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Fronteira e Urbanização: Conceitos Fundamentais à Mobilidade Atual

VI. CULTURA CONTEMPORÂNEA

VI.4 Fronteira e Urbanização: Conceitos Fundamentais à Mobilidade Atual

VI.4.1 Fronteira

Refletir sobre o conceito de “fronteira” é oportuno, pois ocupa lugar central na atividade simbólica desde, conforme Lévi-Strauss, o surgimento da linguagem, real forma de significar o universo, para expressar o próprio mundo em que se habita. “Ora, no essencial, essa atividade consistiu em opor categorias como o masculino e o feminino, o quente e o frio, a terra e o céu, o seco e o úmido, para simbolizar o espaço compartimentando-o” (Augé, 2010, p. 19).

A antiga oposição entre Norte e Sul foi substituída por aquela que contrasta os países que outrora foram colonizadores e seus antigos colonizados. Na mesma medida, percebemos nas grandes metrópoles a relação de oposição entre os bairros ricos, considerados nobres, e aqueles chamados “difíceis”. Onde há grande diversidade é comum encontrarmos a mesma proporção de desigualdades. Hoje, pode-se dizer que há não apenas bairros privados, mas até mesmo, cidades em tal condição. As migrações que marcam a marcha dos naturais de países pobres em direção às nações ricas, frequentemente assumem contornos de tragédia. Paradoxalmente, são exatamente os países que se autoproclamam liberais que erigem muralhas para impedir a entrada de

imigrantes clandestinos. Destarte, parece que, à medida que antigas barreiras ruem, na mesma velocidade outras tomam seus lugares, perpetrando a separação entre ricos e pobres no mundo, tanto no trato entre nações quanto dentro dos próprios países, mesmo aqueles que são classificados como emergentes e subdesenvolvidos. A segregação se dá também no campo do desenvolvimento científico e tecnológico. Na contramão estão aqueles sonhadores, visionários da utopia de um mundo mais humano, considerando o planeta e seus habitantes uma unidade. No entanto, estes não podem esquecer das forças que atuam na direção contrária, que se mostram cada vez mais sensíveis. Há os guetos e os enclausuramento comunitários, o nacionalismo, movimentos de pureza étnica. Além disso, há um expansionismo religioso que tem como agenda o domínio do planeta para sua crença, desordenando as atuais fronteiras (Augé, 2010, p. 22).

A. Conceito de mundo sobremoderno: ainda fronteira

O mundo que Marc Augé chama de “sobremoderno” está submisso à tríplice aceleração dos conhecimentos, das tecnologias e do mercado. Nele se percebe o afastar cada vez maior da representação de uma globalidade concebida como a comunalidade de tudo e todos, concretizando-se a noção de um planeta intrinsecamente dividido:

No mundo “sobremoderno”, submisso à tríplice aceleração dos conhecimentos, das tecnologias e do mercado, é a cada dia maior a distância entre a representação de uma globalidade sem fronteiras que permitiria aos bens, aos homens, às imagens e às mensagens circularem sem limitação, e a realidade de um planeta dividido, fragmentado, no qual as divisões renegadas pela ideologia do sistema encontram-se no próprio coração desse sistema. Assim, poderíamos opor a imagem da cidade mundo, esta “metacidade virtual”, segundo a expressão de Paul Virilio, constituída pelas vias de circulação e pelos meios de comunicação que encerram o planeta em suas redes e difundem a imagem de um mundo cada dia mais homogêneo, às duras realidades da cidade mundo onde se reencontram e, eventualmente, afrontam-se as diferenças e as desigualdades (Augé, 2010, pp. 22, 23).

O paradoxo está estabelecido: cidades tecnológicas e digitais, interligadas com todos os países, que trazem o mundo para dentro de si mesmas, mas que firmam, cada vez mais, as desigualdades internas. A urbanização continua a reproduzir o método da colonização, de se expandir nos litorais e ao longo dos rios, enquanto as megalópoles parecem não parar de crescer. Essa ocupação sem fim, como verdade sociológica e geográfica, é o que pode ser chamado de mundialização ou globalização. Com diz Marc Augé, é, acima de qualquer suspeita, algo muito mais complexo do que a simples

globalidade sem fronteiras. Urge, pois, a necessidade de repensar o significado de fronteira, uma realidade que é sempre renegada e reafirmada. É incontestável que, ao ser reafirmada em novos formatos concretos, impõe, necessariamente, interditos e exclusões. Apenas a reflexão aprofundada sobre o conceito de fronteira poderá levar à compreensão das grandes contradições que estão hoje presentes na história contemporânea (Augé, 2010, pp. 23, 24).

Muitas culturas têm simbolizado o limite e a encruzilhada, esses lugares particulares onde acontece alguma coisa da aventura humana, quando um parte ao encontro do outro. Existem fronteiras naturais (montanhas, rios, desfiladeiros) fronteiras linguísticas, fronteiras culturais ou políticas. A fronteira assinala, de início, a necessidade de aprender para compreender. Na verdade, o expansionismo de alguns grupos levou-os a violar as fronteiras para impor sua lei a outros, mas acontece que, mesmo nesse sentido, a travessia da fronteira não seria sem consequência para seus autores. A Grécia vencida civilizou Roma e contribuiu para sua influência intelectual. Na África, os conquistadores adotavam tradicionalmente os deuses dos povos sobre os quais haviam triunfado (Augé, 2010, p. 24).

Devemos destacar que as fronteiras jamais desaparecem, apenas se remodelam. Um exemplo é o conhecimento científico que redefine constantemente qual é a fronteira do desconhecido. O saber científico jamais é apresentado como absoluto. É em si mesmo descoberta progressiva, diferente das ideologias e cosmologias apresentadas como totalizantes. Nesse sentido, a fronteira estará sempre ligada ao tempo, à própria esperança. Segundo Marc Augé, os ideólogos atuais deveriam ter em mente que o mundo em que vivemos não está acabado, onde só restaria festejar a perfeição. De igual forma, não habitamos em um mundo onde inevitavelmente predominará o mais forte ou o mais louco. É certo que vivemos no limiar entre democracia e totalitarismo, mas a busca da democracia é real e sempre será uma tarefa inacabada: “A grandeza da política democrática, como a da política científica, reside na recusa das totalidades acabadas e no fato de se assinalar fronteiras para explorá-las ou ultrapassá-las”. Na opinião do citado autor, aqueles que exaltam a ideia da globalização parecem concebê-la como algo acabado, uma espécie de finalização do mundo e de estagnação do tempo. Certamente, tal evidenciará a falta de imaginação e o cativeiro do presente que, segundo Augé, são contrários ao espírito científico e à moral política (Augé, 2010, p. 26).

VI.4.2 Urbanização

A urbanização que ocorreu em nosso planeta pode ser descrita como um fenômeno visto na passagem à agricultura, isto é, a transformação do nomadismo caçador ao sedentarismo. No entanto, Marc Augé argumenta, o paradoxo é que não gerou novo nomadismo, mas novas formas de mobilidade. O citado autor indica dois dos seus aspectos:

a) Aumento dos grandes centros urbanos;

b) Na linguagem do demógrafo Hervé Le Bras, o surgimento de filamentos urbanos que soldam as cidades umas às outras ao longo das estradas, dos rios e dos litorais (Augé, 2010, pp. 29, 30).

De um ponto de vista espacial, esses conceitos traduzem o que chamamos de mundialização:

Sob o termo “mundialização”, entendemos ao mesmo tempo a globalização, que se define por extensão do mercado liberal e o desenvolvimento dos mercados de circulação e de comunicação, e a planetarização ou consciência planetária, que é uma consciência ecológica e social. Estamos mais conscientes, a cada dia, de habitar um planeta que é um corpo físico ameaçado, e estamos igualmente conscientes das desigualdades econômicas e de outras que se cruzam entre os habitantes deste mesmo planeta (Augé, 2010, p. 30).

A consciência planetária sofre com a infelicidade, pois é sensível ao imprescindível papel dos seres humanos na frágil e já combalida saúde do planeta e, por outro lado, aos perigos, tanto sociais quanto políticos, aos quais ela é exposta por causa das desigualdades (Augé, 2010, pp. 30, 31).

A. Crescimento das cidades

A paisagem social e a própria urbanização do mundo são constantemente transformadas pelo crescimento das cidades e por aquilo que foi chamado de filamentos urbanos. No entanto, estamos mais habituados a fazer uso de conotações antigas, em especial quando tratamos das violências urbanas, das questões decorrentes de imigração e da juventude. O binômio cidade/subúrbios ou centro/periferias está sempre no centro de toda e qualquer abordagem daqueles assuntos, pois: “É nas ‘periferias’ da cidade que se situam todos os problemas da cidade: pobreza, desemprego, sub-habitação, delinquência,

violência”. Não podemos inocentar a escolha das palavras. Certamente, “periferia” só tem significado quando pensada em oposição ao “centro”. Periferia está ligada, já assimilada no imaginário, à miséria e a todo tipo de problema enfrentado pela cidade. Geralmente é referida no plural, para torná-la quase onipresente, enquanto o centro é lugar nenhum. Na verdade, as próprias periferias são concebidas como áreas ao entorno das cidades que vivem em rivalidade ou mesmo em oposição umas às outras, às vezes tão distantes no imaginário quanto a distância igualmente imagética que as separa do centro (Augé, 2010, pp. 31, 32).

Muito interessante é a análise de Paris feita por Marc Augé:

O vocabulário é importante nessas matérias. O boulevard periférico, em Paris, exerce um pouco o papel dos antigos muros: ele define a Paris “intraperiférica”, no modelo da Paris “intra-muros”. O que é assim delimitado é um centro, que permanece inapreensível, pois ele é também plural, mesmo se, para os jovens dos subúrbios, ele se localiza mais fortemente na estação do RER Châtelet-Les Halles ou nos Champs-Élysées. As periferias, no plural, fazem então referência a um centro imaginário, ausente e, talvez, fantasmaticamente desejado. Da mesma maneira, a palavra “integração”, empregada muito frequentemente como leitmotiv, para sublinhar o caráter insuficiente dessa “integração”, faz alusão a um conjunto muito largamente indefinido, ao qual conviria, justamente, se integrar, mas que só existe como uma entidade abstrata, definida negativamente pelas falhas das quais ela é objeto. O centro geográfico ao qual a palavra “periferias” parece fazer alusão e o conjunto sociológico ao qual faz referência a palavra “integração” existem, de início, negativamente. Negativamente para os que estigmatizam ou denunciam os guetos, a marginalidade ou a exclusão. Mas negativamente, também, aos olhos dos que se consideram, com efeito, como excluídos e periféricos, e para os quais o conjunto a que eles não se recusam a pertencer e o centro do qual eles gostariam de se aproximar são também tão distantes quanto inapreensíveis (Augé, 2010, pp. 33, 34).

Percebe-se, portanto, que a própria linguagem faz questão de deixar profundamente marcado o abismo social existente na geografia das próprias cidades. Contudo, não um abismo que separa dois altiplanos, mas que distingue o lugar alto dos lugares concebidos como profundas depressões da geografia social.