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Hibridação biológica x hibridação cultural

IV. HIBRIDAÇÃO

IV.2 Hibridação biológica x hibridação cultural

Certamente, há aqueles que resistem à ideia de submeter ao mesmo conceito experiências e dispositivos tão diferentes entre si, ainda mais, quando se considera que o termo “híbrido” veio de empréstimo da biologia. Tal fato faz com que alguns oponentes do emprego sociocultural do termo indicassem que, em sua área de origem, o hibridismo está carregado de efeitos colaterais danosos, como a esterilidade. Podemos acrescentar que causa também profundas alterações na estrutura biológica do ser, como o gigantismo, que pode ser observado atualmente no caso dos “ligres”, cruzamento entre leão e tigre que produz um felino de ainda maiores proporções.5 Canclini rebate o argumento

indicando o quanto tem sido benéfico o cruzamento genético entre plantas, resultando melhor qualidade, produção e resistência: “A hibridação de café, flores, cereais e outros produtos aumenta a variedade genética das espécies e melhora sua sobrevivência ante mudanças de habitat ou climáticas” (Canclini, 2013, pp. xx, xxi).

4 A hibridação também ocorre na música: “Algo frequente como a fusão de melodias étnicas com música

clássica e contemporânea ou com o jazz e a salsa pode ocorrer em fenômenos tão diversos quanto a chicha, mistura de ritmos andinos e caribenhos; a reinterpretação jazzística de Mozart, realizada pelo grupo afro- cubano Irakere; as reelaborações de melodias inglesas e hindus efetuadas pelos Beatles, Peter Gabriel e outros músicos. Os artistas que exacerbaram esses cruzamentos e os converteram em eixos conceituais de seus trabalhos não o fazem em condições nem com objetivos semelhantes. Antoni Muntadas, por exemplo, intitulou Híbridos o conjunto de projetos exibidos em 1988 no Centro de Arte Rainha Sofia, de Madri. Nessa ocasião, insinuou, mediante fotos, os deslocamentos ocorridos entre o antigo uso desse edifício como hospital e o destino artístico que depois lhe foi dado. Em outra ocasião, criou um website, o hybridspaces, no qual explorava montagens em imagens arquitetônicas e midiáticas. Grande parte de sua produção resulta do cruzamento multimídia e multicultural: a imprensa e a publicidade de rua inseridas na televisão, ou os últimos dez minutos da programação, da Argentina, do Brasil e dos Estados Unidos, vistos simultaneamente, seguidos de um plano-sequência que contrasta a diversidade da rua nesses países com a homogeneidade televisiva” (Canclini, 2013, p. xx).

5 O ligre (em inglês: Liger) é um animal híbrido resultado do cruzamento entre um leão macho e uma

tigresa. O seu aspecto é de um gigantesco felino dourado com listras difusas, e que pode ou não ter uma pequena juba. É atualmente, o maior felino do mundo, possuindo até 3,3 metros de comprimento. O maior ligre do mundo e maior felino vivo, segundo o Guinness book é Hércules, que pesa 418 kg, possui 3,33 metros de comprimento total incluindo a cauda, e 1,25 metros na altura da cernelha. Hércules é considerado o maior felino do mundo. Contudo, medidas semelhantes já foram constatadas em um Tigre-siberiano de cativeiro chamado Jaipur. Os machos de ligre são estéreis, pois o número de cromossomos do tigre e do leão são pares, mas diferentes, assim o ligre tem um número ímpar de cromossomos graças ao processo da meiose que ocorre na formação dos gametas femininos e masculinos (óvulos e espermatozóides, respectivamente). Porém as fêmeas são capazes de se acasalar com outro animal com características parecidas, como com um tigre ou leão puros (Wikipédia).

Certamente, não concordamos com a argumentação de Canclini. Os desastres causados pelos transgênicos não compensam nenhum suposto benefício. O cultivo em larga escala de cereais geneticamente modificados tem provocado a extinção das espécies nativas devido ao cruzamento espontâneo e inevitável com lavouras próximas que cultivam a planta transgênica. Além disso, as hibridações que ocorrem no campo sociocultural coletivo não são planejadas pelos homens e não podem ser controladas. São espontâneas e aleatórias, segundo o contato entre culturalmente diferentes. Mesmo quando a vontade de “senhores” e “proprietários” causaram o híbrido mestiço, como o cruzamento entre brancos e índios e entre índios e negros, embora realmente se determinou o resultado genético, não se pôde fazer o mesmo com o produto cultural. Diferente de uma semente, seres humanos têm intelecto e vontades que interagem e integram aquilo que aceitam ou rejeitam. Levando o raciocínio de Canclini mais à frente, concluiríamos que o homem pode (e deve!) planejar hibridismos culturais, como que manipulados em laboratório. É certo que há hibridismos culturais no campo das artes, onde o autor consciente e deliberadamente mistura elementos culturais diferentes, mas não sou obrigado a gostar de todas as combinações e assim assimilá-las. Isso é muito diferente da ideia de determinar hibridismos e seus resultados, conclusão aparentemente inescapável na comparação com a planta transgênica. Que fique claro: nossa objeção não é ao conceito de hibridação proposto por Canclini, mas à sua argumentação genética para responder aos críticos que se valem do seu conceito na biologia. Acreditamos que a espontaneidade na hibridação é fundamental para a liberdade humana. Ela só é legítima quando ocorre dentro de trocas culturais que se dão naturalmente. Deve-se evitar qualquer noção que sugira a diversidade como uma obrigação imposta pelo outro.

Para justificar o uso de um conceito biológico nas ciências sociais, Canclini aponta para a utilização de termos emprestados de outras áreas do saber, por eminentes estudiosos:

De todo modo, não há porque ficar cativo da dinâmica biológica da qual toma um conceito. As ciências sociais importaram muitas noções de outras disciplinas, que não foram invalidadas por suas condições de uso na ciência de origem. Conceitos biológicos como o de reprodução foram reelaborados para falar de reprodução social, econômica e cultural: o debate efetuado desde Marx até nossos dias se estabelece em relação com a consistência teórica e o poder explicativo desse termo, não por uma dependência fatal do sentido que lhe atribuiu outra ciência. Do mesmo modo, as polêmicas sobre o emprego metafórico de conceitos econômicos para examinar processos simbólicos, como o faz Pierre Bourdieu ao referir-se ao capital cultural e aos mercados

linguísticos, não têm que centrar-se na migração desses termos de uma disciplina para outra, mas, sim, nas operações epistemológicas que situem sua fecundidade explicativa e seus limites no interior dos discursos culturais: permitem ou não entender melhor algo que permanecia inexplicado? (Canclini, 2013, p. xxi).

Foram as abordagens linguística (Bakthin, Bhabha) e social (Friedman, Hall, Papastergiadis) do conceito de hibridismo que libertaram definitivamente o debate das amarras biológicas, essencialistas de identidade e da pureza cultural. Além disso, tais estudos renderam contribuições significativas que identificam e explicam alianças fecundas: “por exemplo, o imaginário pré-colombiano com o novo-hispano dos colonizadores e depois com o das indústrias cultuais (Nernad; Gruzinski), a estética popular com a dos turistas (De Grandis), as culturas étnicas nacionais com as das metrópoles (Bhabha) e com as instituições globais (Harvey)”. Ainda que pouco material tenha sido escrito sobre a “história das hibridações puseram em evidência a produtividade e o poder inovador de muitas misturas interculturais” (Canclini, 2013, pp. xxi, xxii).

Certamente, há exemplos de hibridação planejada, como já nos referimos, especialmente vista no campo das artes, misturando tendências e estilos. Aquela que é espontânea é a que ocorreu como fruto de processos migratórios, turísticos e mesmo no intercâmbio econômico e comunicacional: “frequentemente a hibridação surge da criatividade individual e coletiva. Não só nas artes, mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico”. Em outras palavras, hibridismo é o resultado do vivido, especialmente em um mundo midiático. Dessa forma, explica Canclini: “Busca-se reconverter6 um patrimônio (uma fábrica, uma capacitação profissional, um conjunto de

saberes e técnicas) para reinseri-lo em novas condições de produção e mercado” (Canclini, 2013, p. xxii).

6Esclareçamos o significado cultural de reconversão: este termo é utilizado para explicar as estratégias

mediante as quais um pintor se converte em designer; ou as burguesias nacionais adquirem os idiomas e outras competências necessárias para reinvestir seus capitais econômicos e simbólicos em circuitos transnacionais (Bourdieu). Também são encontradas estratégias de reconversão econômica e simbólica em setores populares: os migrantes camponeses que adaptam seus saberes para trabalhar e consumir na cidade ou que vinculam seu artesanato a usos modernos para interessar compradores urbanos; os operários que reformulam sua cultura de trabalho ante as novas tecnologias produtivas; os movimentos indígenas que reinserem suas demandas na política transnacional ou em um discurso ecológico e aprendem a comunica- las por rádio, televisão e internet. Por essas razões, sustento que o objeto de estudo não é a hibridez, mas, sim, os processos de hibridação. A análise empírica desses processos, articulados com estratégias de reconversão, demonstra que a hibridação interessa tanto aos setores hegemônicos como aos populares que querem apropriar-se dos benefícios da modernidade (Canclini, 2013, p. XXII).

Hibridação não se aplica, tão-somente, à descrição de misturas interculturais. Deve ser usado como ferramenta hermenêutica para interpretar as “relações de sentido que se reconstroem nas misturas” (Canclini, 2013, p. xxiv). É por isso que, embora “mestiçagem” possa ter sido suficiente para explicar os cruzamentos ocorridos entre ameríndios, portugueses e africanos no Novo Mundo, é insuficiente para explicar o que ocorre na pós-modernidade.

A mistura de colonizadores espanhóis e portugueses, depois de ingleses e franceses, com indígenas americanos, à qual se acrescentaram escravos trasladados da África, tornou a mestiçagem um processo fundacional nas sociedades do chamado Novo Mundo. Na atualidade, menos de 10% da população da América Latina é indígena. São minorias também as comunidades de origem europeia que se misturaram com os nativos. Mas a importante história de fusões entre uns e outros requer utilizar a noção de mestiçagem tanto no sentido biológico – produção de fenótipos a partir de cruzamentos genéticos – como cultural: mistura de hábitos, crenças e formas de pensamento europeus com os originários das sociedades americanas. Não obstante, esse conceito é insuficiente para nomear e explicar as formas mais modernas de interculturalidade (Canclini, 2013, p. XXVIII).

A mestiçagem deve ser estudada como combinação identitária, não antropologia física. Ela foi analisada por muito tempo segundo o prisma da antropologia física. Era assim que se classificavam índios, negros e as mulheres. No entanto, Canclini argumenta, hodiernamente é no domínio das combinações identitárias que a mestiçagem é estudada. Assim, em ciências correlatadas tais como a antropologia, os estudos sociais e a política, é percebida no âmbito das formas de convivência multicultural (Canclini, 2013, p. xxviii). Para Canclini, é preferível a expressão hibridismo religioso ao invés de sincretismo. Embora seja correto falar sobre sincretismo, Canclini é favorável a examinar as misturas religiosas e as complexas fusões de crenças também como hibridismos. Explica que o crescimento da imigração a partir do século XIX, aliado à enorme propagação intercontinental de crenças e rituais, causaram notável hibridação, bem como, maior tolerância a elas. Um fenômeno consequente é a pluralidade religiosa, algo que se tornou comum em países como Brasil, Cuba, Haiti e Estados Unidos. Dessa forma, denominar-se católico não impede que o indivíduo frequente com assiduidade um culto afro-americano ou uma cerimônia de new age. Canclini argumenta que, se for o caso de considerarmos como práticas sincréticas a adesão a outros sistemas de crenças, não apenas aquelas consideradas estritamente religiosas, tais como medicinas alternativas do

universo ameríndio ou oriental, a abrangência do conceito estende-se enormemente. Por fim, deve-se ainda considerar os casos em que se recorre a ritos específicos de outras religiões, como aqueles que buscam benzimentos no catolicismo popular e curas em ritos católicos ou pentecostais. Quando tratamos de sincretismos envolvendo a busca da restauração da saúde, devemos ainda notar que oportunizam outras misturas e fusões musicais e de “formas multiculturais de organização social”. São exemplo disso o que é visto na santeria cubana, no vodu haitiano e no brasileiríssimo candomblé (Canclini, 2013, p. xxviii).

Outro termo aplicável à hibridação é a crioulização, ou seja, estritamente falando, o resultado de misturas entre as línguas e culturas originais com aquelas dos colonizadores, no contexto do tráfico de escravos. Assim como Canclini se posicionou quanto ao sincretismo, o mesmo ocorre aqui: é preferível o uso de hibridação ao invés de crioulização. Destarte: “Aplica-se às misturas que o francês teve na América e no Caribe (Louisiane, Haiti, Guadalupe, Martinica) e no oceano Índico (Reunião, as Ilhas Maurício), ou o português na África (Guiné, Cabo Verde), no Caribe (Curaçao) e na Ásia (Índia, Sri Lanka)” (Canclini, 2013, pp. xxviii, xxix).

Refletindo o pensamento de Ulf Hannerz, Canclici esclarece que, certamente, muitos fatores interagem na mestiçagem. Alguns deles, tais como os embates entre setores cultos e populares, oralidade e escrita, resultam, no seio de uma dada sociedade, desigualdades de poder, de prestígio e de recursos materiais. O fluxo constante entre centro e periferia, as assimetrias de mercados, de Estados e de níveis educacionais faz- nos entender que a mestiçagem não é um fenômeno meramente ligado à homogeneização e interculturalidade (Canclini, 2013, p. xxix).

Assim, hibridação é conceito superior à mestiçagem, ao sincretismo e à crioulização. Para Canclini, estes termos são insuficientes para denotar ocorrências específicas de hibridação. Parece-nos que seu entendimento é de que a época moderna e pós-moderna trouxe certa obsolescência àqueles primeiros termos devido a novas situações. Por isso, demonstra preferência irrestrita pelo uso de “hibridação” em detrimento daqueles:

Estes termos – mestiçagem, sincretismo, crioulização – continuam a ser utilizados em boa parte da bibliografia antropológica e etno-histórica para especificar formas particulares de hibridação mais ou menos clássicas. Mas, como designar as fusões entre culturas de bairro e midiáticas, entre estilos de gerações diferentes, entre músicas locais e

transnacionais, que ocorrem nas fronteiras e nas grandes cidades (não somente ali)? A palavra hibridação aparece mais dúctil para nomear não só as combinações de elementos étnicos ou religiosos, mas também a de produtos das tecnologias avançadas e processos sociais modernos ou pós-modernos (Canclini, 2013, p. xxix).

Canclini explica que os conceitos de mestiçagem, sincretismo e crioulização, todos contidos, para ele, em hibridação, são empregados para denotar processos tradicionais ou reminiscências de práticas e estruturas de pensamento típicos da pré- modernidade no início da era moderna. Aponta como ambiente da hibridação as regiões lindeiras e as grandes cidades. Assim, os contextos dos usos de hibridação são especificados como sendo as fronteiras que delimitam os países, bem como, as grandes cidades. São eles que, em sua opinião, determinam as formas, estilos e contradições da hibridação. As fronteiras entre os países já não são tão rígidas e determinadas como outrora, assumindo característica um tanto porosa, muros feitos de elementos vazados. Praticamente não é mais possível aludir a uma cultura como uma estrutura monolítica e estanque de uma população que ocupa um dado território. Por outro lado, não sugere que as culturas sejam indeterminadas e amorfas, pois a hibridação ocorre em situações históricas e sociais específicas, sob a ação de sistemas de produção e consumo, como pode ser percebido na vida de migrantes. As cidades, especialmente as megalópoles, são outro elemento que oportuniza a hibridação. Eminentemente multilíngues, portanto, multiculturais, são centros de hibridação, onde se veem com especialidade os conflitos e a criatividade cultural. São apresentados como exemplos Londres, Berlim. Nova York, Los Angeles, Buenos Aires, São Paulo, México e Hong Kong (Canclini, 2013, p. xxx).

O objetivo de Canclini, portanto, é conotar a hibridação para especificar as misturas interculturais eminentemente modernas, dentre as quais, aquelas que são resultantes da integração de Estados nacionais, do populismo como ferramenta política e das indústrias culturais. Para tanto, distinguem-se os conceitos de modernidade, modernização e modernismo. É fato que todos os processos que produzem globalização asseveram ainda mais a interculturalidade na modernidade. Isso se dá por engendrarem mercados financeiros e globais de bens. A interculturalidade é também incrementada pelas mídias de mensagens e o trânsito migratório. O resultado é a diminuição acentuada de fronteiras e alfândegas por um lado, e das tradições locais, por outro. Tal hibridação é produtiva, interativa e apresenta-se na forma de consumo: “Às modalidades clássicas de fusão, derivadas de migrações, intercâmbios comerciais e das políticas de integração

educacional impulsionadas por Estados nacionais, acrescentam-se as misturas geradas pelas indústrias culturais”. Importante é destacar que a tratativa dos movimentos de globalização provoca não apenas a integração e mestiçagens, mas também segregações, vistas nas desigualdades e reações particularizantes (Canclini, 2013, pp. xxx, xxxi).

Concluímos, depois da análise de Canclini, que hodiernamente, os processos de “mistura” em todas as áreas, quer seja racial, étnica, religiosa, bem como, em qualquer questão cultural, enquadrariam-se no conceito de hibridação. Certamente, isso não invalida necessariamente o uso dos termos específicos para se referir às misturas estritas, tais como: mestiçagem, sincretismo, crioulização, etc. Aparentemente, o citado autor está refletindo a época atual, globalizada, inclusiva e geral. Resumindo todos os tipos de sínteses a um só termo, usa-o para analisar uma única realidade mundial intercultural. Quando cruzamos a realidade atual com aquela do Brasil colônia e império, percebemos os hibridismos antigos ocorrendo de forma morosa, no ritmo e dependente da lenta ocupação do território. Enquanto portugueses, ameríndios e africanos se deslocavam para entrar em contato, hoje tal ocorre pela mediação midiática. As fronteiras são cruzadas sem sair da própria casa, pois o que circula e percorre o mundo é a informação, quer seja monetária, científica, turística ou outras.