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5 EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO: TRABALHO, PROFISSÃO,

5.2 O Trabalho para a Difusão da Palavra Divina: Resistência ou Dominação?

5.2.1 A ‘Empregabilidade’

Este sujeito ao realizar a sua subjetividade no e pelo trabalho, ao mesmo tempo concretiza os objetivos da doutrina religiosa, mesmo que ancorados na aparente independência do capital. E diz-se independência aparente primeiro porque, sob o domínio da religião, o sujeito acredita que não há a mediação da interpretação da Bíblia, acreditando, em conseqüência, que é o responsável pela interpretação dos textos sagrados e que é ele o responsável pelos sentidos alcançados93. Este sujeito realiza sua inscrição no mundo na ilusão de que é dono dos sentidos que profere. Depois, porque, o que há é a confluência entre os interesses do trabalho de missões para difusão da palavra de Deus e os interesses do capital, sobretudo se observar que o trabalho de missões sustenta-se, em parte, sobre aquele da missiologia que representa uma reserva de mercado para a preparação dos missionários para promover a difusão da palavra divina, isto é, o trabalho de evangelização que é a principal obrigação do cristão protestante. Nesses termos, é possível afirmar que os discursos relacionados ao trabalho de missões constroem a subjetividade religiosa sob a aparência da sua independência das relações com o mercado.

No entanto, é por essa via de mão dupla que o sujeito efetiva, paradoxalmente, sua dominação, enquanto legado direto da sua obrigatória submissão aos sentidos alinhados à obediência divina e sua resistência, uma vez que é esta submissão que permite a transgressão às formas de ‘empregabilidade’ exigidas pelo mercado, ou seja, para realizar um trabalho de

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Conforme já sinalizado acima, a religião propôs a expansão da leitura bíblica pelos fieis, o que não lhes garante a interpretação dos textos sagrados, mas apenas a interpretação autorizada. De acordo com a História Viva Grandes Temas (2007, p. 36) Lutero acreditava que o catecismo era o livro adequado para educar o povo. Em palavras atribuídas a Lutero: “O catecismo é a Bíblia do leigo; ele contém tudo o que cada cristão deve conhecer da doutrina cristã”. Ainda segundo a História Viva...(2007, p. 36) “a interpretação dos Testamentos ficava reservada a pessoas competentes, um grupo composto pela elite política e pela intelligentsia clerical”.

missões, o sujeito desobriga-se das exigências impostas para concorrer a uma vaga para a realização do trabalho secular porque se acredita qualificado pela vocação.

O trabalho de missões, construído pelo sentido de vocação, por um lado desamarra o sujeito das exigências da ‘empregabilidade’ secular, quanto à qualificação exigida pela concorrência, mas o amarra às formas próprias de preparação para que ele possa realizar o trabalho missionário, de acordo com as ‘necessidades’ que a religião o submete livremente. Por outro lado, envolvido com o trabalho de missões, o sujeito ancora-se na crença de que ‘o chamado de Deus’ faculta-lhe exercê-lo sem nenhum tipo de qualificação, posto que ele é derivado de sua vocação. Em síntese, isso significa pontos de resistência ao desemprego, mas a concretizando sob o domínio do discurso da obediência da religião.

Deste modo, o produto a ser divulgado pelo fiel, coaduna-se com “a necessidade de pensar, agir e propor” deste sujeito que se materializa sob a forma de propagação da palavra de Deus. A palavra de Deus é a verdade a ser divulgada, sob uma variedade muito grande de ‘produtos’94, mas que se tornam, e é este mecanismo que interessa nesta discussão, instrumentos para a meta de divulgação da evangelização, como diz a missionária, citando o apóstolo Marcos, (SD8), no capítulo 2.

(vii) Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura

Assim, o missionário realiza diversos tipos de atividades, desde o trabalho de divulgação da palavra de Deus tão somente pela evangelização, até a realização de serviços diversos como limpeza, tesoureiro(a), secretário(a), etc, que são reconhecidos como trabalhos remunerados na condição de ‘auxílio’, e que, na maioria das vezes, implica até mesmo em horário fixo de trabalho.

Nesse contexto sociopragmático, a atividade de pastor95 - que não é considerado um ‘funcionário’ porque é um ministro de Deus - é a de maior relevância na igreja e lhe atribui

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A palavra de Deus, vinculada ao trabalho como modo de manutenção ou inserção do sujeito do discurso religioso batista, no capital, materializa-se como um incontável número de ‘produtos’, mas circula principalmente como Bíblia. Confira lista de produtos religiosos para divulgar a palavra de Deus, nos anexos, notadamente a grande variedade de bíblias.

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Todos os pastores, e outros membros, devem ter vocação e dom para executar qualquer atividade na igreja. Para ser pastor, no entanto, se requer uma preparação mais específica, mesmo que isso não seja uma exigência absoluta, haja vista a existência de muitos pastores que o são como todos os outros por vocação e dom, mas sem preparação em seminários com cursos específicos. Por isso, alguns membros da igreja tornam-se pastores, mesmo sem formação específica, porque precisam assumir lideranças de igrejas, “pela necessidade do lugar” onde está/será instalada a igreja/templo. Na Igreja Batista, filiada à Convenção Batista Baiana, uma banca

status por ser o principal responsável pela igreja - sendo o seu presidente -, que a executa

como um ministério. No entanto, como qualquer membro da igreja, basta ao candidato a Pastor que ele tenha a vocação, que ele tenha recebido “um chamado específico para isso”, pois ele entende que ser pastor é a sua missão na igreja, a partir do chamado que recebe. Certamente, como já foi dito, a “vocação” a si atribuída não impede sua preparação em seminários.

Assim, a missão de cada membro é indistinta e só adquire matiz próprio quando ele é “chamado” para realizar algum trabalho específico porque a palavra de Deus é “a mensagem” a ser levada a todas as pessoas. Nesta compreensão, Deus decide sobre qual será a missão de cada fiel do mesmo modo que decide sobre os escolhidos e os não-escolhidos.

SD49 - Somos nós, os missionários, que temos que levar essa mensagem a toda criatura, seja aonde for.

SD29(a) - A tarefa do missionário é levar a Palavra de Deus para as pessoas que não conhecem. É ajudar as pessoas, é treinar as pessoas, tipo assim, é muito amplo esse trabalho, tipo assim, no meu caso, eu levo a Palavra de Deus aos grupos, trago esses grupos para a Igreja, eu discipulo o ensinamento da Bíblia, eu treino eles na liderança para futuramente eles trabalharem com líderes dentro da Igreja.

SD50 - Então nosso objetivo é também mostrar que eles são acolhidos, que eles precisam de uma profissão, então é muito abrangente o trabalho de um missionário e no meu caso específico, contudo a gente pode todo esse tipo de trabalho e o mais importante é esse, levar a Palavra, no meu caso, né?

Assim, o trabalho atribuído ao chamado, à vocação ajuda o sujeito religioso a fugir da lógica do capital que se baseia na seleção dos indivíduos mais aptos para servi-lo, ou seja, nos termos de Antunes (1999), para servir ao sistema capitalismo torna-se trabalhador aquele indivíduo com maior capacidade de ‘empregabilidade’.

composta por Pastores experientes faz parte do processo de preparação de qualquer membro quando ele irá tornar-se pastor. Nessa ocasião ‘o candidato’ será sabatinado quanto aos seus saberes bíblicos, vida cristã exemplar, etc.

No enunciado, o sujeito diz que mesmo tendo recebido uma promoção de função, resolve seguir a profissão de missionária “eu vou seguir essa profissão” porque ser missionária é algo que está no seu coração, “eu amo o que eu faço”, o que a faz rejeitar à promoção profissional (secular) para seguir a vocação.

SD51 - Missionário é algo mesmo da infância da gente, por mais que eu já pensei de ir [...], eu disse não, (lvii) eu vou seguir essa profissão, mas isso assim

parte do meu coração então eu amo o que eu faço, né?

Retomando o exposto acima, a fiel ao tempo em que trabalha como missionária o faz sem a obrigatória aptidão para o emprego exigida pelo mercado. Na vida secular, ela seria uma desempregada, quadro que é revertido quando ela passa a desenvolver um trabalho como profissão de missionária, na vida religiosa, por isso se pode dizer que o trabalho de missões significa pontos de resistência ao modo de produção do capital.

Assim sendo, quanto à empregabilidade, o trabalho secular - ligado ao modo de produção do capital - refere-se à necessidade que o trabalhador tem de adquirir qualidades inerentes à profissão ou função desejada, ou seja, ele precisa estar qualificado para ser aceito pelo capital como trabalhador. No caso do crente batista, sua “empregabilidade” é garantida pela vocação demonstrada para trabalhar na divulgação daquilo que é a célula nuclear na doutrina religiosa que é a palavra divina ou “A Palavra”.

Para o fiel que desempenha atividade como missionário, esse diferencial confere ao religioso batista não depender de forma absoluta do mercado de trabalho secular. Ele deixa de ser um trabalhador desempregado no mundo secular como muitos outros trabalhadores desempregados, tornando-se um fiel que desenvolve trabalhos, no e para o setor religioso. Neste contexto, ele torna-se um crente que realiza atividades voltadas para a vida religiosa e isso o afasta do desemprego, mediante o recebimento de um ‘auxílio’ mensal pelo trabalho desenvolvido.

A fé do religioso, neste caso, funciona como um elemento diferenciador dos papéis sociais para os quais estão fadados os trabalhadores desempregados. Dizendo de outro modo, a fé, a crença do religioso determina o seu lugar na sociedade porque ele adquire, na religião, o lugar que lhe é negado na vida secular. Esse mecanismo de funcionamento das formas de

trabalho coloca o sujeito do discurso com status diferenciado quando se considera as dicotomias estabelecidas entre o mundo secular e o mundo religioso.