• Nenhum resultado encontrado

Embora o modelo apresentado por Mag Uidhir seja robusto, ele lida apenas com características puramente internas a obra, ou no máximo ao seu modo de feitura direto. Como já mencionamos anteriormente, muito do que ocorre na modificação do cânone dos universos ficcionais dos Comics ocorrem antes e durante essa feitura, especificamente na negociação entre os autores e a editora. Por isso precisamos pensar sobre como a autoria pode ser compreendida no instante de sua feitura e sobre como a autoria está relacionada às exigências externas.

Para isso utilizaremos dois conceitos desenvolvidos pelo historiador da arte Michael Baxandall em Padrões de Intensão (2006), o encargo e a diretriz. Baxandall está preocupado em porque os pintores pintaram especificamente aqueles quadros, quais influências foram utilizadas, quais técnicas de pintura e qual era o objetivo artístico por trás dessas operações. Dito por ele:

O pintor, ou autor de um artefato histórico qualquer se defronta com um problema cuja solução concreta e acabada é o objeto que ele nos apresenta. A fim de compreendê-lo, tentamos reconstruir ao mesmo tempo o problema específico que o autor queria resolver e as circunstâncias que o levaram a produzir o objeto tal como é. (BAXANDALL, 2006, p. 48)

Toda a questão da intenção do autor se coloca nessa relação entre um problema, sua solução e suas circunstâncias de execução.

Nesse sentido é bem emblemático que seu primeiro caso de estudo seja uma ponte, segundo o mesmo para poder se ater às características mais específicas do método evitando determinadas especificidades e dificuldades que os objetos artísticos colocam à explicação histórica. Baxandall narra a história da ponte sobre o rio Forth e as soluções desenvolvidas por Benjamim Baker para mostrar como um encargo bem geral – fazer uma ponte – “indicava (...) uma atividade que incluía vários aspectos gerais do problema: atravessar um curso d’agua, prover um acesso, evitar o perigo de desmoronamento.” (BAXANDALL, 2006, p. 73).

Esse encargo foi então dividido em diversas pequenas questões relacionadas às circunstâncias específicas que precisam ser levadas em conta para a realização do encargo geral, que ele chamou de diretrizes. “O que importa é que as condições locais peculiares de Queensferry (local da ponte) especificaram o Encargo geral e foram necessárias para transformá-lo num problema suscetível de ser resolvido.” (BAXANDALL, 2006, p. 73). Importa, pois, a relação entre as circunstâncias e o problema que o objeto pretende resolver para entender porque ele foi construído daquela maneira. “Juntos, Encargo e Diretriz pareciam constituir um problema para o qual a ponte foi a solução.” (BAXANDALL, 2006, p. 73).

O Encargo como um problema geral foi imputado à Benjamim Baker no caso da ponte, que precisou relacioná-lo com as situações locais, as Diretrizes, para desenvolver uma solução específica. Nesse caso, o Encargo era externo ao engenheiro, coube a ele apenas aceitar ou recusar o trabalho e reconhecer as questões específicas e desenvolver as soluções técnicas possíveis. No caso de um pintor, seu Encargo também pode ser externo: um agente ou cliente ao encomendar um quadro nem sempre exigem que o pintor o faça de uma maneira específica. Nesse caso, o pintor se utiliza dos subsídios físicos para gerar um “interesse visual intencional”, ou seja, uma maneira de colocar manchas e linhas sobre uma tela com um objetivo artístico.

O ato de colocar manchas sobre uma tela é uma relação com todos os outros pintores que vieram antes é um diálogo com as soluções que eles encontraram e com os problemas que não eles conseguiram resolver, ou mesmo perceber. “O verdadeiro Encargo de Picasso encontrava-se no conjunto das pinturas anteriores que ele considerava dignas desse nome, mesmo que fossem muito diferentes, em estilo e em intenção, do seu próprio trabalho.” (BAXANDALL, 2006, p. 86–87). Isso pode ser notado com as diretrizes que Baxandall identifica como as quais Picasso trabalhou entre 1906 e 1910, período em que pintou o

Retrato de Kahnweiler, “tensão entre plano da tela e tridimensionalidade do objeto; tensão entre forma e cor; tensão entre a ficção da instantaneidade e uma relação prolongada do pintor com o objeto.” (BAXANDALL, 2006, p. 86).

Essas diretrizes surgem a partir das problematizações de Picasso acerca dos movimentos vanguardistas contemporâneos a ele, principalmente dos impressionistas (o problema da falsa instantaneidade). Vem também de sua interação com a escultura africana (o problema da tridimensionalidade). Por último, vem de sua visão acerca da pintura de Cézanne (o problema da tensão entre forma e cor). Podemos perceber que sua diretriz surge do contato entre suas inquietações e interesses em conjunto com os usos que ele propõe às tradições anteriores e contemporâneas à ele. Não cabe aqui falar que ele foi influenciado, como bem aponta Baxandall (2006, p. 101-105), por essas tradições e pintores, isso modificaria a trajetória intencional do ato. Na verdade, Picasso se apropriou delas e utilizou suas soluções para fins próprios, uma vez que enxergou problemas que para outros não existiam até ele postulá-los através de sua pintura.

Organizando todos esses conceitos para falar de Comics, temos que quando uma editora procura uma equipe criativa, ou quando aceita uma proposta dela, a editora faz demandas à essa equipe, um Encargo. Esse encargo pode ser simples, “Crie 12 edições do Daredevil”, mas dentro dele podem haver nuances, “Crie 12 edições do Daredevil diferentes da dos anos 1990”, ou exigências, “Que não atrapalhe a passagem do outro autor”. Ao mesmo tempo, a equipe criativa lida com seus próprios planos para o personagem, “Fazer um Daredevil que possa aproveitar mais a vida”, e com as possíveis inter-relações entre essas duas questões.

Esses Encargos sempre são postos, como vimos no exemplo de Picasso, em relação à história de publicação dos personagens, ou seja em relação ao cânone, suas múltiplas interpretações e histórias válidas e inválidas. É possível também que esse encargo lide não só com o cânone do personagem, mas também com o cânone do universo ficcional como um todo, como vimos no caso de Kingdom Come. Assim, quando o Encargo é posto perante a equipe criativa pela editora, ele já circunscreve, de alguma maneira, quais aspectos e épocas do cânone deverão ser ativados e trabalhadas durante a passagem da mesma.

As questões específicas e atuais fazem parte da Diretriz da equipe criativa e é nesse ponto que a editora, através da figura do editor, tenta interferir mais diretamente no modo de

manufatura das histórias. Se os autores pretendem executar o seu Encargo, por exemplo “Fazer um Daredevil que possa aproveitar mais a vida”, eles precisam estar atentos as histórias anteriores e como elas interagem com a sua proposta atual. Isso geraria diretrizes como “Como os personagens secundários lidariam com essa mudança”; “Considerar os impactos psicológicos em Matt Murdock”. Mas também colocaria em questão como criar essa nova visão: “Utilizar cores mais vivas e alegres”, “Mostrar o personagem sorrindo mais” e “Apresentar o Daredevil de modo mais atlético”. Ao mesmo tempo os editores podem intervir e adicionar uma questão externa: “O título Daredevil precisa estar conectado com determinado evento” e a equipe criativa precisa encaixar essa exigência no contexto maior do seu plano para o personagem.

O Encargo e a Diretriz nos permitem, olhar para um período determinado de histórias, normalmente a passagem de uma equipe criativa, e perceber os objetivos e intenções por trás do modo como foi utilizado o cânone. Podemos notar como as modificações do cânone em uma história podem se associar com as relações de continuidade construídas em um outro arco, dando uma visão mais geral sobre os dois usos. Assim, cada mudança ou relação assume o papel de uma parte em um plano maior que foi levado a cabo durante toda aquela passagem, representando o que poderíamos chamar de visão dos autores sobre o personagem ou o universo ficcional, algo muito próximo do que vimos com Kingdom Come no capítulo anterior. Assim, ao observar as modificações no cânone e as relações de continuidade durante diversas passagens de equipes criativas podemos perceber um diálogo entre elas, com equipes posteriores reverenciando e utilizando as suas equipes passadas favoritas, ao mesmo tempo que tenta desautorizar os trabalhos de suas equipes menos prediletas.

No eixo de todas essas operações está a editora e seus agentes, os editores. Sua intensão não é o de controlar a equipe criativa, nem o de podar as suas idéias e propostas, mas sim de evitar posições em que ela não possa modificar os planos da equipe no futuro. Isso porque da mesma maneira que a equipe criativa possui idéias, a própria editora possui metas e planos que nem sempre são idênticos ao da equipe atual. Assim, sempre existe uma negociação entre as duas partes para que os planos de curto prazo da editora possam ser mantidos. Isso não significa que posteriormente a editora possa entender que aquela direção seguida no passado agora limite suas possibilidades atuais, o que leva ela a gerar encargos para outra equipe criativa que vá invalidar as histórias ou passagens problemáticas. Essas intervenções, no entanto, precisam ser bem planejadas, pois

interferir posteriormente nos planos já acordados pode vir a irritar a equipe criativa e favorecer problemas de relacionamento futuro.

Em alguns casos mais raros e complicados, a editora dá o aval para uma equipe seguir com um projeto, só para voltar atrás depois, impedindo que determinada história seja publicada ou exigindo alterações nos eventos apresentados. Um exemplo de uma alteração nos eventos que foram publicados pode ser visto no arco Sins Past (The Amazing Spider-Man #509-514, 2004-2005) escrito por J. Michael Straczynski, em que são apresentados um casal de filhos de Gwen Stacy a primeira namorada de Peter. Straczynski queria que os filhos fossem de Peter, mas o editor chefe Joe Quesada não permitiu, argumentando que isso envelheceria demais o personagem, sugerindo uma mudança do pai, que acabou ser Norman Osborn, seu arquiinimigo e assassino de Gwen. Um exemplo de uma impedição de publicação ocorreu em Batwoman v2 em 2013, a equipe criativa composta pelos roteiristas W. Haden Blackman e J.H. Williams III (que ocasionalmente também desenha) fez a personagem principal Kate Kane pedir sua namorada Maggie Sawyer em casamento, o que foi autorizado pela editora, só para que o próprio chefe da divisão de Comics da DC Comics Dan Didio determinasse posteriormente que não poderia haver o casamente entre as duas personagens. Isso gerou uma grande comoção entre os fãs porque um dos poucos casais gays da editora estava sendo impedido de casar por uma regra editorial que impedia casamentos de super-heróis da editora. A equipe criativa decidiu abandonar o título após a celeuma, argumentando que não conseguia mais lidar com alterações narrativas de última hora e constantes mudanças de opinião editorial.

3.4 O Campo como ambiente de disputas pela definição da autoria no