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3.1.4 – Evolução dos direitos dos neutros

Pensar em neutralidade como apenas sinónimo de não-beligerância é uma forma simplificada de representar as opções dos países não beligerantes europeus durante a Grande Guerra.

217 Cf. International Committee of the Red Cross (ICRC), “Manual of the Laws of Naval War. Oxford, 9 August 1913”. Fonte: https://ihl-databases.icrc.org/ihl/INTRO/265?OpenDocument (consultado em 3/01/2018).

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A Europa de Julho de 1914 encontrava-se formatada, política e economicamente, em resultado de uma política hegemónica britânica mantida quase durante um século, onde conquistara o lugar de primeira potência comercial e o de maior produtor de matérias-primas através do desempenho de uma vasta rede colonial. Possuidora da maior marinha mundial, tanto mercante como de guerra, era a na época a maior transportadora de pessoas e mercadorias por via marítima, construindo nesse período uma supremacia que veio a ser denominada como Pax Britannica.

Durante um século a Royal Navy assegurou a liberdade dos mares e garantiu que o comércio britânico se exercesse sem restrições e risco. Uma igual superioridade financeira e tecnológica, levou com a sua política comercial a que outros países se tornassem obrigatoriamente importadores dos seus produtos e que estes se limitassem à produção de matérias-primas específicas do interessa britânico, no quadro da industrialização do carvão e do ferro e mais tarde na industrialização do petróleo, da electricidade e do aço.

Se por um lado a filosofia comercial britânica impôs uma especialização económica aos países fornecedores de matérias-primas, esta mesma filosofia comercial permitiu construir, em segundo plano, uma estratégia militar de bloqueio comercial marítimo, ou de bloqueio económico quando necessário, o que viria a ser aplicado efectivamente durante a Grande Guerra não só sobre os países inimigos, mas também para oprimir a capacidade comercial dos países neutros de reexportação, quando do seu interesse.

Os países periféricos à industrialização do norte da Europa, foram levados a seguirem uma economia de monocultura face à política comercial britânica de compras selectivas por regiões geográficas, e assim, ficaram absolutamente dependentes do centro financeiro britânico, cuja subjugação económica levou em certas geografias políticas a formas de neocolonialismo. A Grã-Bretanha apesar de respeitar as soberanias políticas nacionais, impunha aos mesmos uma política comercial, económica e externa ajustadas à sua vontade e desta forma é possível compreender que cada opção nacional de neutralidade viesse a ser também um

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resultado da influência da política económica e da geoestratégia britânica consolidadas ao longo do século XIX.

Às questões de geografia política e comercial, juntaram-se as alianças políticas que foram evoluindo desde o Congresso de Viena de 1815, levando os Estados Europeus a tomarem posições de política externa que em algumas situações conduziram à declaração de neutralidade militar em Agosto de 1914.

Porque a independência política parte de uma independência económica de um Estado, será necessário distinguir a existência de três tipos de neutralidade observados durante o período de 1914-1918: militar, política e económica, com diferentes características.

A neutralidade militar, como a forma mais clássica de entender a neutralidade, reconhecida na Convenção de Haia de 1907, como uma posição de não beligerância contra outros Estados e o tratamento de todos os beligerantes de igual forma, não colocando o território à disposição de qualquer beligerante. Um segundo tipo de neutralidade, a neutralidade política onde subsistindo uma neutralidade militar, se verifica que os governos e as elites sociais mantêm preferências em relação à actuação de um ou outro beligerante. Por último existe a neutralidade económica, dependente das anteriores neutralidades e que representa as necessidades intrínsecas de abastecimento de qualquer Estado, muito ligado ao conceito de guerra ao comércio e à duração dos grandes conflitos, consequência do desagaste económico da guerra, em muito semelhante ao efeito dos cercos militares medievais de “vencer pela fome”.

Fica neste sentido apenas salvaguardada a questão territorial, a salvaguarda do património, a única consequência directa de uma neutralidade num teatro de guerra alargado e muito mais em causa uma neutralidade perfeita que salvaguardasse uma “imunidade clínica” ao “vírus da guerra” dentro de um conflito mundial.

A capilaridade entre as economias europeias implicava uma forte ligação com as economias dos principais beligerantes: Alemanha e Grã-Bretanha, e desta forma os interesses económicos dos neutrais estavam em causa e dependiam das estratégias dessas potências em guerra, o que levou por arrasto a que as relações económicas dos

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países limítrofes da Entente, por exemplo Portugal e Espanha, ou propositadamente a Holanda, a Dinamarca, ou a Suécia e a Noruega, viessem a ser implicadas na arma estratégica da guerra ao comércio dentro da relação com cada beligerante e o resto do Mundo. Uma neutralidade militar fica dependente da modulação constante da neutralidade política, mas também dependente da benevolência da neutralidade económica com os beligerantes, o que torna muito nebuloso os limites que definam uma diferença entre as neutralidades declaradas formalmente de simples não- beligerâncias e ainda mais quando à luz do Direito Internacional218 existem diversas interpretações sobre a definição de beligerância.

Por mais imperfeita que tenha sido considerada a criação do sistema de solução de contendas internacionais, a introdução de Tribunais Internacionais para a solução dessas contendas à luz do Direito Internacional, foi sendo conseguido manter uma certa não-beligerância regional entre potências coloniais, mas a inexistência de um sistema jurídico internacional viria a impossibilitar o recurso sobre sentenças, transformando as mesmas em resoluções meramente políticas e distantes duma apropriação judicial e de difícil aplicação quando sobre questões de Estado.

Neste sentido os direitos dos neutros eram frágeis e sofreram variações significativas ao longo da guerra, mesmo reconhecendo que conseguiram manter uma prática comercial, os limites não teveram sempre os mesmos contornos, nem a mesma intensidade ao longo do conflito. Não nos podemos esquecer que respeito pelos neutros é uma concessão dos beligerantes e que os direitos dos neutros é o primeiro ponto a ser esquecido num conflito.

A questão dos direitos dos neutros vinha a ser debatida desde o século XVII, mas o seu reconhecimento era excepcionalidade de origem contratual. Os direitos eram contratados com cada beligerante, mas pouco a pouco a neutralidade foi reclamando um estatuto particular através das declarações unilaterais de neutralidade.

218 Leila Poconé Dantas, “A Neutralidade no Direito de Guerra”, in Revista da ESMESE - DOUTRINA, N. 09, 2006. Fonte: https://core.ac.uk/download/pdf/79073267.pdf (consultado 2018/05/30).

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No século XIX, após as guerras napoleónicas, os direitos de neutralidade obtiveram um desenvolvimento muito positivo. A neutralidade originalmente pretendia simplesmente evitar ataques a pessoas e património, mas progressivamente foi ganhando um estatuto de defesa do comércio internacional muito interessante. Mesmo partindo do princípio que os beligerantes são apenas favoráveis ao comércio dos neutros na medida que este os favorece, foi possível chegar à Declaração de Paris de 1856 que interditou o corso privado e aboliu a carta de marca, e encontrar uma evolução entre esta data até à Declaração de Londres de 1909, que marcou o apogeu dos Direitos dos Neutros, mas observou-se uma diferença de interpretação entre esses direitos em tempo de paz e em tempo de guerra. Com o início da Grande Guerra, em 1914, houve uma regressão dos direitos, mesmo perante o Direito Internacional, por força dos interesses dos beligerantes em subordinar os interesses comerciais marítimos dos neutrais.

As restrições à livre circulação comercial marítima, ou de direitos comerciais dos neutrais foram durante o período de 1914-1918, modelados em duas etapas e por ambas as partes beligerantes: as sucessivas extensões de interdição de navegação por parte dos alemães, com base no sistema tradicional de bloqueio, e as sucessivas extensões de interdição de comercialização livre de produtos por parte dos britânicos, com base no sistema transaccional controlo de contrabando de guerra.

Sendo a frente marítima da guerra caracterizada por uma guerra assimétrica entre as forças navais das Potências Centrais e as forças da Entente, a Alemanha como força naval com menor capacidade ofensiva, ou sem capacidade ofensiva de superfície a partir da Batalha da Jutlândia, em 1916, optou por desenvolver a sua acção através da constituição de zonas de interdição naval, onde através de uma força de submersíveis reforçava o controlo de interdição total à navegação comercial, na prática uma evolução da teoria clássica de bloqueio naval.

Por outro lado, os britânicos sem capacidade para destruir a força de submersíveis alemã, sem a intensão de afundar os navios neutros que mantinha o comércio internacional e sem a capacidade de efectuar um bloqueio total e efectivo aos portos das Potências Centrais, optaram por uma extensão da teoria do contrabando

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de guerra através da reversão do princípio da liberdade e interdição generalizada de comércio com a Alemanha, medida imposta aos países neutros e aliados, e controladas pela sua frotas de guerra. Um controlo de mercadorias e dos destinos das mesmas, efectuado nos portos e no mar. Ao longo da guerra foi sendo observado que as mercadorias classificadas como livres inicialmente foram sendo progressivamente absorvidas nas outras duas listas de interdição restringindo o comércio dos neutrais. Com a evolução da guerra tudo passou a ser contrabando de guerra, porque tudo podia ser utilizado com fins militares

A discussão sobre as mercadorias livres foi palco de negociações difíceis, sobretudo para alguns produtos, como para o algodão que servia também para fazer explosivos, e com alguns dos neutrais como os Estados Unidos da América eram exportadores e defenderam a livre circulação comercial até ao dia em que entraram no conflito. A Grã-Bretanha teve de tomar especiais cuidados na forma como interferia com o comércio americano, por forma a não desagradas os Estados Unidos da América enquanto estes foram neutrais219.

A Grã-Bretanha e os Estados Unidos da América220 após a entrada em guerra foram modificando a questão de definição de destino de mercadorias. O princípio da prova de destino evoluiu para a captura no transporte, na sequência de um conjunto de pressupostos: a teoria da viagem contínua permitia ao beligerante parar no mar todos os navios mercantes cuja carga poderia ter destino no inimigo, mesmo que importados a partir de um país neutro, e a questão da reexportação onde se considerava que as mercadorias transportadas para os países neutros eram uma forma camuflada de transportar essas mesmas mercadorias com destino ao inimigo, acabando desta forma

219 Joaquim Quelhas Lima, Normas Gerais e Particulares de Direito Internacional Marítimo, Lisboa, União Gráfica, 1940, p.43.

220 Os Estados Unidos defendiam rigorosamente os direitos dos neutros até à data em que entraram na guerra, mas depois tornaram-se um dos mais intransigentes fiscalizadores desses mesmos neutros. Na verdade a aplicação da contingência material aos neutros só foi efectivamente aplicada após 9 de Julho de 1917, quando os Estados Unidos entraram na guerra e interditaram todas exportações sem uma licença especial.

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por generalizar que todas as mercadorias podiam chegar ao inimigo, e com isto tinham o direito de impedir todo o comércio directo ou indirecto.

Esta teoria levou à Declaração Franco-Inglesa, de 1 de Março de 1915, onde foi acordado uma interdição geral de comércio com a Alemanha em represália pela constituição de zonas de bloqueio com os submarinos, e assim, o Governo Francês e o Governo Britânico consideram ter a liberdade de conduzir para os seus portos todos os navios mercantes que considerassem existir um destino final para o inimigo.

A favor desta teoria a Grã-Bretanha contrapunha uma realidade de importações excessivas dos países neutrais para certas mercadorias, que obviamente se destinavam a serem reexportadas para os países beligerantes. Em 1915 a importações da Holanda duplicaram em relação a 1913, que levava a considerar pela teoria da contingência material que todas as importações acima dos valores de 1913 teriam sido destinadas para reexportar para a Alemanha.

A aplicação deste tipo de racionamento aos países neutros por parte da Entente, no âmbito da prática da contingência material, implicou graves dificuldades diplomáticas com os países aliados e foi um factor importante para a colocação da neutralidade em causa e até a possibilidade de se tornar beligerante do lado do inimigo.

Ainda dentro do conceito de neutralidade em face à guerra comercial marítima e de forma mais lata no que se refere a neutrais e beligerantes, o Direito Internacional de captura encontra algumas restrições, ou isenções, no que se refere a navios de pesca costeira, incluindo as pessoas e bens empregues na faina. A própria Convenção de Paz de Haia de 1907, a XI convenção apresenta restrições ao direito de presa na guerra marítima, em especial no que se regere a navios de pesca, pequenas embarcações de cabotagem local, sendo que as mesmas não devem ser utilizadas para fins militares. Estas restrições referem-se a embarcações dentro das águas territoriais de pesca, tendo o Oxford Manual on Naval Warfare, de 1913, adicionado navios de

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pilotagem e ao serviço dos faróis. Existiam ainda de acordo para navios-hospital, encarregados de missões religiosas, científicas ou filantrópicas221.

Quando a Grã-Bretanha em 8 de Julho de 1916 tomou uma posição de força em relação à estratégia de guerra ao comércio marítimo, revogou disposições anteriores e substitui-as por um simplificação das listas de contrabando, numa só lista que todos os produtos passavam a ser classificados como contrabando absoluto, facilitando o procedimento de captura dos navios e cargas, e passa a facilitar a igual captura de navios destinados a portos neutrais sempre que houvesse suspeita do destinatário final vir a ser um país inimigo. Neste sentido Portugal como beligerante e aliado da Grã-Bretanha e de outras nações, adoptou por Decreto de 14 de Agosto de 1916, e também deixou de fazer distinção entre contrabando absoluto e condicional, incluindo nos pressupostos de legitimação de captura igual fundamento222.