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CAPÍTULO 2 – NOS TEMPOS DA FÁBRICA CARMEN

2.3 Em meio à fantasmagoria, possibilidades para uma história em aberto

Nesse território fabril havia a teatralização do poder dos empresários,202 encenando situações que poderiam ser mais favoráveis ao operário, embora reproduzisse ali os próprios interesses em diversos cenários, quer na fábrica, nas ruas da vila operária, quer nas próprias moradias. A disciplina industrial atuava no interior da produção, mas também fora dela. Abrangia todos os aspectos da vida cotidiana, vigiando e punindo para assegurar a produção; inclusive, nas horas de lazer, quando buscavam moldar formas de pensar, sentir, agir e colaborar, erradicando práticas e hábitos considerados perniciosos e prejudiciais aos interesses patronais. A manutenção do corpo produtivo ocorria não somente nas condições físicas do trabalhador, mas também ao produzir um sentimento de colaboração, a exemplo da gestão do Grupo Othon ao instituir uma moral com apelo aos valores familiares.

Nas diversas administrações dos grupos empresariais que detiveram a propriedade jurídica da fábrica, paulatinamente foram ampliadas suas teias no controle da produção e disciplina do trabalho. Foi sendo constituída, ainda no tempo da Companhia União Mercantil, uma vila operária associada à fábrica. Com o passar do tempo, gestões e crescimento demográfico, esse território, já nos tempos da administração Othon e Fábrica Carmen, Fernão Velho tornava-se um consolidado território fabril formado por fábrica com vila operária. Nesta, todo um cotidiano, dentro e fora da fábrica, era praticado, expressando múltiplas sociabilidades do fazer-se operário, sobretudo na sua resistência à disciplina, nas lutas políticas e cotidianas que se sucederiam, configurando os embates contra as máquinas, patrões, polícia, governos, entre outros que tentassem subjugá-los.

À medida que a disciplina dos corpos e comportamentos sacralizava um ideal de trabalhador, a resistência contra as precárias condições de vida e trabalho expressava a profanação desse território idealizado pelos industriais. Os cenários de lutas e tensões imersas nesse território emergem com diversas cenas de embates em torno da cidadania e direitos sociais no Brasil entre as décadas de 1940 e 1960, reconfigurando esse território fabril, como também febril.

São experiências e tempos que se abrem para a compreensão e explicação no campo da história, possibilitando inúmeras incursões e deslocamentos, mobilizando as memórias produzidas sobre os operários, o vivido, o trabalho, a fábrica; que possibilitam explorá-las na

tessitura narrativa de múltiplos e simultâneos tempos e espaços, do constituir-se operário como experiência histórica, do sonhar sobre uma nova época.

No dia 5 de agosto de 1997, às 7h45, soou novamente a sirene da Fábrica. Foi um toque longo e estridente, mais do que era costume. Sinalizava o retorno do funcionamento da produção. Em frente aos portões, os operários e sua família, diretores e gerentes, e antigos funcionários aposentados comemoravam. “Foi uma verdadeira festa onde a euforia e a emoção, traduziam um enorme contentamento nos semblantes alegres do povo com abraços, muitos fogos de artifícios e finalmente lágrimas rolando sobre as faces, mas de alegria e felicidade.”203

Plausivelmente celebravam a continuidade do trabalho como atividade essencial para manutenção da vida – biológica e material – humana, produtora de um mundo artificial que nos circunda e que consumimos,204 um processo de transformação da natureza e do próprio humano em si mesmo. Afinal, o trabalho operário e a fábrica serviam como referência de pertencimento de todos naquele lugar, suscitando rememorar o passado e sua continuidade no presente quando posto em suspenso na paralisação da produção em 1996. Também, como poderia sugerir o filósofo Walter Benjamin, demarcavam o despertar do sonho de uma nova época, que mesmo após uma economia de mercado que ensejou sua paralização, tornava ainda possível a continuidade da experiência fabril e operária, mantendo a história em aberto.

Narrar o passado, em conjunto com um trabalho de reminiscência, torna-se um ato de luta contra a possível perda de pertencimento ao presente. Desse modo, poderíamos, de alguma maneira, despertar a possibilidade de uma existência futura que não seja apenas as ruínas fantasmagóricas dos monumentos da burguesia, mas também da atualização histórica da experiência operária.

203 FERREIRA, 1997, p. 17.

PARTE 2

FERNÃO VELHO, VILA OPERÁRIA:

CULTURA, SOCIABILIDADES E TRABALHO

CAPÍTULO 3

NO FRENESI DE UMA VILA OPERÁRIA

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um de seus momentos. E cada momento vivido transforma- se numa citation à l’ordre du jour – e esse dia é justamente o do juízo final.205

As experiências decorrentes dos tempos da administração dos Othon, que perdurou ao longo de cinquenta e três anos, mobilizando diferentes gerações de trabalhadores, é o período mais rememorado por todos que ainda vivem em Fernão Velho. Temporalidade essa que, dada sua amplitude, exige-me um recorte para a construção dessa narrativa. Nesse caso, limito-me à década que antecedeu essa gestão, e aos anos 1950 e 1960, muito embora reconheça que, na atividade de reminiscência entre o lembrar e o esquecer, as memórias são passíveis de deslocamentos para outras temporalidades e experiências.

Torna-se, então, necessário o rastreamento das práticas sociais e culturais, das formas como sujeitos são mediados por distintas instâncias, propiciando a produção e o compartilhamento de valores éticos e conjunto de costumes e sociabilidades, formas de viver e habitar um território cujo conteúdo pretende-se tornar crível nesta narrativa historiográfica.

Não se trata de uma escrita como destino depositário de tradições ou conjunto de esquemas capazes de compreender a cultura somente como um código comum entre os membros da sociedade. Ao contrário, uma construção narrativa historiográfica na qual penso as práticas culturais de forma dinâmica, em diferentes níveis e relações, com correspondência entre práticas individuais e condições sociais de existência, uma subjetividade socializada. Em grande parte, essas práticas culturais e sociais decorrem de experiências que se constituem como um saber não sabido que não pertence a ninguém,206 mas, ao mesmo tempo, a todos que as compartilharam e praticaram.

205 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história (1940). In: ______. Magia e técnica, arte e política:

ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 222-232. (Obras Escolhidas, v. 1). p. 223. Disponível em: < https://monoskop.org/images/3/32/Benjamin_Walter_Obras_escolhidas_1.pdf>. Acesso em: 21 maio 2015.

206 CERTEAU, Michel. As artes de fazer. In: ______. A invenção do cotidiano. 16. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,

Um saber que circula entre as memórias e histórias dos seus praticantes, entrecruzado com outras fontes. Mobilizando as memórias desses sujeitos – protagonistas (operários e operárias) –, coloco-me a narrar experiências cotidianas e históricas em Fernão Velho por um movimento como o de um pedestre, que transita esse território de outrora, perdendo-se e se reencontrando. Nesse “transitar”207 por Fernão Velho, é possível explorar seu território fabril,

identificar pontos de sequenciamento de espaços-cenários como se fossem lugares de memórias.208

Não se trata de “falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos[...]”como desejava Kublai Khan na cidade de Zaíra. Contrariando-o, Marco Polo, que contava para Kublai as histórias de suas viagens e cidades visitadas, afirmava que a cidade não é feita somente dessa materialidade que torna a existência humana invisível.

A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: [...] os rasgos nas redes de pesca e os três velhos remendando as redes que, sentados no molhe, contam pela milésima vez a história da canhoneira do usurpador... [...] A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado

por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.209

Kublai Khan e Marco Polo, assim como múltiplas cidades, são todos personagens do escritor Ítalo Calvino em seu romance As cidades invisíveis. Com esse diálogo, o romancista nos enseja outras trilhas a seguir: a evidência das memórias dos velhos contadores de histórias sobre a cidade, as relações entre as medidas do espaço e seus acontecimentos do passado, ambos constitutivos de memórias marcadas por rastros e experiências do passado, como os segmentos destacados por Marco Polo, um viajante-narrador exemplar.

207 A ideia de trânsito decorre da noção de trajetória utilizada por Michel Certeau em A invenção do cotidiano: artes de fazer. Nessa obra, opera a trajetória como um trajeto de pessoas em uma cidade. Ao aventurar-se no

delineamento de um trajeto, é possível desvelar espaços, experiências e sensações. Essa categoria não deve ser confundida com o conceito de “trajetória” usado para designar um tipo de trabalho historiográfico que se dedica a narrar, analisar e compreender o processo de constituição social e histórico de sujeitos, de personagens singulares cujos estudos de sua vida permitem também a compreensão de seu mundo.

208 Segundo Pollak, os lugares de memória vinculam a datas, tradições, costumes, regras sociais, formas de

socialização e interação, entre outras. São referências indiciárias de memórias compartilhadas socialmente, possibilitando reconhecê-las em um grupo social, como os operários da indústria têxtil em Fernão Velho. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.

Porém, no âmbito da narrativa, o desvelar é seletivo e produz outras invisibilidades nas tensões, disputas e negociações entre memórias. O esquecimento em nossa relação com o tempo, portanto, é também uma dimensão em que se produz o invisível. O esquecimento, além de possibilitar a invisibilidade da cidade com seus acontecimentos e relações, torna também plausível a perenidade da existência humana e de seus legados capazes de nos proporcionar ensinamentos sobre a vida.

A cidade humana – que, em alusão ao romancista Ítalo Calvino, é composta por memórias, histórias, segmentos riscados e espaços múltiplos – torna-se visível na medida em que reconhecemos nela suas tramas e outras histórias a serem descortinadas, tornando-se críveis por meio da narrativa. Conta-se, desse modo, uma história de existência humana da qual a cidade faz parte. Existência passível de reconhecimento como lugares de pertencimento e experiências, de transformações e expectativas, como Fernão Velho, um território que pulsa com a vida de seus operários em diferentes temporalidades.

Trata-se de um movimento de ir e vir através de um tempo móvel e entrecruzado, mergulhando no trabalho de compreensão de experiências e tempos em aberto. Ou ainda, como sugere a historiadora Regina Beatriz Guimarães Neto, operar um tempo plural e passível de múltiplas leituras, “considerando a importância das recordações para salvar as ações humanas do esquecimento”.210

Desse modo, pretendo em minha narrativa, neste capítulo, estreitar o diálogo com o relato de operários e operárias, os quais carregam, em sua memória, as marcas do passado, com diversos indícios de sociabilidades e práticas culturais, assim como interpretações de mundo. São relatos de experiências sem sequenciamento linear, constituindo histórias narradas.211 Resultam de memórias compostas por lembranças que se apresentam de forma fragmentária, e evidenciam acontecimentos que muitas vezes não existem entre os registros escritos que pesquisei, e, quando existem, possibilitando o cruzamento entre fontes, têm outras representações. Sobre determinadas questões, quando formuladas nas entrevistas realizadas para o registro desses relatos, houve silêncio, o que pode ser representação de esquecimentos. Nesses casos, entendo que esquecer não representa o vazio de memória, mas um tipo de memória que opera espontaneamente e no inconsciente na ordem do involuntário; daí seu distanciamento da lembrança.212

210 GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Cidades da mineração: memórias e práticas culturais: Mato Grosso na

primeira metade do século XX. Cuiabá: EdUFMT, 2006. p. 54.

211 Ibid., p. 59.

212 RICOEUR, Paul. O esquecimento. In: A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Ed. da

Nesse ensejo, resistir contra as possibilidades permanentes de esquecimento, as lembranças dos operários remetem às múltiplas histórias de acontecimentos, “sem distinguir os grandes e os pequenos”, e considero, em diálogo com Walter Benjamin, que no trabalho de história não podem ser desconsiderados, apropriando-se assim totalmente desse passado lembrado e esquecido, tornando-o citável como integrantes de narrativas historiográficas. Dessa forma possibilita recuperar a riqueza da experiência operária e seu legado como ensinamento sobre a vida que pulsava em toda sua intensidade em Fernão Velho.