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O artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.) garante aos cidadãos a faculdade de acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, bem como os direitos à informação e consulta jurídica e ao patrocínio judiciário (n.ºs 1 e 2).

Segundo VIEIRA DE ANDRADE, estes direitos podem ser agregados num direito geral à proteção jurídica, que constitui um direito-garantia dos cidadãos.18

Ao nível constitucional, o direito à proteção judicial é ainda reforçado pelo artigo 205.º, que estabelece nos n.ºs 2 e 3, a obrigatoriedade das sentenças para todas as autoridades e a imposição de legislação que garanta a sua execução efetiva.19

O texto constitucional consagra, ainda, no seu artigo 268.º, n.º 4 e ss. o princípio da tutela judicial efetiva dos cidadãos perante a Administração Pública.

Saliente-se que esta proteção não fica confinada à C.R.P., porquanto o artigo 2.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (C.P.T.A.) consagra que “ todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos”. Contudo, como esclarece VIEIRA DE ANDRADE, embora o recurso às vias judiciais possa assegurar a tutela adequada a todos os cidadãos, se afigure uma efetiva garantia relativamente à boa administração da justiça, não poderemos olvidar que essa possibilidade conduz a uma manifesta morosidade da realização da justiça.20

Verificando-se uma situação de desrespeito das regras de direito privado por parte do construtor ou empreiteiro, nomeadamente a construção de uma moradia implantada em terreno alheio, bem como uma violação de servidão de direito privado, o terceiro (vizinho) lesado, caso assim o entenda, poderá eventualmente socorrer-se das instâncias judiciais (tribunais comuns) para fazer valer e proteger os seus legítimos interesses, mesmo no caso em que a edificação tenha

18Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Lições, 14.ª Edição, 2015, Almedina, p. 144.

19Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa..., ob. Cit. p. 144.

sido realizada em total conformidade com a respetiva licença construtiva, emitida pelo Município territorialmente competente.

Contudo, não podemos deixar de salientar que esta solução representará sempre uma maior onerosidade para o terceiro de boa-fé que vê os seus interesses e direitos afetados pela atuação, não raras vezes, dolosa por parte dos interessados no procedimento de licenciamento administrativo.

Refira-se que os donos da obra ou requerentes do licenciamento administrativo com interesse na realização de uma determinada operação urbanística, para além de omitirem direitos de terceiros de boa-fé, por vezes, arrogam-se detentores de direitos que não possuem ou, então, omitem direitos legítimos de terceiros, com o fito de alcançarem os seus próprios objetivos construtivos, alheios e com desrespeito pelos direitos de outrem.

Frequentemente, surgem situações incómodas e desfavoráveis para os vizinhos ou terceiros de boa-fé que, por razões de desconhecimento, por motivos económicos ou de outra ordem (por exemplo por motivos de doença) ou por qualquer outro motivo, somente após a obra se encontrar parcial ou totalmente concluída é que recorrem às vias judiciais para resolverem os litígios resultantes da atuação dolosa dos donos de obra, que deliberadamente omitiram elementos e pressupostos importantíssimos em sede de procedimento administrativo.

Perante tal realidade, questiona-se se não seria mais fácil, adequado e justo (para todos), evitando trabalhos e despesas completamente evitáveis, caso os municípios tivessem apreciado, ab initio, os direitos de cariz privatístico, eventualmente conflituantes, que subjazem ao pedido de licenciamento ou apresentação da comunicação prévia, ou até, quiçá, na formulação dos pedidos de informação prévia junto da administração local.

Questiona-se, ainda, se não seria mais eficaz e assertivo caso o procedimento administrativo levado a cabo pela administração local procedesse à análise prévia e atempada das questões que se prendem com o direito privado dos munícipes intervenientes, bem como em relação aos direitos e interesses legítimos de terceiros de boa-fé, que possam vir a ser lesados com a atuação e decisão tomada pelo município.

A fim de evitar males maiores e prejuízos para os vizinhos e/ou terceiros de boa-fé, melhor seria que a apreciação realizada pela autarquia relativamente a questões de direito privado fosse tida em conta desde o nascimento do próprio procedimento administrativo evitando-se assim que a obra fosse sequer iniciada e muito menos realizada, como não raras vezes sucede no atual

Por isso, revela-se de extrema importância evitar, a tudo custo, que o terceiro de boa-fé tenha forçosamente de se socorrer das instâncias judiciais, a posteriori, junto dos tribunais comuns, por serem estes materialmente competentes, sempre que pretenda dirimir os conflitos decorrentes da realização de obras com violação de direito privado, quando na verdade essa preocupação deveria ter sido acolhida pela administração local, a fim de evitar que os licenciamentos e comunicações prévias tivessem um início “com vícios” e incorreções.

Como é consabido, esses conflitos decorrentes do exercício legitimado para a realização de operações urbanísticas, muitas das vezes em estado avançado de construção, para além de representarem maior morosidade para o terceiro de boa-fé, também lhe causa mais contratempos, acarretando-lhe, indubitavelmente, maiores custos.

Convém não olvidar que, por diversas vezes, o dono da obra com o intuito de executar determinada operação urbanística, seja a construção de uma habitação, anexo agrícola, muro, instalações industriais, ou quaisquer outras obras de construção civil, omite deliberadamente à administração local direitos que oneram o imóvel onde pretende edificar, com inevitável prejuízo para terceiros de boa-fé.

Não podemos deixar de nos questionar, com alguma inquietação, relativamente à melhor solução a adotar perante situações extremas e lesivas para terceiros de boa-fé, como por exemplo nos casos em que o dono da obra obteve (legitimamente) uma licença construtiva emanada pela entidade legalmente competente – município – para edificar uma moradia, mas onde se verifica total violação de normas de direito privado, nomeadamente a verificação de emissão de fumo, a produção de ruídos para a vizinhança, ou total desrespeito por uma servidão de vistas, conforme vem previsto nos artigos 1346.º e 1360.º do Código Civil.

Importará não descorar que sendo a licença de construção legitimadora da execução de uma operação urbanística, sempre haverá repercussões, direta ou indiretamente, na esfera jurídica de terceiros, o que doutrinalmente se designa por efeitos jurídicos multipolares ou poligonais.

Na senda do entendimento de GOMES CANOTILHO, o procedimento de licenciamento não se circunscreve unicamente a uma relação bilateral entre a Administração e o particular, mas antes, estende-se por diversas relações onde se interpenetram, em conflito, interesses públicos e interesses privados.

Na realidade, “uma relação jurídica, enquanto relação social disciplinada pelo direito, pressupõe um relacionamento entre dois ou mais sujeitos, que seja regulado por normas jurídicas

das quais decorrem as posições jurídicas, activas (direitos) e passivas (deveres), que constituem o respectivo conteúdo”. 21

Poder-se-á assim confirmar que “[a]s relações jurídicas de direito administrativo são relações jurídicas públicas - seguindo um critério estatutário, que combina a qualidade pública dos sujeitos, a natureza pública dos fins e a especificidade pública (prerrogativas de autoridade) dos meios utilizados -, isto é, aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público ou de um dever público, conferido ou imposto com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.22

Para JOÃO MIRANDA o urbanismo é um dos setores da atividade administrativa mais propício à formação de relações jurídicas administrativas multilaterais.23

Esclarece o autor, “a propósito do poder de licenciamento de operações urbanísticas, que o legislador português não utiliza a expressão «sob reserva dos direitos de terceiros», mas pode extrair-se do artigo 4.º do Regulamento Geral da Edificação e Urbanização (RGEU) a necessidade de acautelar os direitos de terceiros «a concessão de licença para a execução de qualquer obra» não prejudica a obrigatoriedade de os trabalhos serem realizados em «obediência a outros preceitos gerais ou especiais a que a edificação, pela sua localização ou natureza, haja de subordinar-se».24

Esta situação não é ímpar porquanto relativamente ao procedimento de licenciamento, também se põe o problema da proteção de terceiros no direito espanhol.25

21JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 3.ª Edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, p. 61.

22JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, ob. Cit. p. 61.

23JOÃO MIRANDA, A função pública urbanística e o seu exercício por particulares, Coimbra Editora, 2012, p. 497.

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