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5 EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO: TRABALHO, PROFISSÃO,

5.1 Trabalho: de Labuta Penosa à Vocação

5.1.1 Labuta Penosa

Nos primeiros tempos do Cristianismo, o trabalho significava punição para o pecado associado à origem adâmica. Na Bíblia, o trabalho83 aparece como castigo, como uma

penitência a Adão e a Eva pelo pecado da desobediência ao mandamento de Deus de não comer da árvore do bem e do mal. Como expiação pelo pecado cometido, Eva é condenada às dores do parto. No Gênesis (3:16), está escrito sobre o castigo destinado a Eva: “E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a dor da tua conceição; em dor darás à luz filhos; e o teu

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Como um dos significados mais específicos, trabalho pode indicar o processo de nascimento da criança. “A mulher entrou em trabalho de parto”. (Cf. ALBORNOZ, 1997). Segundo o cristianismo, com as dores impostas pelo castigo divino, o trabalho, nessa acepção, implica em sofrimento.

desejo será para o teu marido, e ele te dominará”. Para Adão, a condenação é o trabalho, ou seja, ele é condenado a ganhar o pão com o suor do seu rosto: “Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás”. (Gênesis, 3: 19).

Em latim tripalium84 era um instrumento usado nas atividades do agricultor. O

tripalium servia para bater “o trigo, as espigas de milho, o linho, para rasgá-los e esfiapá-los”

(ALBORNOZ, 1997, p. 10). No entanto, no registro mais comum dos dicionários o tripalium aparece como instrumento de tortura. Ainda segundo a autora, o conteúdo semântico de sofrer associado a trabalho teria perdurado até inícios do século XV, quando passou a significar

esforçar-se, laborar85 e obrar.

A distinção que aparece, em inglês, entre as palavras work e labour, inexiste na palavra trabalho, em português. Se em work encontra-se o sentido de trabalho associado à criação de valores com utilidade social (ANTUNES, 1995, p. 79); em labour está expresso “a execução cotidiana do trabalho”, ou ainda, labour “exprime a realização da atividade cotidiana, que sob o capitalismo assume a forma estranhada, fetichizada.” (ANTUNES, 1995, p. 79-80). Assim, na distinção em inglês, tem-se ora a prevalência do trabalho concreto ora do trabalho abstrato86, respectivamente. Essa distinção impõe uma dualidade para o termo trabalho, relacionando-o, por um lado, ao social (work) e por outro, ao sofrimento (labour).

De acordo com Albornoz (1997), em português, apesar de haver os léxicos labour (labor-laborare, em latim)e trabalho é possível conciliar, na mesma palavra ‘trabalho’, ambas as significações: a de realizar “uma obra que te expresse, que dê reconhecimento social e permaneça além da tua vida”; e a de “esforço rotineiro e repetitivo, sem liberdade, de resultado consumível e incômodo inevitável.” (ALBORNOZ, 1997, p. 9). A esses dois sentidos estabilizados da palavra trabalho associa-se o work e o labour, conforme vistos anteriormente.

Inicialmente, de acordo com os sentidos estabilizados dos dicionários, a polissemia encontrada na palavra trabalho permite sinalizar para compreender os diferentes modos, associados aos diferentes sentidos, como o trabalho foi usado na religião. Tal polissemia

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Trabalhar: Do lat. vulg. *tripaliare, ‘martirizar com o tripalium’ (instrumento de tortura), pela f. *trebalhar. (FERREIRA, Aurelio Buarque de Hollanda. Dicionário Aurélio Eletrônico)

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Em labor, predomina o conteúdo semântico de preocupações, desgostos e aflições, também presentes em trabalho, no plural.

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resulta em uma dicotomia que expressa a dualidade antitética terrena/divina, num movimento de aproximação/afastamento do sentido religioso de trabalho.

Essa polissemia expressa-se, por um lado, ora associando o trabalho ao modo de agradar a Deus; ora o vendo como meio de punição divina; por outro, ora incorporando-o à religião como forma de missão para expansão da palavra de Deus ora procurando afastá-lo pela negação de sua presença no trabalho secular, rejeitando-o enquanto lugar adequado para o crente.

Já mais distante do conceito de sofrimento, com a Reforma Protestante, o trabalho sofre uma reavaliação dentro do Cristianismo. Para o protestante, o trabalho intramundano era para “agradar a Deus” e não para enriquecer ou ostentar riqueza ou luxo. Para Lutero:

O trabalho aparece como a base e a chave da vida. Embora continuando a afirmar que o trabalho era uma conseqüência da queda do homem, Lutero, repetindo São Paulo, acrescentava que todo aquele capacitado para trabalhar tinha o dever de fazê-lo. O ócio era uma evasão antinatural e perniciosa. Manter-se pelo trabalho é um modo de servir a Deus. A profissão torna-se uma vocação. É visto como virtude e como obrigação ou compulsão. (ALBORNOZ, 1997, p. 53).

Nas mudanças sócio-históricas que provocaram o deslize do sentido de trabalho de sofrimento para o de esforço, a concepção de condições de produção representa a totalidade das transformações que produzem as mudanças, como um processo social em movimento. As condições de produção de um discurso, de acordo com Amaral, representam o espaço das contradições das relações sociais que geram relações de poder.

As condições de produção de um discurso, pois, estão relacionadas à totalidade do processo sócio-histórico, um processo social em movimento que supõe indivíduos em relação com a cultura, a sociedade e a economia, tudo isso constituindo a substância da história (AMARAL, 2005, p. 35). De acordo com as condições de produção do discurso protestante, na Renascença (CPD1), na reavaliação feita pelo protestantismo sobre o trabalho, não parecia ser necessário estabelecer uma cisão entre Deus e Mundo, posto que o trabalhar no mundo, isto é, praticar um trabalho secular significava servir a Deus. Isto porque o conceito desliza de trabalho cujo sema está vinculado a sofrimento, ligando-se àquele compreendido como esforço da doutrinação, ou seja, do trabalho religioso feito para agradar a Deus.

Nessas condições de produção, o discurso protestante contextualizado no movimento da Reforma Protestante pode ser definido como um discurso que produz um deslocamento de sentidos e institui “um outro lugar de sentidos estabelecendo uma outra região para o repetível (a memória do dizer), aquela que a partir de então vai organizar outros e outros sentidos” (ORLANDI, 1993).

O trabalho não era identificado apenas como uma ‘coisa’ do mundo. Considerando-se as condições de sua produção a partir da Reforma Protestante, afastando-o do conceito de sofrimento, o sentido dado a trabalho era associado a um modo para servir a Deus, o que significa que ele era compreendido como algo que estava no mundo, entretanto era algo governado por Deus que o atribuía como uma missão. Nesta acepção, o trabalho era visto como algo sagrado, sendo que aquilo que é sagrado desliza para as formas de trabalho de missões, nos movimentos de produção e circulação dos sentidos, em diferentes momentos da história.