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emprego cultural do conceito de indústria cultural

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 90-95)

Indústria x Cultura

O conceito de indústria cultural quer ter um teor eminentemente histórico-crítico. Por um lado, esse conceito sugere o reconhecimento da novidade histórica – agora já antiga – da expansão do empreendimento capitalista para mais uma esfera da reprodução social. Nesse sentido – e para sermos rigorosos – o conceito fala do fenômeno econômico específico da acumulação de mais-valia através de investimentos em capital constante (maquinário, tecnologia) e capital variável (trabalhadores assalariados) para produzir objetos cuja finalidade última é – e tem que ser – serem vendidos com lucro, ou seja, mercadorias culturais: imagens, sons, conceitos, espírito, sofisticação, refinamento, diversão, entretenimento, esclarecimento. Por outro lado, no conceito está também a implicação de que a esfera cultural se degrada quando se torna uma função do capital. A autonomia da esfera artística – levada a cabo e celebrada na passagem da sociedade hierárquica medieval, determinada pela expressão de valores religiosos, para a sociedade burguesa desencantada e racionalmente organizada – é atacada pela sua submissão à esfera do econômico. Os valores especificamente espirituais são traídos pela prosaica comercialização em termos de preço.

Pipoca x Cult

Da consciência dessa traição nasce a diferenciação industrial de tipos diferentes de produtos: os filmes cult e os filmes ‘pipoca’, a música erudita para gostos refinados e a música de entretenimento, e a opção, na programação de sábado à tarde, entre um descompromissado passeio pelo shopping e uma edificante visita à exposição no centro cultural (seja para interagir com as instalações, seja para apreciar distanciadamente os quadros de uma já extinta vanguarda). A possibilidade de diferenciar entre esses dois tipos de produtos é

coetânea à possibilidade de fazer a crítica dos produtos culturais que primam pelo elemento comercial – ou seja, a crítica que exige produtos culturais melhores – e também a um estado de coisas em que o consumidor de cultura está numa posição equidistante frente a todos os inúmeros itens do populoso universo de produtos culturais disponíveis – de Shakespeare a Sidney Sheldon, de Bach a Richard Clayderman.

Cultura & Indústria: Divisão do Trabalho

Nessa perspectiva, o elemento comercial e o elemento espiritual (ou propriamente cultural) do produto cultural são contrários, mas não incompatíveis. É possível reconciliar a qualidade propriamente artística com o caráter de mercadoria: é possível, por intermédio da compra de um ingresso, penetrar numa boa exposição das obras de Paul Klee; é possível pagar para assistir a um bom filme de algum diretor iraniano ou eslovaco; é possível comprar um CD com uma excelente interpretação daquela sonata de Beethoven; é possível entrar na livraria e sair com uma sacola cheia de livros bons (e não de best-sellers). Se essa perspectiva fosse transformada em uma tese teórica, ela teria fácil sustentação histórico-social: bastaria apelar-se para o fato de que, para começar, o artista especializado, na medida que dedica todo o seu tempo a desenvolver sua técnica e refinar seu espírito, precisa ter uma relação (ainda que oblíqua) com o comércio, de modo a subsistir. O artista especializado só pode existir numa sociedade marcada por uma divisão social do trabalho mais ou menos sofisticada e rígida: enquanto ele lida com a arte, os outros produzem os víveres. Depois, seja por intermédio dos mecenas, seja por comercialização direta, os resultados da arte serão trocados por víveres, inevitavelmente através da mediação do dinheiro. Todas as nossas referências de alta cultura tiveram que inserir-se de alguma forma nesse esquema – de Michelangelo a Kieslowski, passando por Beethoven e Thomas Mann – mas isso não impediu que esses grandes gênios produzissem obras que, por um lado, nos estimulam a sensibilidade e a imaginação, nos dão prazer e enriquecem a vida, e, por outro, podem ser adquiridas hoje numa loja perto de você – já que o processo de produção dessas obras desde sempre envolveu um momento de aquisição.

Cultura & Indústria: Lei Formal

A esse elemento de respaldo histórico-social da tese da compatibilidade possível entre arte e mercadoria, pode ser adicionado um elemento lógico-filosófico

que corresponderia à descrição da possibilidade da arte e da alta cultura não em termos sociológicos, mas – fazendo justiça à autonomia do estético – em termos propriamente artísticos, ou seja, formais. A arte é a maneira artística de organizar, agrupar, dispor, controlar um material sonoro, visual e/ou linguístico. Na medida que esse material está disponível no mundo ordinário não-artístico, a organização propriamente artística do mesmo material – chamada forma artística – precisa dispor desse material de maneira a contrastar com os modos quotidianos de seu aparecimento.2 Assim, a genialidade de Beethoven está na lógica singular que ele era capaz de impor aos sons, na maneira como algo nessa lógica contrasta com o comportamento dos sons no mundo extra-artístico. Se os sons, aí, são ferramentas para expressar sentidos – na fala, no apito do trem, na sirene do bombeiro, no gemido de dor – na música, o que os sons expressam são eles mesmos: o material sensível não é submetido a uma lógica extrínseca, mas torna-se matéria para si próprio. A forma artística é a disposição do conteúdo lógico-sensível segundo suas próprias demandas, seus sentidos intrínsecos. Através da forma artística, o que fala é o conteúdo, é a matéria, e as boas ideias artísticas são aquelas que se aniquilam enquanto ideias e permitem à sensibilidade vir à tona em (aparente) liberdade.3 Pois bem, essa lógica formal – segue a formulação apologética – é um traço interno às obras; é algo que não só está fora do alcance do contexto social da mercadoria como é – “ora, sejamos realistas” –, em parte, possibilitada pela especialização do artista, pela divisão do trabalho e, portanto, pelo contexto social da mercadoria. O fato de que tem gente que paga salários para trabalhadores que operam máquinas que produzem CDs de Beethoven, caixas para os CDs de Beethoven, folhetos para os CDs de Beethoven e embalagens para os CDs de Beethoven, e obtém lucro através da exploração da mais-valia que é realizada

2 trata-se, em parte e em linhas gerais, da caracterização que adorno empreende do problemático espaço da arte em sua Teoria Estética. essa caracterização está amparada, sobretudo, na arte moderna das vanguardas (embora não se limite a ela), na qual esse elemento contestador frente ao material sensível do quotidiano adquiriu consciência de si, seja através dos manifestos, seja através do caráter eminentemente reflexivo das obras mesmas: trata-se de obras que, rompendo com a referência mundana do realismo dominante nos períodos anteriores, falam todo o tempo de si mesmas e da arte em geral.

3 vale deixar indicado que há uma oposição entre a noção (adorniana) de liberdade aparente e aquela (schilleriana) de liberdade na aparência, segundo a qual a “contemplação” propiciada pelo espaço estético é um “modo da liberdade” (BarBOsa, r. tradução de: r. Barbosa. schiller ou sobre a beleza. in: sCHiller, F: Kallias ou sobre a beleza. rio de Janeiro: Jorge zahar, 2002. p. 21). É ponto fundamental da teoria adorniana da cultura que a libertação da sensibilidade através da arte não só não é uma liberdade real, como, em certo sentido, a ideia de “liberdade espiritual” é parte do mecanismo de entrave à liberdade real (c.f. adOrnO, t. e HOrKHeimer, m. tradução de: g. a. de almeida. Dialética do Esclarecimento. rio de Janeiro: Jorge zahar, 1985. Prefácio, pp. 14-15). azar de adorno não ter enfatizado suficientemente esse aspecto de sua teoria.

na venda desses CDs de Beethoven, não tem nada a ver com a maneira como Beethoven organizou o material sensível dos sons. A Nona Sinfonia – suas peculiares características formais, a imagem inigualável da liberdade sensível que ela é capaz de representar sonoramente – continuará a ser a Nona Sinfonia mesmo que a mídia na qual ela está digitalmente gravada seja produzida por escravas de treze anos de idade trabalhando dezoito horas por dia em uma oficina insalubre em algum falido Tigre Asiático. Eis o poder do gênio de Beethoven.4

Cultura Contemporânea < Alta Cultura

Essa teoria lógico-filosófica da autonomia do estético exige, como complemento, um comentário a respeito da cultura contemporânea: a referência para a arte boa e autônoma – para a alta cultura – está na arte especializada do período moderno,5 e em um impulso que está ausente da cultura que já é produzida no ambiente de industrialização generalizada, a saber, o primado da lógica formal da organização autônoma (ou da auto-organização) da sensibilidade. Quando a finalidade última e imperativa é a obtenção de lucro através de um consumo rápido e periódico, considerações sobre a organização do material sensível não são imprescindíveis à produção do novo bem cultural. Beethoven e o resto da arte especializada do período moderno jamais foram totalmente incompatíveis com alguma forma de comercialização, mas há uma diferença entre a troca fundada na divisão do trabalho do período moderno e a produção fundada na acumulação de capital da contemporaneidade. Assim, por mais que a lógica da mercadoria não seja capaz de destruir o gênio inabalável de Beethoven – o qual, aliás, tinha problemas constantes com seus mecenas – ela está, desde sua ulterior expansão e fortalecimento, em forte contradição com o surgimento de novos gênios. Não obstante,mesmo essa forte contradição ainda não é uma contradição absoluta: a noção de arte como investimento produtivo, por si mesma, não elimina o espaço da modernidade artística, da autonomia formal e, embora descreva uma situação

4 no fim das contas, essa concepção pode ser ligada à noção originalmente kantiana do espaço estético enquanto fundamentalmente dissociado do interesse – sendo que esse último é entendido aí, a princípio, como interesse na existência do objeto esteticamente apreciado ou “contemplado” (c.f. Kant, i. tradução de: v. rohden e a. marques. Crítica da Faculdade do Juízo. rio de Janeiro: Forense universitária, 2008. §§1-5). na medida, entretanto, que aquele desinteresse está determinado por uma atividade das faculdades cognitivas que é independente da formação de um objeto específico (c.f. ib., “introdução”), pode-se dizer que a contemplação estética autônoma em sentido kantiano se dá a despeito do mundo e de costas para ele – sendo que esse mundo, no sistema kantiano, já havia sido definido como a contraparte daquelas faculdades cognitivas: a natureza esquadrinhada por leis e pronta para ser dominada, ainda que arduamente (c.f. idem, e também Kant, i. tradução de: v. rohden e u. B. moosburger.Crítica da Razão Pura. são Paulo: nova Cultura, 2005. Prefácio à segunda edição).

5 É preciso refazer a ressalva de que nem toda a arte do período moderno é arte moderna, mas a arte moderna “diz a verdade” sobre a arte do período moderno, ou explicita aquilo que ele sempre havia sido.

contemporânea desfavorável, não barra a entrada no passado. É possível ganhar muito dinheiro e, mesmo assim, introduzir elementos formalmente interessantes nas obras. É uma questão, talvez, de genialidade, boa vontade e jogo de cintura, mas, no fim das contas, uma legítima indústria de alta cultura não é impossível. Com base na mesma lógica, é possível dizer que uma continuação contemporânea da alta cultura não é impossível, tampouco. Empregando-se as funções de distribuição e divulgação características dos processos de comercialização industrial – funções essas que, mais uma vez, mantêm intocadas as características formais internas das obras – pode-se, inclusive, empreender uma legítima democratização da cultura (contanto, é claro, que se evite procedimentos bárbaros de esquartejamento, como a apresentação isolada dos elementos das grandes óperas dentro das dependências do metrô do Rio).

Cultura, Divisão do Trabalho, Barbárie

Ora, esse argumento ou coleção de argumentos não é apenas tão razoável que parece inobjetável: ele também consiste numa tentativa desesperada de salvar a cultura enquanto valor humano autônomo em meio à enxurrada da ‘mercadorização’ – algo que tem toda a aparência de uma meta louvável. Assim, voltar-se contra essa posição – que é a que impera entre os acadêmicos, promotores culturais, pessoas de bom-senso e bom-gosto, professores esclarecidos e críticos bem-intencionados – só parece ser possível através de um ataque ao seu fundamento: à arte autônoma burguesa, à alta cultura. Ou seja: seria preciso sugerir que aquele espaço de liberdade contemplativa, tão caro à existência das pessoas que já são sensíveis e daquelas que desejam sê-lo, tão indispensável enquanto alternativa espiritual ao mundo brutal e prosaico, tão cheio de imagens fundamentais à educação e à produção de seres humanos melhores, é fundamentalmente problemático. A origem dessa inglória sugestão poderia ser a constatação de que, a bem da verdade, dada a estrutura mesma de fundamentação do espaço estético a partir da ideia de autonomia, a forma artística burguesa sempre foi essa instituição social fundamentalmente indiferente à existência da brutalidade social. Talvez, de fato, pudéssemos ir um pouco mais longe: como resultado da sua inserção necessária e constitutiva na divisão social do trabalho, a arte burguesa – a qual fornece nossas principais referências para os conceitos enfáticos de arte e de cultura – não só foi sempre indiferente à brutalidade e à injustiça social, mas sempre dependeu essencialmente da brutalidade e injustiça social, ou sempre foi um resultado direto delas.6 Nessa

6 trata-se de algo que Walter Benjamin tentou expressar através da formulação: “não há nenhum documento da civilização que não seja também um documento de barbárie”. (BenJamin, W. tradução de: H. zorn. theses

perspectiva, a cultura aparece como um privilégio: um delicioso privilégio, é verdade, em cujo papel social de escárnio com os explorados talvez possa ser detectado um elemento que esteja em contradição fundamental com o projeto de sua defesa enquanto valor social, para não falar em sua democratização. E embora a enunciação de uma tal incompatibilidade entre democratização e cultura talvez sugira o elitismo,7 o que está em jogo, evidentemente, não é que a alta cultura não pode ser democratizada porque é boa demais, mas que não vale a pena fazê-lo porque ela é ruim. Na época de sua decadência causada por seus próprios elementos de dominação prosaica, a cultura burguesa não merece ser promovida por aqueles que perecem na sociedade burguesa devido às mesmas causas. A ideia de generalizar o privilégio cultural, coetânea à democratização do consumo de bens de luxo – à capacidade de parcelas cada vez maiores da classe de trabalhadores assalariados de conseguirem adquirir viagens de turismo e batedeiras elétricas – talvez não seja tão diferente dela e de um projeto problemático de generalização, entre os explorados, do estilo de vida da elite.8

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 90-95)