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Antes da chegada dos europeus à América, o continente existia como em outra “dimensão”, se comparado à Europa. Trata-se de uma dimensão igualmente física, mas uma existência paralela e invertida em muitos aspectos. Era um outro e novo mundo, como mostraram as impressões registradas não apenas pelos navegadores que cá estiveram, mas também pelos autores quinhentistas e seiscentistas que escreveram sobre tantas de suas experiências e sobre o modo de vida da nova terra. A terra já era “mundo” antes do descobrimento.

II.1 O Brasil Antes dos descobrimentos

Quando os europeus começaram a colonizar a América no final do século XV encontraram um continente vivo e ativo. Longe daquela ideia de “fronteira selvagem” que geralmente se defende, havia milênios o continente estava todo habitado por populações

de povos divididos em inúmeras sociedades, tipicamente organizadas, desde caçadores e coletores até aldeias agrícolas autônomas ou articuladas politicamente. Havia, até mesmo, estados mantidos por meio de técnicas que incluíam o plantio intensivo. Estendiam-se por uma gama diversificada de climas, geografia e vegetação, incluindo aí matas e cerrados tropicais, regiões semiáridas, campos temperados, planícies e montanhas. Existiam também inúmeras línguas e, consequentemente, diversas cosmovisões (Melatti, 2007, p. 17).

Com base em um número crescente de evidências, estudiosos atuais concluem que o Brasil já era habitado desde o Pleistoceno, ao menos em seus últimos milênios. O Pleistoceno é o período que compreende a última divisão da era Cenozóica. Acredita-se que o território que compreende o Brasil atual não foi coberto por qualquer das quatro ou cinco glaciações que se supõe terem ocorrido no Pleistoceno, mas certamente foi afetado com a queda de temperatura, alteração no ciclo e índice pluviométrico, diminuição da floresta equatorial, aumento das araucárias e diminuição do nível do oceano. Certamente, todos esses fatores ecológicos influíam na mobilidade dos habitantes da terra naquela época. Foi no transcorrer do Pleistoceno que os seres humanos conviveram com gigantescos mamíferos, hoje extintos, como no caso brasileiro os megatérios (preguiças gigantes) e gliptodontes (tatus gigantes). Segundo os cientistas, o Pleistoceno se encerrou há cerca de doze mil anos, com o recuo da última era glacial, inaugurando o atual período, conhecido como Holoceno. No Brasil há diversos sítios, a maioria no Planalto Central, que atestam a presença humana em períodos anteriores ao Holoceno. Os locais estudados que apresentam época mais recuada de habitação são os do sudeste do Piauí, onde estima- se apontar para datas entre catorze mil e 48 mil anos atrás (Melatti, 2007, p. 18).

A seguir, temos as tradições arcaicas:

Com o recuo definitivo da última glaciação, tem início o Holoceno. Mas nem o nível do mar, o clima, a vegetação ou a fauna mudaram imediatamente para uma configuração mais próxima da dos dias de hoje. Houve uma mudança gradual, durante a qual perduraram alguns mamíferos hoje extintos. Holoceno é o nome de um período geológico. Do ponto de vista cultural, o período que se inicia com essas mudanças a que os grupos humanos têm de se adaptar é chamado de Arcaico. O Arcaico perdura desde 10 mil a.C. até a consolidação da agricultura e da cerâmica, que não ocorre simultaneamente em todos os lugares. Se no Arcaico antigo o modo de vida ainda se parece muito com o do período que o precedeu, no presente se manifestam os primeiros ensaios

de plantio de vegetais e confecção de cerâmica. Não há, pois, limites rígidos que marquem seu início nem seu final. No médio e baixo curso do rio Amazonas, ilha de Marajó e faixa costeira vizinha, ele termina poucos milênios antes da era Cristã. No litoral do sudeste e do sul do Brasil, depois do início desta (Melatti, 2007, pp. 20, 21).

Há apreciável material encontrado do período Arcaico, o que dá aos arqueólogos a condição de classifica-los em suas tradições, tais como: artefatos, construções, organizações espaciais, obras de arte segundo a persistência temporal na aplicação de determinadas técnicas. A arte cerâmica mais antiga foi encontrada no Amazonas, em um sambaqui marítimo chamado Mina, na costa do Pará, bem como, em Taperinha, um sítio fluvial no rio Tapajós. No sambaqui de Mina, acredita-se que as peças de cerâmicas ali encontradas remontem a 3.200 a.C. Já as de Taperinha alcançam entre 5 mil e 4 mil a.C., as mais remotas encontradas nas Américas, mais antigas, até mesmo, que a cerâmica andina. Além disso, há ainda a arte rupestre. Há inúmeras localidades, especialmente no Planalto Brasileiro, onde se encontram desenhos de vários temas, pintados ou gravados em paredes naturais, em entradas de grutas e rochas em trechos de rios encachoeirados. É difícil precisá-los, mas supõe-se que datam do período Arcaico e do período cerâmico (Melatti, 2007, pp. 21, 22, 25).

Importante sítio também foi encontrado na Ilha de Marajó. Com uma área de aproximada de 50 mil km2, a importância arqueológica da ilha está relacionada com

grandes tesos que ocorrem em sua parte centro-oriental. Tratam-se de aterros artificiais construídos sob campos inundáveis que eram utilizados com objetivos habitacionais, religiosos e/ou funerários. Ficam elevados entre três e vinte metros do solo da atual planície, tendo em média sete metros de altura. Estima-se que começaram a surgir no quarto século a.C. e, aparentemente, foram feitos em vários estágios que se sucederam até os séculos XIII e XIV. A maioria deles tem cerca de 1 a 3ha, mas podem alcançar dimensões muito maiores. Anna Roosevelt, que liderou um grande projeto arqueológico na região nos anos de 1980, acredita que é possível que sobre os maiores sítios estavam vilas que abrigavam entre 1 e 5 mil habitantes, podendo mesmo chegar a 10 mil onde múltiplos aterros articulavam-se entre si. Neste caso, teríamos um exemplo de urbanidade. Estima a população total da área em algo que compreende 100 a 200 mil pessoas, resultado de uma densidade demográfica de 5 a 10 habitantes por km2. No

uma vez que não se sabe se os tesos foram ocupados simultaneamente e se todos eram para fins habitacionais (Fausto, 2000, pp. 26, 27).

Além dos aterros, chama a atenção dos arqueólogos a magnífica cerâmica marajoara que não encontra paralelo, por seu refino e sofisticação, na Amazônia indígena nem mesmo em nossos dias, embora possam ser comparados às cerâmicas pré-coloniais, como a da cultura Santarém.

Os tesos contém cemitérios, onde se encontra cerâmica policrônica (nas cores vermelho, preto e branco), ricamente decorada, com grafismos pintados ou incisos, além de apliques em alto relevo com representações de homens e animais. As peças de maior dimensão são urnas funerárias, contendo esqueletos bem-preservados. A interpretação desse complexo mortuário é ainda incerta; sequer sabemos quais indivíduos eram sepultados nas urnas. Haveria uma distinção entre as formas funerárias de uma elite e as de gente do comum, ou eram o sexo e a idade do morto os fatores determinantes? Estaria o sepultamento em belos potes de cerâmica associado a um culto aos ancestrais (tal qual o conhecemos nos Andes, mas que é raro na Amazônia indígena hoje)? (Fausto, 2000, p. 27).

Considerações atuais tentam conectar os achados arqueológicos com as tribos indígenas conhecidas, mesmo aquelas cuja existência conhecemos apenas por relatos históricos. Há algum tempo, arqueólogos chamam a determinado modo de ornamentação e de fazer cerâmica de Tupiguarani, alusão direta aos ancestrais dos falantes de línguas do tronco de mesmo nome. Dando apoio à tal hipótese está o fato de parte da cerâmica ser policrômica, o que sugere origem amazônica, região onde a família linguística tupi- guarani acha-se bem representada. Se assim for, mostra a mobilidade presente já naquele período. No entanto, a falta de pesquisa no grande arco formado pelos rios Amazonas, Madeira, Mamoré e Guaporé, onde residiam as tribos do tronco tupi, para ratificar a teoria com outros achados, mantém a ideia ainda no campo hipotético. Por não poder afirmar que todos os grupos que confeccionavam cerâmica nesse estilo eram falantes do tronco tupi, os arqueólogos se referem a tal estilo como “tupiguarani” sem hífen, para designar não a língua propriamente dita, mas a peculiar característica da cerâmica (Melatti, 2007, pp. 26, 27).

No documento BR 1500: o caminho da construção do Brasil (páginas 96-100)