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Genocídios, epistemicídios, memoricídios...memÓRÍa

Acreditávamos que esta pesquisa enfrentaria temas provocados pela ausência. A ausência de referenciais de história e cultura afro-brasileira e africana nos espaços de ensino. A ausência de teóricos, intelectuais, e pensadores negros nas referências bibliográficas. A ausência de pes-soas negras em espaços de poder. No entanto, nos parece oportuno refletir sobre a eliminação.

Conforme mencionamos anteriormente, o sufixo “cídio” (do latim – cidium), exprime a ação que provoca morte, e essa morte pode acontecer tanto em sua dimensão física, mas também se investe na esfera simbólica, incidindo no campo das subjetividades.

Ramón Grosfoguel (2016) vai elencar o racismo/sexismo epistêmico como um dos pro-blemas de maior relevância no mundo contemporâneo. O autor argumenta que o privilégio epistêmico dos homens ocidentais sobre a produção de saberes produzidas por outros corpos políticos, opera não somente como instrumento de injustiça cognitiva, como também tem sido mecanismo estratégico para favorecer projetos imperiais/coloniais/patriarcais no mundo.

E para sustentar teoricamente esse problema ele formula um debate acerca do genocídio/

epistemicídio como fator preponderante para o alicerce dessas assimetrias nas universidades ocidentalizadas.

Grosfoguel (2016, p.31) elenca quatro genocídios/epistemicídios ao longo do século XVI para ilustrar como esse nefasto projeto de desmantelamento de saberes se concretizou. São esses genocídios/epistemicídios: 1) contra os muçulmanos e judeus na conquista de Al-Andalus em nome da “pureza do sangue”; 2) contra os povos indígenas do continente americano, primeiro e, depois, contra os aborígenes na Ásia; 3) contra africanos aprisionados em seu território e, posteriormente, escravizados no continente americano; e 4) contra as mulheres que praticavam e transmitiam o conhecimento indo-europeu na Europa, que foram queimadas vivas sob a acusação de serem bruxas. Para os fins deste trabalho pousaremos nosso olhar para o terceiro item elencado, isto é, o genocídio dos sujeitos africanos.

O sequestro de africanos ao continente americano, com sua deletéria escravização no continente, trata-se de fenômeno de indizível importância para a história mundial, assumindo os portugueses papel preponderante para conferir ao Brasil solo de destaque. Do século XVI até 1850, este país foi o maior importador de escravos africanos das Américas (ALENCASTRO, 2018, p. 57).

Segundo a plataforma Slave Voyages60, estima-se que ao menos 660 mil africanos escra-vizados morreram somente no caminho entre África e Brasil, mas muitos outros milhões mor-reram em todo o processo, desde a captura até às nocivas condições inerente ao escravismo.

É inquestionável a escala massiva do genocídio dos africanos escravizados durante o período

60 Dados disponível em: https://slavevoyages.org/. Acesso em: 17 mar. 2020.

61 Dados retirados de artigo da revista Superinteressante. Disponível em: https://super.abril.com.br/sociedade/pais--registra-cada-vez-mais-agressoes-e-quebras-de-terreiro/. Acesso em: 17 out. 2020.

colonial e imperial (e que perdura até os dias atuais). Nesta perspectiva, o epistemicídio e memoricídio dos saberes de origem africana andou paralelamente ao genocídio vigente.

Uma vez cativos, os africanos eram interditados de exercitar elementos que valorizassem e exprimissem suas visões de mundo, conhecimentos e cosmologias. Apesar dessas interdições, é importante destacar o fato de que resistências, por meio de criativos estratagemas, sempre estiveram presentes, em termos de expressões culturais de matriz africana. E que essas, mesmo com todas as adversidades, seguiram disseminadas entre os cativos e no limite assimiladas, muitas vezes apropriadas, também pelos sujeitos brancos.

O memoricídio, compreendido por nós como parte da dinâmica da necropolítica da memória negra, é definido por Fernando Báez (2010, p. 140) como a eliminação de todo o patri-mônio, seja ele tangível ou intangível, que simboliza resistência a partir do passado. O autor explica que a palavra memória, é de origem latina, derivada da palavra memor-oris, e quer dizer

“o que se lembra”, interligando o presente ao que já foi vivido. Logo a ideia de memoricídio se traduz como a destruição da memória.

Sebastião Rodrigues Alves, citado por Abdias Nascimento (2019, p. 110) vai dizer que:

“a primeira medida do escravagista, direta ou indiretamente, era produzir o esquecimento do negro, especialmente de seus lares, de sua terra, de seus deuses, de sua cultura, para trans-formá-lo em vil objeto de exploração”.

A tentativa de destruição de elementos que fortalecem a memória afro-brasileira per-manece até os dias atuais. Quando, por exemplo, temos uma onda de terreiros de religiões de matriz africana sendo atacados e depredados, e uma inação do poder público para erradicar esse comportamento, notamos que esse projeto de destruição se atualiza e se renova constan-temente. Tanto é verdade que, entre agosto e outubro de 2017, a Secretaria de Direitos Humanos fluminense recebeu 42 denúncias de preconceito religioso, sendo que 91%61 deles contra credos de matriz africana. Quando uma das mais longevas instituições de memória negra, a Fundação Palmares, é obrigada a tirar nomes de personalidades negras de sua lista de destaque, tais como Marina Silva e Benedita da Silva, diante da gestão do governo Bolsonaro, temos também exemplo de conduta memoricida. Quando temos uma política de incentivo à pesquisa que durante o período de 2011 a 2018, financiou por meio da CAPES e do CNPQ, somente 4.967 pesquisas de humanidades e ciências sociais, contra 240.209 pesquisas inseridas em outras áreas, em sua maioria biológicas e exatas (DUDZIAK, 2018), temos traçada uma política que cria obstáculos para a construção dessa memória a partir da academia, ou seja, é a articulação do memoricídio com o epistemicídio.

Abdias Nascimento amplifica o termo genocídio, de maneira a incorporar os nuances de epistemicído e memoricídio nesta mesma categoria. Delineia assim o genocídio contra o povo negro como:

O uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte, injúria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimentos), calculadas para a exterminação

de um grupo racial, político ou cultural, ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo (NASCIMENTO, 2016, p. 16).

O autor argumenta ainda que o genocídio opera por meio de mecanismos das classes no poder e são usados para destruir o negro como pessoa, e como criador e condutor de uma cul-tura própria. O autor desvela ainda como a miscigenação está dentro desse projeto de genocídio negro, por meio do que ele denomina como embranquecimento cultural. Nascimento aponta como o sistema educativo, as várias formas de comunicação de massa e a produção literária se articulam como instrumentos a serviço das classes do poder, e “são usados para destruir o negro como pessoa e como criador e condutor de uma cultura própria (2016, p. 112).

Contudo, mesmo diante das adversidades presentes na tessitura social que investe para que o apagamento da história e cultura afro-brasileira e africana tenha sucesso, sempre houve resistência, reação pois, como diz a poeta Jarid Arraes (2018, p.37) “desistir é coragem difícil, somos programados para tentar”.

Neste sentido, Alex Ratts, a partir da obra de Beatriz Nascimento, nos apresenta a ideia de corpo-documento. Para o autor:

O corpo é pontuado de significados. É o corpo que ocupa os espaços e dele se apropria.

Um lugar ou uma manifestação de maioria negra é “um lugar de negros” ou “uma festa de negros”. Não constituem apenas encontros corporais. Trata-se de reencontros de uma imagem com outras imagens no espelho: com negros, com brancos, com pessoas de outras cores e compleições físicas e com outras histórias (RATTS, 2006, p. 68).

A partir do entendimento de corpo, e de experiência negra, Eliseu Amaro de Melo Pes-sanha, Francisco Phelipe Cunha Paz e Luís Augusto Ferreira Saraiva (2019) constroem a ideia de memÓRÍa. Eles se fazem valer e criam um jogo de palavras entre memória e Orí — palavra iorubá que em português traz a ideia de “cabeça”. Mas o conceito de Orí vai além, para os autores, Orí pode ser compreendido não somente como a materialidade da cabeça, mas também como “a cabeça espiritual, ou o eu [?] mais profundo, é os olhos que nos permitem ver, o cérebro que nos permite lembrar e guardar na memória aquilo que vivemos e a boca que nos permite falar, dizer o que nos acontece”. (2019, p. 113).

Diante da concepção de Orí, os autores estabelecem então o que podemos entender como memÓRía (2019, p.114):

o conceito da MemÓRÍa ligado a este que é o mais profundo elo com as ancestralidades africanas, o Orí. Ancestralidade como um valor de mundo, memória negra que possibilitou um contínuo civilizatório africano chegar aos dias de hoje. MemÓRÍa seria aquilo que nos orienta, que recebe o antigo e oferece o novo, dentro de uma dinâmica de ruptura e criação. MemÓRÍa estaria assim relacionada com a reconstrução de uma vida outra, de uma vida nova. MemÓRÍa como conceito, como possibilidade de reconstrução do ser negro na diáspora é abrir guerra a si mesmo, de se transformar e sair em agência do mundo, das memórias, seus sentidos, significados e usos. É restituir a lembrança, a memória e a história do ser africano e seus descendentes negros na diáspora, aos pró-prios negros. Ao pensarmos o conceito de memória [e então memÓRÍa] desde ontologias africanas no Brasil, isto é, desde a travessia, estamos sim pensando em começo, mas não começo como origem, como um ponto de partida que no pensamento ocidental por vezes se constitui uma prisão, um ponto fixo. É pensar começo como destino, não como um passado distante, mas como princípio, como lei e constituição das coisas, como

força-potência criadora, onde não se separa começo de fim, vida de morte, lembrar de esquecer. Onde o que dá sentido aos começos são seus fins, o que dá sentido à vida é a morte, isto é, o seu limite, e onde lembrar e esquecer só existem em correlação.

Os autores lançam luz para as limitações de pensar as dimensões da vivência negra afro--diaspórica apenas com a lente física e material, propugnam a necessidade de trazer para esse racional de compreensão de memória a própria estrutura de muitas filosofias africanas, onde é impossível analisar elementos isolados, mas sim em relação, não se restringindo à natureza humana, ao âmbito material, mas também colocando peso nas cosmosensações. A socióloga e pesquisadora feminista nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí sugere o termo cosmosensação, a partir da perspectiva iorubá. “O termo cosmosensação é mais um modo inclusivo de descrever a concepção do mundo por diferentes grupos” (OYĚWÙMÍ, 1997 apud SARAIVA, 2018, p. 121).

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