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Roberto Schwarz

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 60-65)

A obra de Roberto Schwarz se insere no desafio de conseguir produzir mediações entre a teoria crítica do capitalismo e sua periferia, numa época em que esta mediação exige um delicado senso de perspicácia e ousadia do pensamento dialético, uma vez que este aporte crítico assinala cada vez mais nitidamente a percepção do ‘fim da era do progresso’ e a história universal como ‘condenação’. Para um país com as proporções catastróficas do atraso como é o caso do Brasil, este é um esforço de lucidez impressionante e uma capacidade admirável de caminhar contra o vento.

Como visto na introdução do marxismo ocidental no PCB, Schwarz também parte da reflexão da contrarrevolução de 1964 como um acontecimento determinante de todo um período com suas consequências desastrosas. Este ponto de partida pode ser tomado pelo fim do processo sócio-histórico recente. Comentando um ensaio de Francisco de Oliveira – “O ornitorrinco” –, Schwarz observa:

[Francisco de Oliveira] Retoma o argumento de Fernando Henrique Cardoso, que pouco antes do golpe de 1964 dizia, contrariando a voz comum na esquerda, que a

burguesia industrial havia preferido a ‘condição de sócio-menor do capitalismo ocidental’ ao risco de ver contestada a sua hegemonia mais à frente. [...] ‘No limite a pergunta será, então, subcapitalismo ou socialismo?’ A quarenta anos de distância, Francisco de Oliveira vai catar naquela mesma desistência um inesperado grão de otimismo, mas de otimismo para o passado, que por contraste escurece o presente: se houve escolha e decisão, a ‘porta da transformação’ estivera aberta. Mesmo não aproveitadas, ou deliberadamente recusadas, as brechas do período circunscrito pela Segunda Revolução Industrial [...] existiam.

(In: OLIVEIRA, “Prefácio com Perguntas”, Crítica da Razão

Dualista, 2003, pp. 14-15).

O golpe de 1964 representou, para Schwarz, a imposição de um programa de estudos críticos cujas dificuldades serão imensas. Como indicado na observação sobre “O ornitorrinco”, algo no mundo e no Brasil se modificava a partir daquela data e traria drásticas repercussões para a vida social. Esta preocupação tem algo, a propósito, de semelhante ao que Marcuse se perguntava, numa conversa com Habermas, sobre a derrota da Revolução alemã de 1919-23: “O que ocorre após o fracasso da revolução? Uma pergunta que para nós era decisiva” (A grande recusa..., p. 31). Não se trata, portanto, apenas de compreender melhor o Brasil e o mundo, mas de entender o Brasil no mundo à luz da resposta de por que fora tão mal avaliada a conjuntura daqueles anos? Compreender melhor o Brasil é também se desfazer de um corpo teórico que se demonstrara claramente equivocado naquele contexto. Um corpo teórico, aliás, que foi incapaz de construir uma teoria da revolução à altura daquelas circunstâncias.

As idades do Brasil

O conceito de formação é uma obsessão importante para uma reflexão dialética do processo histórico do país. Ele faz parte do título ou do alicerce argumentativo das obras mais relevantes dos chamados intérpretes do Brasil. Ele corresponde a um critério da crítica que se tornou clássico, do qual derivamos também os estados de barbárie e as expectativas quanto a sua superação. Em Euclides da Cunha, o conceito de civilização europeia tem este papel de metro, de medida do que éramos e da tragédia que nos acometia, assim como do caminho que ainda teríamos que trilhar para chegarmos ao concerto das nações materializadas pelo progresso.

Caio Prado fará um uso mais dialético e crítico deste critério, mas não sem a esperança de que um dia, no futuro, o processo de formação estaria completado caso “fosse superada a nossa herança de inorganicidade social” (Seqüências...,

p. 54), e poderíamos então desfrutar as benesses da civilização – que caminhava inexoravelmente para o socialismo. Sérgio Buarque vai na mesma direção, com diferenças pouco substanciais para o que aqui nos interessa ( idem, pp. 54-55).

Comentando este tema, numa intervenção em seminário dedicado a Antonio Candido, Schwarz (“Os sete fôlegos de um livro”, in: Seqüências...) dá uma excelente pista para percebermos a importância da diferença deste conceito na obra do homenageado para com os outros e o papel que tal diferença viria a ter na sua própria obra:

[...] a formação da literatura brasileira é identificada como uma estrutura histórica em sentido próprio, aliás de grandes dimensões [...] a pesquisar e estudar dentro de sua lógica. Por exemplo, a identificação do caráter peculiarmente interessado ou empenhado dessa literatura – [...] implicado na natureza patriótica e programática do processo de formação nacional tardia – é uma descoberta de peso, cheia de alcance para a compreensão da vida intelectual brasileira, e provavelmente das outras comparáveis, saídas como a nossa, de condições coloniais. (Seqüências..., p. 50).

Antonio Candido escreve Formação da Literatura Brasileira num período posterior aos intérpretes dos anos de 1930, que tinham razões suficientes para localizar, num futuro próximo, o processo em que a formação da nação se completaria. Já no crepúsculo dos acontecimentos da Revolução de 1930, pensando outro momento decisivo da nossa história, e não especificamente o processo político, sua análise irá combinar “categorias de história literária e de história política” (idem, p. 52). O resultado é, segundo Schwarz, surpreendente. Diz ele, para Candido:[...] a etapa da formação está concluída e [...] seu prisma já não tem razão de ser: a literatura brasileira existe e a rarefação da vida colonial foi vencida. Não obstante, em outro âmbito, a formação do país independente e integrado não se completou, e é certo que algo do déficit se transmitiu e se transmite à esfera literária, onde a falta de organicidade, se foi superada em certo sentido, em outro continua viva. (Seqüências..., p. 53).

E um pouco mais à frente ele completa:

sua parte interessada em letras, pôde alcançar um grau considerável de organização mental, a ponto de produzir obras-primas, sem que isso signifique que a sociedade da qual esta mesma elite se beneficia chegue a um grau de civilização apreciável. Nesse sentido, trata-se de uma descrição do progresso à brasileira, com acumulação muito considerável no plano da elite, e sem maior transformação das iniqüidades coloniais. (Seqüências..., p. 55).

roberto Schwarz e a “experiência brasileira da barbárie”

Ora, se pergunta Schwarz, se o processo já completo da formação nacional é determinado também, sobretudo, pelo movimento mundial do capital, a má-formação brasileira, dita atrasada, manifesta a ordem de atualidade a mesmo título que o progresso dos países adiantados” (idem, p. 45). Portanto, a reflexão de Antonio Candido sobre “o traço cultural através do qual nos comparamos a outros países”, feito em seu ensaio “Dialética da Malandragem”, ainda está associada a um tempo em que estas realidades nacionais eram dominantes:

[Hoje] Diante da extraordinária unificação do mundo contemporâneo sob a égide do capital (e da dinâmica enigmática do mundo dito socialista), aquela comunidade das nações é um conceito recuado da experiência histórica disponível, é um tempo morto da dialética. (Que Horas São?, p. 153).

A conclusão da formação nacional num tempo de unificação do mercado mundial diluiria também o traço específico do país. Trata-se, então, de um processo – a história universal como condenação – de desmonte da nação (cf. Carlos Nelson) em que, “de certo ângulo, em lugar da almejada europeização ou americanização da América-Latina, assistimos à latino-americanização das culturas centrais” (Que Horas São?, p. 36).15

o colapso da modernização

Aceitando a leitura de Kurz de que a queda dos regimes do leste europeu se deveu às novas condições de concorrência no “sistema mundial produtor de

15 schwarz faz esta observação em “nacional por subtração”, a propósito das diversas e inusitadas funcionalidades do desconstrucionismo.

mercadorias”,16 Schwarz afina seus argumentos em torno da combinação deste processo com o anterior. Ou seja, o colapso do socialismo real seria apenas mais um momento da crise do capital em andamento desde as transformações de fins dos anos de 1960 e início dos 70, cujas bases no Brasil foram postas pelo golpe de 1964.

A crise em andamento teria justamente no início dos anos 1980 a sua data de estreia por estas terras. A inviabilidade do esforço retardatário de emparelhamento com os países centrais mostrava-se uma quimera na bola de neve da dívida externa e na impossibilidade de fazer do horizonte econômico a base de superação das iniquidades sociais. Os argumentos do período ditatorial de que os ganhos do impressionante crescimento daquele período em algum momento seriam distribuídos ficaram mesmo como peças de ideologia. A partir das duas últimas décadas do século XX o país entrou num estado de hibernação com enormes contingentes da população sobrando sem nenhuma utilidade econômica que valesse a pena.17

Poderíamos organizar e resumir as hipóteses interpretativas de Schwarz sobre o rumo do país em quatro teses a serem construídas sobre a desagregação em curso e o lugar específico da cultura:

[A integração da sociedade brasileira] perdeu o sentido, 1.

desqualificado pelo rumo da história. A nação não vai se formar, as suas partes vão se desligar umas das outras, o setor mais ‘avançado da sociedade brasileira já se integrou à dinâmica mais moderna da ordem internacional e deixará cair o resto. (Seqüências..., p. 57).

O ornitorrinco deixou de ser subdesenvolvido, pois as brechas 2.

[...] que faziam supor possíveis os indispensáveis avanços recuperadores se fecharam. Nem por isso é capaz de passar

16 É frequente a objeção a Kurz por supostamente substituir o conceito de modo de produção pelo de “sistema mundial de produção de mercadorias”. a bem da verdade, se esta não é a primeira sociedade produtora de mercadorias que existiu na história, ela é, no entanto, a única que fez desta forma social o eixo central de todas as relações humanas e, por conseguinte, que se tornou, por meio da centralidade que adquire esta forma, e sua força impulsionadora, uma sociedade mundial. não implica, portanto, uma “substituição do conceito” de modo de produção capitalista, mas a definição precisa do que significa tal conceito como momento essencial da lógica estruturada socialmente em torno da valorização do valor na atualidade.

17 “[nos anos 80] O nacional-desenvolvimentismo entrava em desagregação – e começava o período contemporâneo que [...] poderíamos chamar de ‘nosso fim de século’. [...] O processo de modernização [...] não se completou e provou ser ilusório. nestas circunstâncias, a desestabilização dos sujeitos, das identidades, dos significados, das teleologias [...] adquiriu uma dura vigência prática” (Seqüências..., p. 158).

para o novo regime de acumulação, para o qual lhe faltam meios. [...] Trata-se de um quadro de ‘acumulação truncada’ [...] em que o país se define pelo que não é; ou seja, pela condição subdesenvolvida, que já não se aplica, e pelo modelo de acumulação, que não alcança. (Prefácio com perguntas. In: Oliveira, F. Crítica da Razão..., p. 15).

[...] suponhamos que a economia deixou de empurrar em direção 3.

a integração [...]. Se a pressão for esta, a única instância que continua dizendo que isso aqui é um todo e que é preciso lhe dar um futuro é a unidade cultural que mal ou bem se formou historicamente [...]. [...] a cultura formada [...] funciona como um antídoto para a tendência dissociadora da economia. [...] é preciso reconhecer que nossa unidade cultural mais ou menos realizada é um elemento antibarbárie, na medida em que diz que aqui se formou um todo, e que esse todo existe e faz parte interior de todos nós [...]. (Seqüências..., p. 57).

A contemplação da perda de uma força civilizatória não deixa de 4.

ser civilizatória a seu modo. Durante muito tempo tendemos a ver a inorganicidade [...] como um destino particular do Brasil. Agora ela e o naufrágio [...] aparecem como o destino da maior parte da humanidade contemporânea, não sendo, nesse sentido, uma experiência secundária. (Seqüências..., p. 58).

Estas teses parecem confirmar este lugar de um intelectual que sabe estar diante da barbárie e procura compreendê-la, elaborando de modo bastante sistemático este conceito.

No documento Fundação oswaldo Cruz Presidente (páginas 60-65)