• Nenhum resultado encontrado

2.1.2 – Em torno da Declaração de Paris, de

A Guerra da Crimeia, de 1853-1856, levou a uma aproximação entre a Grã-Bretanha e a França numa coligação com o Império Otomano e o Reino da Sardenha, contra o Império Russo.

Durante o conflito o Império Russo, entidade continental e senhor de um vasto território transcontinental, foi coagido pelas as estratégias navais britânicas de comando do mar e francesas de guerra de corso, em que onde ambas procederam a bloqueios a portos. Mas essas estratégias não trouxeram grande impacto sobre a economia russa ou mesmo desestruturação do seu comércio internacional, dada a insípida contribuição do comércio marítimo russo para a sua economia e para o valor do comércio marítimo mundial.

O sucesso de uma estratégia de guerra ao comércio marítimo depende de dois factores: espaço e tempo. Quanto mais dependente é uma economia do comércio marítimo e quanto mais tempo se faz sentir essa privação ao mesmo, maior é a contribuição da frente marítima para o desfecho de um conflito. Ao invés do Império Russo, Portugal apresentava-se num ponto oposto e totalmente dependente da liberdade dos mares.

Terão sido as necessidades logísticas da aliança franco-britânica perante uma situação logística de guerra de longa distante que nasceu um acordo entre as partes sobre o reconhecimento da direitos especiais para navios de países neutros e

73 simultaneamente sobre a necessidade de acabar com o sistema de cartas de corso, ou seja da contratação de navios privados para guerra. Na realidade os britânicos reconheciam com a Guerra da Crimeia a inviabilidade de proteger com eficiência as suas longas linhas de comunicação marítima, mesmo com a sua superioridade naval.

Quando das negociações de paz, no Congresso de Paris de 1856, nasceu a ideia de converter o acordo existente durante a Guerra da Crimeia num acordo permanente119, que se estendesse a todos os beligerantes do conflito como uma declaração de limites, ou plataforma de entendimento sobre a actuação em futuros conflitos navais.

Duas convicções estiveram subjacentes ao acordo: uma foi que os navios civis armados, mantidos sob o domínio privado e com contratos muito longos acabavam por ficar fora da supervisão das marinhas de guerra e deixavam de estar controlados pelo Estado; e que os bloqueios navais para serem decretados tinham de ser efectivos e próximos. Em resultado da operacionalização destas ideias surgiu uma declaração conjunta, a Declaração de Paris120 de 16 de Abril de 1856, que proclamou o fim da Guerra de Corso.

Nesta Declaração de Paris ficou expresso a abolição do corso, mas também pela primeira vez o reconhecimento de direitos para os navios neutrais: a bandeira de um navio de um país neutral protegia as mercadorias do inimigo, excepto se fosse contrabando de guerra, e as mercadorias dos países neutrais com igual excepção sobre o contrabando de guerra, não podendo ser apresadas quando transportadas num navio com bandeira inimiga. Por último, e não menos importante, ficou definida a questão dos bloqueios que para serem legais tinham de ser declarados e efectivos, isto é,

119 No final do Tratado de Paris, 30 de Março de 1856, fim da Guerra da Crimeia foi assinada a Declaração de Paris, 1856. Esta declaração foi assinada por 55 países, entre os quais Portugal a 28 de Julho de 1856. Este acordo teve por base um acordo circunstancial entre a Grã-Bretanha e a França em 1854, com a intenção de salvaguardar o comércio e os abastecimentos durante a guerra da Crimeia. 120 Cf. Comité Internacional da cruz Vermelha (ICRC): Francis Piggott, The Declaration of Paris

1856: a Study, UK London, University of London Press, 1919, p. 346. Fonte:

www.archive.org/details/declarationofpar00piggiala (consultado em 2017/06/14)

74 mantidos por uma forças suficiente para impedir o acesso à linha costeira do inimigo.

Fica evidente que a Declaração de Paris foi desvantajosa para as pequenas potências navais, como a França, a Rússia ou a Áustria. O fim do corso protegia a maior marinha mercante do mundo, a britânica, e a possibilidade de declarar um bloqueio naval apenas se efectivo protegia os portos britânicos e dava ainda uma maior vantagem à maior armada naval do mundo, a britânica. Mas a Grã-Bretanha também fez algumas concessões aparentes com o reconhecimento da existência de navios neutros e regras de contrabando.

As potências menores ao renunciarem a vantagem oferecida pela guerra de c orso deixaram de ter a possibilidade de contratar privados para a execução da guerra ao comércio, uma forma económica de conseguir temporariamente mais unidades navais que atacassem o comércio inimigo, apresassem mercadorias e assim conseguissem obter algum financiamento para o esforço de guerra em terra, ou simplesmente ferir a frota mercante britânica, um dos grandes pilares da economia da Grã-Bretanha.

No entanto, se se observar os desenvolvimentos tecnológicos da época, em particular a introdução do vapor em navios comerciais, a França ao aceitar a Declaração de Paris não estava verdadeiramente e perder um trunfo de guerra. A introdução do vapor veio libertar a navegação do vento e a elevação da posição da artilharia a bordo dos novos navios de guerra veio libertar a navegação das condições atmosféricas adversas.

Vencidas as condições atmosféricas e a dependência da direcção do vento, as marinhas de guerra passavam a ser mais eficazes nos bloqueios próximos, impedindo facilmente a fuga de navios corsários dos portos bloqueados, ou que esses tivessem condições para trazer as suas presas capturadas até um porto para reclamar o prémio. Também não poderá deixar de ser relevante reconhecer o impacto que a alteração da tecnologia implicou para a economia da “guerre de course”, com o aumento do custo de construção e manutenção dos navios corsários a vapor e uma diminuição do rendimento pela possibilidade de recuperação de prémios.

75 Na verdade os franceses não negociaram o fim da “guerre de course”, mas sim aceitaram o fim da “guerre de course”. O que negociaram em 1856 foi apenas a alteração do controlo dos navios civis armados de guerra ao comércio, passando o controlo dos mesmos para o Estado em tempo de guerra, como se poderá reconhecer com o aparecimento da figura de “cruzador auxiliar”, na prática navios a vapor civis modificados para fins militares e com uma guarnição militar suplementar121 pertencente às respectivas marinhas de guerra nacionais.

Conceptualmente a Declaração de Paris transformou a legitimidade da violência no mar, deixando de ser aceitável o “fim lucrativo” e passou apenas a ser aceitável a “razão de Estado”, e ao se perder a vantagem lucrativa da captura para receber um prémio, a não destruição dos navios capturados passou a ser somente justificável por razões éticas ou humanitárias.

Por parte dos britânicos a contrapartida do acordo esteve no reconhecimento de que as mercadorias transportadas em navios neutrais tinham livre trânsito, ou seja, todas as mercadorias transportadas num navio com bandeira de um país neutro estavam protegidas por essa neutralidade, com excepção do contrabando de guerra122. Esta viria a ser uma alteração substancial na doutrina britânica de apresamento de mercadorias inimigas, que anteriormente considerava legítimo capturar todas as mercadorias inimigas independentemente da nacionalidade do navio que as transportavam, assim como qualquer mercadoria transportada em navios inimigos independentemente do proprietário final. Mas isto também pouco modificava na verdade a doutrina naval britânica já que ficou em aberto a questão da actualização da lista de produtos de contrabando, e como se verá durante a Grande Guerra permitirá dentro dos princípios da Declaração de Paris de 1856 exercer um bloqueio comercial à medida das suas necessidades de guerra.

121 Passou a ser corrente encontrar navios civis de grande porte como cruzadores auxiliares e de pequeno porte como patrulhas, ambos com guarnições mistas, civis e militares, com um comandante militar, ou mesmo com um duplo comando, um comandante de bandeira e um comandante de guerra. 122 John B. Hattendorf, “Maritime Conflict,” in The laws of war: constraints on warfare in the western

world, (Coord.) Michael Eliot Howard, George J. Andreopoulos, Mark R. Shulman, US New Haven,

76 A questão da neutralidade nos mares era uma velha questão que vinha a ser debatida desde a Revolução Francesa 1789-1799, ou as Guerras Napoleónicas de 1806-1815, face à forma como a Grã-Bretanha, potência dominante dos mares, atacava os navios neutrais. O reconhecimento da bandeira e o reconhecimento da neutralidade de navios, tripulações, passageiros e mercadorias por parte da Grã- Bretanha, foi uma importante concessão e viria a ter impacto nas estratégias navais mundiais.

Assim, a Declaração de Paris de 1856 reforçou a definição de bloqueio naval legítimo ao considerar que o mesmo teria de ser efectivo, um importante passo para acabar com os bloqueios virtuais, ou apenas no papel como os que existiam entre pequenas potências navais beligerantes que os declaravam mas que não tinham capacidade naval para o efectivar, trazendo apenas constrangimentos comerciais e relativos a custos de seguros sem qualquer impedimento efectivo à livre circulação em portos. A questão da definição de bloqueio naval próximo e efectivo foi fundamental para a construção da liberdade comercial marítima e da liberdade de acesso a portos.

Em sínteses a Grã-Bretanha conseguiu retirar às pequenas potências a única arma eficaz contra si, a que tendia a ferir a sua actividade comercial marítima, mas aceitou a existência de uma liberdade dos mares implícita à neutralidade, conferindo a possibilidade das pequenas nações marítimas manterem uma actividade comercial e de abastecimento durante os períodos de guerra através de uma rede de navios neutrais, mas deixou em aberto o controlo da lista de produtos de comercialização proibida em tempo de guerra, a denominada lista de contrabando, que na prática viria a ser gerida por si, ou seja pela potência naval com mais força bélica em cada região para impor a fiscalização sobre os navios neutros. No entanto, houve um avanço significativo no direito internacional dos mares ao ser aceite por todas as partes e sem reservas que aos países neutros era dada a garantia que as mercadorias capturadas em navios inimigos eram restituídas ou eram compensados financeiramente123 pela perda

77 das mesmas.