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A emergência da Al Jazeera como fim da hegemonia mediática ocidental

CAPÍTULO 2. CONFLITOS MEDIATIZADOS: A RELAÇÃO ENTRE OS MEDIA E A ADMINISTRAÇÃO NORTE-AMERICANA EM SITUAÇÕES DE

2.3 O 11 de Setembro: Mudança de Paradigma no Jornalismo Norte-Americano e no Panorama Mediático Global

2.3.2 A emergência da Al Jazeera como fim da hegemonia mediática ocidental

Outra das consequências do 11 de Setembro, pelo menos em parte, foi a emergência da Al Jazeera como cadeia televisiva global que constituiu um marco no fim da hegemonia mediática ocidental. Até 1996, a cobertura mediática dos países árabes a nível internacional era feita por canais de informação como a BBC ou a CNN, com uma abordagem e perspectiva ocidental dos acontecimentos, embora muitas vezes

                                                                                                                         

66 “the businesspeople, the bosses wo are in charge or our organizations, who have decided (...), that

Americans don’t need to know about international news (...) but now people want to know what is going on” (Amanpour in Ferrari, 2003: 215)

não de forma intencional. O surgimento da televisão por satélite Al Jazeera (“A Ilha” em árabe), em Novembro de 1996 no Qatar, após a cisão da parceria entre o Governo saudita e a BBC em árabe67, veio revolucionar o panorama dos media não só no Médio Oriente, como a nível global, ao descentralizar o monopólio que os meios de comunicação estatais tinham na informação e ao mostrar ao mundo a perspectiva árabe dos acontecimentos globais.

De facto, o novo canal foi responsável pela criação de um novo ambiente político vibrante, um espaço de discussão que veio liberalizar o discurso mediático no mundo árabe, causando um impacto positivo no debate político. Este impacto, descrito como Al Jazeera Effect68, refere-se ao papel que a Al Jazeera desempenhou (e continua a desempenhar) como fórum de debate sem precedentes no mundo árabe, contribuindo para a criação de uma nova cultura política pluralista e funcionando também como substituto do “défice democrático” que caracteriza o mundo árabe (El-Nawawy e Powers, 2008).

Chefes de Estado, elites políticas, analistas e think tanks reconhecem o poder que a nova cadeia televisiva exerceu sobre a opinião pública nos diversos países onde inicialmente operava69. A título de exemplo, em 2000, quando o então presidente egípcio, Hosni Mubarak, visitou a sede da Al Jazeera no Qatar, demonstrou-se atónito e terá comentado “Todo este ruído vem de uma pequena caixa de fósforos?” (Albuquerque, 2011). A margem de liberdade é tal que nenhum Governo árabe está imune à crítica em directo. Segundo Da Lage (2005: 55), a única excepção é provavelmente o Qatar, o país de acolhimento da estação, cuja cobertura dos assuntos internos é muito reduzida.

                                                                                                                         

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O fim do contrato resultou de uma série de conflitos entre o Governo saudita e a BBC no que diz respeito às políticas editoriais. Foi tornado público que os investidores sauditas decidiram deixar de financiar o projecto após uma acesa discussão acerca de a transmissão de um documentário sobre execuções na Arábia Saudita. A maior parte da equipa do serviço televisivo da BBC árabe foi recrutada pela Al Jazeera que acabou por herdar o espírito editorial da anterior estação. De acordo com El- Nawawy e Powers (2008), o sucesso da nova estação reside no facto de a equipa ter recebido formação jornalística num ambiente ocidental e, em simultâneo, estar familiarizada com o atmosfera política do mundo árabe.

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Que nos remete para o CNN Effect (Capítulo I) que defende que a cadeia televisiva norte-americana teve um papel preponderante na condução de diversos eventos internacionais, assumindo-se como um verdadeiro novo actor nas relações internacionais.

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Está ainda por fazer uma análise distanciada do contributo da Al Jazeera no desenrolar das revoluções árabes iniciadas em 2010 na Tunísia, porém o seu papel não pode ser menosprezado – transmite em directo diariamente para mais de 220 milhões de pessoas em mais de 100 países. Em diversas praças das revoluções, manifestantes exibiam cartazes com referências à Al Jazeera (bem como ao Facebook, por exemplo).

Em 2006, com o nascimento da edição em inglês do canal – a Al Jazeera English (AJE) – pretendeu afirmar-se como um fórum de comunicação transcultural. De acordo com os seus proponentes, a AJE apresentava-se como uma oportunidade única para a criação de um novo discurso mediático a nível mundial. Sob o lema “a voz do Sul”, a AJE colocou-se no mercado como um meio através de o qual as pessoas sem voz (voiceless), ou seja, aqueles que tradicionalmente têm menos acesso aos fora de discussão mediáticos, pudessem fazer ouvir a sua voz (El-Nawawy e Powers, 2008). As notícias e os talk shows do canal pan-arabista tornaram-se conhecidos a nível mundial pelas suas críticas aos governos despóticos no interior do mundo árabe, bem como da política externa norte-americana no Afeganistão, Iraque e Palestina, por exemplo.

Para El-Nawawy e Powers (2008), a AJE surge como uma anomalia no panorama mediático mundial, sendo um “media conciliador” que não é dominado por interesses políticos ou comerciais. Porém, informações recentes reveladas pela Wikileaks70 demonstram que a Al Jazeera poderá ter sido utilizada pelo Governo qatari como instrumento da sua política externa em negociações, por exemplo, com os EUA, além de os próprios EUA terem procurado silenciar determinados conteúdos “perturbadores” do site da estação. Um dos documentos refere que o senador John Kerry sugeriu ao Governo do Qatar, durante uma visita ao país, que a Al Jazeera fosse parte integrante do diálogo bilateral para a melhoria das relações entre os dois países (Chatriwala, 2011).

O surgimento da Al Jazeera nos ecrãs ocidentais foi visto como uma afronta, particularmente nos EUA, não só pelas aparições de Osama Bin Laden, como também por estar a fazer reportagem sobre um nós ocidental, o que significa que o mundo ocidental passou assim a ser o Outro deles. Por diversas vezes a administração norte- americana demonstrou a sua indignação face à cobertura da Al Jazeera (inglesa e árabe) da chamada Guerra ao Terrorismo, particularmente no que diz respeito à guerra do Afeganistão (Da Lage, 2005: 60), como teremos oportunidade de analisar mais adiante.

Relativamente a este novo paradigma de comunicação global, importa fazer uma reflexão sobre o papel do jornalismo em guerra, adoptando aqui a hipótese do “choque de civilizações”. Os media informam indo ao encontro das expectativas culturais e políticas do seu público e contextualizando os eventos internacionais, na medida em que                                                                                                                          

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Wikileaks é uma organização sediada na Suécia que publica na sua página oficial milhares de despachos e documentos com informações confidenciais e classificadas de correio diplomático, de Governos, de empresas, etc.. Muitas das informações são consideradas sensíveis e segredos de Estado. Página oficial em http://wikileaks.org/

estão inseridos numa determinada sociedade, mesmo os media que se assumem como globais e editorialmente imunes a qualquer tipo de pressão. Segundo El-Nawawy e Powers (2008), esta realidade foi bem visível em 2003 aquando de o início da guerra no Iraque: os media britânicos e norte-americanos presentes no terreno adoptaram uma narrativa de segurança nacional para justificar a necessidade da invasão de Bagdade, enquanto os árabes contextualizaram a invasão numa lógica de imperialismo ocidental e neocolonialismo.

Pesquisas recentes consideram que os media continuam a cobrir a guerra numa lógica de enquadramento nacional dominante, ou seja, de acordo com o discurso público dominante. “Todos os media se desviam do padrão de objectividade enquadrando os factos de uma determinada situação de forma socialmente aceite e esperada pelo seu público”71 (El-Nawawy e Powers, 2008: 14).

Em tempo de guerra este padrão pode tornar-se mais evidente, construindo narrativas ideologicamente alinhadas que reforçam as atitudes e opiniões do seu grupo- alvo primário, seja nacional, regional ou mesmo cultural. Como resultado, El-Nawawy e Powers (2008) consideram que assistimos actualmente a um choque de civilizações como arguiu Samuel Huntington num célebre artigo na Foreign Affairs em 1993. É neste contexto que os autores defendem que a Al Jazeera pode assumir-se como um “media de conciliação” entre as narrativas ocidental e árabe e demonstram-no com base nas conclusões de um inquérito a quase 600 telespectadores da estação. Assim, El- Nawawy e Powers (2008) revelam que:

- os telespectadores da AJE consideram que o canal é um medium de conciliação, no sentido em que pode criar um ambiente de cooperação, negociação e reconciliação;

- quanto mais vêem a AJE menos dogmático é o seu pensamento, na medida em que se tornam mais disponíveis em abordar questões que de outra forma seriam irreconciliáveis com o seu modo de pensar;

- os espectadores absorvem informação para afirmar as suas convicções mais do que para se informarem. Desta forma, os espectadores são receptivos a notícias internacionais que substanciam a sua opinião, e recebem informação de acordo com aquilo que consideram que deve ser priorizado. A título de exemplo, as pessoas que

                                                                                                                         

71 “All media deviate from the standard of objectivity by framing the facts of a given situation in ways

that are socially accepted and expected amongst their particular audiences” (El-Nawawy e Powers, 2008: 14)

estão mais dependentes das notícias da CNN ou BBC demonstram-se mais favoráveis à política externa norte-americana em geral. Quem assiste à BBC demonstra-se a favor dos valores norte-americanos, enquanto que a CNN é mais vista pela sua narrativa de Guerra ao Terror. Enquanto isso, os telespectadores da AJE (sejam ocidentais ou não) demonstram um olhar mais crítico relativamente à política externa dos EUA.

Como foi dito anteriormente, na Primeira Guerra do Golfo a CNN, bem como outros media ocidentais, dominaram o fluxo de informação com a sua cobertura “directa” e global do conflito. Além de transmitir mundialmente a guerra, a CNN vendeu conteúdos para outras redes de informação e estava, em grande parte, confinada a fontes oficiais do exército norte-americano para aceder a informação e ao controlo das autoridades iraquianas em Bagdade. O panorama mudou consideravelmente na última década e a emergência da Al Jazeera como canal pan-arabista foi um dos grandes responsáveis por essa mudança.

Hoje em dia, em vez de uma rede única a dominar o panorama noticioso internacional, as cadeias de televisão por satélite, as edições online dos jornais e até mesmo a rádio proliferam pelo mundo. As narrativas actuais que guiam a compreensão do público sobre determinados eventos é facilmente posta à prova, contestada e a luta para controlar o fluxo de informação intensificou-se, particularmente em contextos de guerra ou conflito. Posto isto, é possível afirmarmos que, com a proliferação de media a nível mundial, tornou-se mais fácil o público sintonizar na organização que mais vezes alinha com as suas opiniões, convicções e visões do mundo.

2.3.3 A retórica de Guerra ao Terrorismo nos conflitos militares no século XXI – o