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Sérgio Buarque de Holanda

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 46-50)

O ponto de vista de Sérgio Buarque de Holanda obedece – em que pese diferenças teóricas significativas entre os dois autores – a uma perspectiva semelhante à de Caio Prado Jr.: o de um estado de barbárie procedendo do passado e que persegue o presente. A barbárie é o que vem das raízes do passado, da formação da nação como uma civilização rústica. Além disso, ela é também uma consequência da confrontação dos opostos que irão se conformar na dinâmica da história: a herança

colonial (civilização rústica) versus o processo de transformação modernizadora (que se inicia politicamente em 1808 e se aprofunda economicamente após 1850). Estes são os elementos do que Sérgio Buarque chamou de uma “grande crise”, em que se contrapunham como dois eixos dinâmicos da vida social, e cuja forma desta dialética se apresentou como traço característico do espírito (cultura) brasileiro: “Eram dois mundos distintos que se hostilizavam com rancor crescente, duas mentalidades que se opunham como ao racional se opõe o tradicional [...], o citadino e cosmopolita ao regional ou paroquial” (Raízes..., p. 46).

A civilização rústica tem seu centro “nas propriedades rústicas [...]. Durante os séculos iniciais da ocupação [...] as cidades são virtualmente, se não de fato, simples dependências delas” (Raízes..., p. 41). Rústico quer dizer tanto algo campestre, relativo ao campo, que Sérgio Buarque, sem desconsiderá-lo, põe em segundo plano; como algo grosseiro, rude, sem acabamento, incivil, que, ao que parece, ocupa o primeiro plano da definição.

Poderíamos buscar uma forma sintética da noção de rústico em algo como ‘de pouco cultivo’, sem estarmos, portanto, distante ou fora da intenção do autor. O termo ‘cultivo’, do mesmo modo que ‘rústico’, serve tanto para nos referirmos ao cultivo da terra como ao cultivo do espírito. Desse modo, no termo ‘cultivo’ também há este duplo sentido e valeria a pena manter os dois, já que as formas de técnica e procedimentos de trabalho dizem respeito a um conceito amplo de cultura (espírito).

Nesta acepção, a noção de cultivo superficial do espírito poderia ajudar a compreender o estado acanhado e mesquinho em que se desenvolveu a vida social, política e intelectual do período colonial, assim como as observações comuns a quase todas as crônicas de viajantes estrangeiros nos sécs. XVII e XVIII sobre os modos rústicos dos colonos. Tal rusticidade é notória no trato com índios e negros, desde a crueldade e brutalidade cotidiana da escravidão, até no “estigma social” que neles se colou. No momento importante da formação da nação, que foi a Independência, esta rusticidade se manteve presente tanto no que Sérgio Buarque chamou de patrimonialismo, como no seu polêmico conceito de homem cordial.

O patrimonialismo é uma expressão genuína da falta de cultivo do espírito objetivo7, sua manifestação mais visível da incapacidade de se criar uma esfera pública transparente mediada por normas e leis impessoais. A relação entre a vida privada – a família, os negócios – e o Estado, concebido como momento

da liberdade coletiva, é reduzida pelo prolongamento dos valores privados no espaço comum. Não se forma um campo8 em que valores de discernimento da vida pública prevalecem na ação comum. O afeto, os sentimentos (brutos, visto se tratar de homens rústicos) se sobrepõem às mediações da razão. O patrimonialismo pressupõe, portanto, a constituição da sociabilidade, tendo como centro as relações privadas: “A entidade privada precede sempre [...] a entidade pública” (idem, p. 50). A “casa-grande” substitui e prolonga a esfera pública. Este traço característico da herança colonial se mantém na transição ao urbano, mostrando-se um elemento resistente e de complexa superação: “A mentalidade de casa-grande invadiu [...] as cidades e conquistou todas as profissões, sem exclusão das mais humildes” (idem, p. 55-6).

Outro aspecto em que a rusticidade se manteve é na cordialidade do brasileiro. Esta decorre da esfera pública mutilada que se configura como patrimonialismo e revela um âmbito fundamental dos costumes e dos sentimentos do brasileiro. A importância que adquire a família patriarcal, ao se tornar a mais autêntica instituição da vida nacional, faz com que seus valores, determinados pelos laços naturais e ainda distantes das mediações racionais, tornem-se o modelo da vida coletiva. Desse modo, o patriarcalismo acaba ancorando a vida nacional sobre uma “ética de fundo emotivo” (Raízes..., p. 109), imersa em sentimentos que não ganham a representação universal inerente à lei, ao direito e à política, constituindo-se, com isso, numa esfera de valores onde tudo é casa. A experiência formativa essencial de uma classe dominante que pretende conceber e dirigir um país, de sair de casa, de se formar antes de se tornar um cidadão, por meio de uma educação impessoal, tutorada pela leitura e o debate com outros pares (que servisse, por outro lado, de modelo para as classes subalternas), só começou a ocorrer no Brasil em 1827, com a fundação da faculdade de Direito de Pernambuco e São Paulo. Esta imagem pode ser muito útil para se pensar esta feição do Brasil: um país sob domínio de formas de produção de mercadorias num regime de acumulação de capital, com modos bastante rústicos de vida social e política. Tal arranjo apenas mantém e se constitui no preço de uma tremenda violência física contra os indivíduos. O homem cordial parece ser o resultado desta situação.

Ser cordial, diz Sérgio Buarque, é agir movido pelas razões do coração, que não abrangem “apenas e obrigatoriamente sentimentos positivos

de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade [...]” (Raízes..., p. 107). O resultado deste modo de ser é que nossa “forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez” (Raízes...,

p. 107). A epopria da subjetividade fundante do eu abstrato burguês, a solidez de um procedimento teórico-social, como o cogito cartesiano, estariam em falta no homem rústico que, não obstante, vive a modernidade dos meios.

A revolução brasileira

A exemplo de Caio Prado Jr., Sérgio Buarque também concebe a supressão deste estado de barbárie a partir de um processo revolucionário. Nossa revolução se caracterizaria pela dissolução da herança colonial e por ser um processo de longa duração: “A grande revolução brasileira [...] é antes um processo demorado e que vem durando pelo menos há três quartos de séculos” (Raízes..., p. 127). Este período de transformação teria começado após os acontecimentos de 1888 e 89, e ganharam dramaticidade e maior definição com a Revolução de 1930. A sua via opera pelo alto9: “É curioso notar-se que os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo [...]” (Raízes...,

p. 119).

Não obstante ser uma revolução pelo alto, existe, para Sérgio Buarque, um sentido plebeu na revolução brasileira, que é a afirmação positiva da mestiçagem do povo que, ao continuar e interagir com as imigrações do século XX, poderia produzir uma classe que, tanto física como intelectualmente, era melhor que as classes superiores e poderia demonstrá-lo se lhe fosse dada oportunidade (Raízes..., p. 136). Este posicionamento demarca uma diferença com as concepções de Euclides da Cunha e Sarmiento e, por conseguinte, sustenta uma leitura distinta do que estes consideraram barbárie (inclusive como destino do que Caio Prado chamou de barbárie de primeiro nível: a dos indígenas e negros). A aceitação afirmativa da mistura é um salto dialético sobre a dicotomia euclidiana. Com isso, a mestiçagem constrói um conceito positivo de plebe que opera pelo desrecalque da questão das raças (índios e negros).

Sérgio Buarque prossegue nos caminhos da interpretação do Brasil realizada nos anos de 1930, que, radicalizada pela conjuntura internacional e pelo contexto de crise da sociedade agrária brasileira,

9 Como o leitor há de lembrar, esta concepção de mudanças pelo alto está presente também em Caio Prado Jr. e é um componente do estado de barbárie.

submeteu a razão da “sociedade mal-formada nesta terra, desde as raízes” (idem, p. 135), a uma contumaz crítica. Nosso estado de barbárie, que conforma estas relações sociais desiguais, tem nestas raízes sua origem e razão de permanência. Este estado nos assombra como um passado que domina o presente. Por estas razões, ele deve ser enterrado.

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 46-50)