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ii- pensar diante da barbárie

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 55-60)

o marxismo ocidental no PCB – o caso Carlos Nelson Coutinho

O marxismo ocidental no Brasil é uma passagem da história da esquerda brasileira que ganha vida nova a partir da derrota de 1964 e fará desta data um marco a ser pensado. Em A Derrota da Dialética, Leandro Konder fala como este se tornou o problema central para a sua geração de intelectuais de esquerda: “[o] esforço em compreender por que a esquerda avaliara tão mal a situação e fora derrotada” (1988).

A introdução desta corrente do marxismo no Brasil deveu-se a diversos caminhos. Como ocorre frequentemente na história intelectual do país, alguns desses caminhos foram os modismos e as reações à hegemonia do PCB na esquerda. Para além desses modismos passageiros, sem maiores consequências, uma das experiências mais interessantes e persistentes, que fez época, se deu em São Paulo, com um grupo de professores e estudantes da USP, em 1958, que criaram o Seminário de Estudos de O Capital, cujo eixo de leitura estava influenciado por diversos autores desta corrente do marxismo12.

Primeiros passos

Outra experiência significativa de introdução do marxismo ocidental no Brasil foi o resultado de reflexões e combates internos ao PCB, a partir do tema a que se referiu Leandro Konder. Este caminho irá produzir um duplo deslocamento: primeiro, a tentativa de renovação do PCB; segundo, com a derrota desta iniciativa, a criação de um novo campo de elaboração da esquerda que, do vínculo orgânico com organizações e partidos, passará para as universidades. Diga-se de passagem, nestas instituições já viviam aclimatados os participantes do Seminário Marx. (No período histórico anterior, ocorreu mais frequentemente o inverso, isto é, as formulações universitárias chegavam aos grupos políticos e movimentos sociais ou, o que foi ainda mais comum, a incomunicabilidade entre as duas elaborações.)

Da geração renovadora do PCB, após a redemocratização do país, a maioria se tornou professor universitário13. Esta elaboração passou a ter laços com as leituras

12 sobre isso, ver arantes, P. Falsa Consciência como Força Produtiva. nota sobre marxismo e Filosofia no Brasil. in: Lua Nova. Revista de cultura e política. são Paulo: CedeC, 1989, pp. 37-46.

“acadêmicas do marxismo” (as ligações com o Seminário Marx de São Paulo, com Otávio Ianni, Michael Löwy, Roberto Schwarz etc.).

Contra o marxismo vulgar

A polêmica com a leitura do marxismo realizada pelo PCB é um eixo motivador desta recepção. A tese da derrota da dialética e os confrontos contra: [1] o determinismo do marxismo-leninismo da III Internacional e seu economicismo padrão – isto fica evidente no papel secundário dado por essa tradição à tematização do sujeito e da práxis; e [2] as análises das transformações do capitalismo – o capitalismo monopolista e a periferia, que diz respeito à caracterização dos resultados das transformações do Brasil após a Revolução de 1930 e os impasses de 1964 (cf. a polêmica de Caio Prado contra o modelo asiático de interpretação da revolução burguesa em A revolução brasileira).

As contribuições de Carlos Nelson a este capítulo do marxismo

A teoria política de Gramsci permitiu a intelectuais como Carlos Nelson Coutinho elaborar tanto uma autocrítica da derrota de 1964, fazendo da democracia um valor fundamental e o próprio meio e fim para se pensar a transição ao socialismo, como lhe permitiu, a partir do conceito de Estado ampliado, pensar o modus operandi desta estratégia:

A ampliação do conceito de Estado [...] não resultou apenas da escolha de um ângulo de abordagem mais rico (menos abstrato); resultou também, e sobretudo, do próprio desenvolvimento objetivo tanto do modo de produção quanto da formação econômico-social capitalista.

(Marxismo e Política; 1994, p. 17).

A caracterização do seu pensamento como gramsciano é, à primeira vista, verdadeira, mas não deixa de ser empobrecedora, pois certamente ele vai além ao incluir neste pensamento uma reflexão original sobre o Brasil. Neste sentido, no marxismo de Carlos Nelson operam duas variáveis: 1) o entendimento do modo de produção capitalista e seu desenvolvimento como uma realidade mundial, em suas leis gerais abstratas, em que o Brasil é um momento determinado deste processo, com suas formas particulares de

formação social; e 2) a leitura crítica que o marxismo faz destes processos, em suas formas complexas e interdependentes, assim como as implicações para a compreensão das particularidades do Brasil.

Assim Carlos Nelson pensa e inscreve o marxismo brasileiro como um momento desta história. Tal elaboração dá consequências à articulação entre centro e periferia como um elo imprescindível da teoria. Ele é um momento articulado e combinado das abstrações gerais do modo de produção com as interpretações concretas da formação social brasileira.

A importância da política como síntese de uma práxis emancipatória

Na Tese 10 sobre Feuerbach, Marx diz: “O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade civil burguesa; o ponto de vista do novo é a sociedade humana ou a humanidade social”. Esta transformação é uma possibilidade objetiva presente na sociedade burguesa. Porém, para vir a ser, ela precisa também ser objeto da práxis; caso contrário, outras possibilidades também inscritas nesta sociedade podem se realizar (como a barbárie, por exemplo). O conceito de política de Gramsci, na sua acepção ampla, conforme o entende Carlos Nelson, vai neste sentido da Tese 10.

Sendo uma mediação para a realização da humanidade social, a política deve ter na democratização radical uma questão de princípio. É neste sentido que se pode compreender a afirmação do valor universal da democracia. A universalização se refere tanto à busca da ampliação dos âmbitos do exercício da política sob bases democráticas (o que o autor chama, seguindo Gramsci, de socialização da política); como se refere ao fato de que a democracia não é um valor restrito à época histórica da sociedade burguesa, portanto, transitório e incompatível com o socialismo, mas, ao contrário, a sua ampliação é a própria forma de construir o socialismo:

A tensão entre a manutenção dos horizontes históricos presos à sociedade burguesa e a sua superação (a humanidade social) são destinos possíveis da socialização da política. No caso da superação, teríamos a auto-organização da sociedade com a universalização da democracia (democracia de massas e socialismo, segundo Carlos Nelson). Porém, o agrilhoamento do horizonte histórico a esta forma social também é parte das possibilidades em curso. Neste caso, o resultado seria o fortalecimento do Estado (como causa-efeito da revolução passiva – “das revoluções pelo alto” (cf. Gramsci: um estudo..., p. 202-3). Esta possibilidade o autor chama de americanismo, isto é, um modelo social econômico-corporativo.

O golpe de 1964 abriu o caminho para que esta segunda hipótese se fortalecesse, e a fraca transição à democracia (novamente uma mudança ‘pelo alto’) nos anos 1980 aprofundou esta tendência. Este processo acelerou a passagem do Brasil ao capitalismo monopolista e ao ‘tipo de sociedade ocidental’:

Porque o Brasil tem a peculiaridade de ser uma sociedade ‘ocidental’ [...], ou seja, com uma sociedade civil já bastante articulada e pluralista, mas, ao mesmo tempo, de conter dentro de si, também, essa ampla faixa de exclusão social, esse grande ‘oriente’ miserável e marginalizado. De certo modo, estamos numa encruzilhada onde se encontram e se integram as contradições do Primeiro Mundo com as contradições do Terceiro Mundo. Acho que Trotsky não hesitaria, diante do Brasil de hoje, em falar de desenvolvimento desigual e combinado. (Contra a Corrente..., p. 146).14

O frustrante resultado do processo de transição democrática nos anos de 1980 criou um horizonte desvanecido que foi amplificado pela queda do muro de Berlim e pela crise da social democracia europeia, ampliando o quadro defensivo da democratização radical da política:

O movimento socialista, particularmente após os eventos do Leste europeu, atravessa uma das mais profundas crises de sua história, crise que envolve não só as sociedades que se identificaram [...] como ‘socialistas’ (ainda que essa identificação possa e deva ser qualificada), mas também [...] a capacidade projetual e programática dos vários movimentos políticos que reivindicaram e reivindicam a tradição da esquerda. (Contra a..., p. 103).

Neste contexto histórico, as contrarreformas realizadas nos anos de 1990 aprofundaram o modelo de americanização da sociedade brasileira. Elas produziram o desmonte das condições objetivas para uma democracia de massas. O sentido deste processo regressivo não se realiza contra um

14 É interessante observar como nesta formulação de Carlos nelson há uma semelhança reelaborada da barbárie em Candido: o Brasil seria uma sociedade ocidental, resultado do processo colonizador (e suas contradições, cada vez mais bárbaras, como o autor dirá em outro momento de sua obra mais recente) que guarda dentro de si “esse grande ‘oriente’ miserável e marginalizado”.

inimigo organizado e que ameaça a continuidade do todo. É para caracterizar esta situação que começam a surgir com muita frequência na prosa de Carlos Nelson as referências à barbárie:

[...] o socialismo se tornou não só uma possibilidade cada vez mais objetiva e concreta, como também uma necessidade, já que cada vez mais se revela como a única alternativa sensata que hoje se apresenta à crescente barbárie produzida pelo novo estágio ‘globalizado do capitalismo’. (Idem, p. 84).

Ele passa a fazer uso mais frequente do termo ‘barbárie’ a partir do seu livro Contra a Corrente..., de 2000. Neste livro, o termo é quatro vezes usado. O primeiro, na citação acima. O segundo, num artigo sobre o Manifesto Comunista, de maio de 1998, em que ele diz, ao analisar uma das frases do texto de Marx e Engels:

‘O livre desenvolvimento de cada um é o pressuposto para o livre desenvolvimento de todos’. É uma frase densa de significado, que fornece aos marxistas de hoje critérios para avaliar as razões do fracasso do ‘socialismo real’ [...] para resgatar a dimensão libertária do comunismo, esse ‘espectro’ que continua sendo [...] a única alternativa racional e sensata à crescente barbárie capitalista. (COUTINHO, 1998, p. 168).

O terceiro e o quarto, num artigo sobre Gramsci, de 2000. Diz ele:

Essas personalidades de esquerda parecem querer recusar liminarmente a única alternativa exeqüível à barbárie em que estamos cada vez mais envolvidos, ou seja [...] uma sociedade socialista. (COUTINHO, 2000, p. 174).

E, por fim, pouco depois, ele complementa:

Para o autor dos Cadernos do Cárcere, o socialismo é obra dos homens. Não é uma necessidade objetiva [...]; mas é certamente uma necessidade subjetiva, na exata medida em que só por intermédio de sua realização os homens podem efetivamente livrar-se da barbárie e cumprir as promessas da emancipação contidas na modernidade. (COUTINHO, 2000, p. 175).

Algo ocorreu entre o intervalo da publicação de Marxismo e Política, de 1994, e o destes ensaios. Este fenômeno é perceptível em vários marxistas de sensibilidade apurada nestes tempos. A centralidade que o conceito de barbárie, mesmo que hipotético e pouco desenvolvido de forma sistemática, vai adquirindo na obra de Carlos Nelson (e no tempo em que o objeto de sua análise se desenvolve) pode ser evidenciado pelo seguinte prognóstico que, desde seu enunciado, a sociedade brasileira apenas aprofundou em suas piores previsões:

[...] se a sociedade brasileira não for capaz de resistir, impedindo a continuidade das políticas neoliberais [...] estaremos brevemente entregues [...] à mão invisível do caos. [...] O destino da democracia no Brasil está hipotecado: ele depende da nossa capacidade de impedir que o neoliberalismo conduza [...] ao definitivo desmonte da Nação brasileira. (Contra a..., p. 124).

Carlos Nelson é um intelectual que se viu diante da barbárie.

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 55-60)