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ENCONTRANDO OS CONTORNOS DA PESqUISA

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Se o governo do Imperio Brasileiro, Faz cousas de espantar o mundo inteiro, Transcendendo o Autor da geração, O jumento transforma em sor Barão;

Se estúpido matuto, apatetado, Idolatra o papel de mascarado;

E fazendo-se o louco deputado, N’Assembléia vai dar seu – apolhado:

Não te espantes, ó Leitor, da novidade, Pois que tudo no Brasil é raridade!

(Luiz Gama, 1859)

Em 14 de maio de 2019, os deputados Eduardo Bolsonaro e Luiz Philippe de Orléans de Bragança organizaram, em Brasília, sessão solene na Câmara dos Deputados para homenagear a Princesa Isabel e os 131 anos da sanção da Lei Áurea9.

Diante da tenacidade da família Bolsonaro, e de seus aliados, ao propugnar pela manu-tenção estereotipada da imagem de Princesa Isabel enquanto principal figura responsável pela abolição da escravidão no Brasil, ecoaram brados de toda sorte: representantes dos movimentos negros protestaram na Câmara dos Deputados; sujeitos negros e não negros usaram as redes sociais para expressar a sua indignação com a deliberada exposição acintosa aos sentimentos de toda uma população afrodescendente; um podcast chamado “Durma com essa”10 de grande alcance dedicou um episódio inteiro para debater o tema.

Indubitavelmente o 13 de maio de 1888 assinala a abertura de um capítulo importante para a história brasileira. Acreditamos, no entanto, que tal marco não suscitou à época, tam-pouco suscita na atualidade, sensação de pleno regozijo dos africanos e afrodescendentes, tal como encenou a comemoração na Câmera dos Deputados encampada por Eduardo Bolsonaro.

Em 14 de maio de 1888 milhares11 de africanos e afro-brasileiros foram deixados à própria sorte. Livres, contudo, sem ter para onde ir, sem acesso a terras para trabalhar, sem acesso à educação, sem quaisquer políticas direcionadas para a integração dessas pessoas à sociedade

9 Lei Áurea, oficialmente Lei n.º 3.353 foi sancionada em 13 de maio de 1888 com vistas a abolir a escravidão no Brasil.

Nos carece ressaltar que a Lei Áurea foi precedida por uma série de leis que visavam o fim da escravidão e do escra-vismo, quais sejam: a Lei Eusébio de Queirós, A Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários.

10 O Durma com essa é um podcast do jornal digital Nexo. Disponível em: https://soundcloud.com/durma-com--essa/o-ato-na-camara-em-14-de-maio-e-as-disputas-sobre-o-13-de-maio-14mai19. Acesso em: 18 de mai. 2019.

11 Segundo o site www.slavevoyages.org, o Brasil foi o país que mais recebeu escravizados nas Américas. Quatro em cada dez negros que cruzaram o Atlântico, entre os séculos VVI e XIX, tiveram como destino o Brasil – um total de 4,8 milhões de africanos escravizados. Os registros mostram ainda que devido as más condições do cativeiro no trans-lado, mais de 1 milhão de africanos morreram. Disponível em: https://www.slavevoyages.org/estimates/Yh6BL63p.

Acesso em: 20 de set. 2020. Coadunamos com Maria Aparecida Bento (2002) ao utilizarmos o conceito de branquitude.

brasileira. Todas essas decisões políticas do período abolicionista, tomadas pela branqui-tude12, incorreram na exclusão dos negros a uma vida social digna, em perversas decisões do passado que seguem reverberando na contemporaneidade, incidindo em irrefutáveis índices13 de desigualdades os quais retroalimentam a escassez de poder econômico, político, cultural e ideológico dos afro-brasileiros.

12 Compreendido como um pacto com regras, normas e atitudes da pessoa branca, trabalhando com duas dimensões principais: o silenciamento e o medo. O silenciamento transcorre quando os sujeitos brancos reconhecem o racismo, mas não se comprometem com essa discussão, há uma completa alienação individual e coletiva com esse premente debate, salvo as ocasiões em que os privilégios do seu grupo são escrutinados, nesse caso o sujeito então demonstra sua indignação narcísica. O medo ocorre pelo enfrentamento com o diferente, com a constituição do negro como algo ameaçador, representando tudo aquilo que é negado pelo branco.

13 Em 2018, pessoas negras correspondiam a dois terços das pessoas que não tinham emprego; as pessoas negras também são as que mais sofrem com a informalidade, em 2018, 47,3% das pessoas ocupadas pretas ou pardas estavam em trabalhos informais, segundo o estudo do IBGE. Uma pesquisa do Instituto Ethos mostra que as/os negras/os ocupam apenas 4,9% das cadeiras nos Conselhos de Administração das 500 empresas de maior faturamento do Brasil.

Entre os quadros executivos, elas/es são 4,7%. Dados disponíveis em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/11/20/

consciencia-negra-numeros-brasil/. Acesso em: 02 de nov. 2020.

14 Disponível em: https://digitalcollections.nypl.org/items/b92fab39-c7ea-242e-e040-e00a18065b3a. Acesso em:

20 set. 2020.

Figura 1 – Desembarque de escravizados nas Américas do séc. XVI ao séc. XIX

Fonte: slavevoyages.org14.

Em sua obra A integração do negro na sociedade de classes, o sociólogo Florestan Fer-nandes discorre sobre a conjuntura do período abolicionista brasileiro, de forma elucidativa para a nossa compreensão do cenário:

15 Luiz Gonzaga Pinto da Gama, autor do trecho que inaugura este capítulo, foi um dos principais abolicionistas da história do Brasil. Além de poeta, também foi advogado, jornalista e patrono da cadeira nº15 da Academia Paulista de Letras (GOMES, 2018).

A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cer-casse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. O liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais (...) para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva. Essas facetas da situação humana do antigo agente do trabalho escravo imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel. Ela se converteu, como asseverava Rui Barbosa 10 anos depois, numa ironia atroz (FERNANDES, 2008, p.29).

Voltemos então ao febril debate sobre a sessão solene investida por Eduardo Bolsonaro e Luiz Philippe de Orléans de Bragança. No curso da discussão inflamada das redes sociais, em nós pululavam algumas inquietações: seria utopia pensar que um dia a população brasileira, em sua grande maioria, ao falar sobre abolição da escravatura, viria a destacar Luiz Gama15 à Princesa Isabel? Quais são os caminhos para a construção dessa equiparação histórica voltada para o protagonismo negro? Como podemos catalisar esse processo?

Essas foram algumas das perguntas que estavam no projeto inicial desta pesquisa, e que foram alteradas posteriormente, em virtude das ponderações da banca de qualificação e da orientadora. Compartilhamos a seguir a jornada percorrida que originou este trabalho, a partir da sua relação com questões teórico-metodológicas que foram constituindo-se no percurso.

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