza o povo sabiamente “tempo é dinheiro”, não podendo olvidar-se que, não raras vezes, já a edificação objeto de licenciamento se encontra parcial ou totalmente edificada, colocando-se a questão de saber o que fazer perante tal factualidade.

Questiona-se, ainda, se deverá proceder à demolição da respetiva obra edificada, que desrespeita o direito de terceiro, como é o caso do muro erguido com a devida licença camarária, mas que viola o direito de servidão dos vizinhos? Não deveria, nestas situações em que o dono da obra omite dolosamente o direito de privados ser sancionado ou inclusivamente indemnizar os terceiros de boa-fé pelos danos e gastos daí decorrentes? Às questões formuladas tentaremos responder no Capítulo sob a epígrafe “Caminhos a Seguir”.

O argumento de que os terceiros de boa-fé deveriam estar mais atentos à atuação do dono da obra ou do promotor, na medida em que evitaria que o procedimento se arrastasse e fosse desencadear conflitos e prejuízos para aqueles, não nos parecer atendível.

Basta atendermos a que os terceiros de boa-fé podem estar ausentes do local onde decorrem os trabalhos da operação urbanística ou, até mesmo, encontrar-se a residir no estrangeiro e, por tal facto, desconhecerem totalmente as intenções construtivas do dono da obra.

Também não será de aceitar o argumento de que a publicitação do pedido de licenciamento junto da administração local, exigível nos termos do artigo 12.º do RJUE, protegerá os terceiros de boa-fé.

Dispõe o citado normativo que “[o] pedido de licenciamento ou a comunicação prévia de operação urbanística devem ser publicitados sob forma de aviso, segundo o modelo aprovado por portaria do membro do Governo responsável pelo ordenamento do território, a colocar no local de execução da operação de forma visível da via pública, no prazo de 10 dias a contar da apresentação do requerimento inicial ou comunicação.”

Contudo, como é consabido, infelizmente este preceito não é cumprido por todos os donos de obra, como seria expectável e desejável.

Aliás, são até bastantes aqueles que violam a obrigatoriedade de afixar o aviso que publicita o pedido de licenciamento ou da autorização de utilização, incorrendo em infrações contraordenacionais, nos termos do artigo 98.º, n.º 1, alínea i), do RJUE.

A punição pela prática desta infração são puníveis com coima graduada de (euro) 250 até ao máximo de (euro) 50 000, no caso de pessoa singular, e de (euro) 1000 até (euro) 100 000, no caso de pessoa colectiva, nos termos do artigo 98.º, n.º 6 do RJUE.

Mutatis mutandi se aplica à ausência de manutenção de forma visível do exterior do prédio, até à conclusão da obra, do aviso que publicita o alvará ou a comunicação prévia.

In casu, também se aplica coima graduada de (euro) 250 até ao máximo de (euro) 50 000, no caso de pessoa singular, e de (euro) 1000 até (euro) 100 000, no caso de pessoa colectiva, nos termos do artigo 98.º, n.º 6 do RJUE.

Por isso, não será de atender ao argumento supra mencionado de que terceiro de boa-fé se encontra protegido da atuação levada a cabo pelo dono de obra no que respeita à realização de operações urbanísticas, como, aliás, era intenção do legislador, socorrendo-se dos dispositivos normativos supra referenciados.

Poderemos até mesmo concluir que as mencionadas medidas legislativas ainda não alcançaram os seus objetivos, tal como foram equacionados pelo legislador, o que não significa que não estejam no bom caminho.

X. PROTEÇÃO TARDIA E ONEROSA DOS DIREITOS DE TERCEIROS NA

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