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Para problematizar as lacunas existentes quanto à legitimação de saberes provenientes dos Movimentos Negros, Gomes (2017) cunhou dois termos para trabalhar procedimentos teó-rico-epistemológicos: pedagogia das ausências e pedagogia das emergências. Ao utilizar esses termos, ela assinala que o seu objetivo é “fazer emergir o protagonismo do Movimento Negro na relação educação e movimentos sociais” (GOMES, 2017, p.42).

A inspiração de Gomes, ao cunhar os termos, provém da discussão da “sociologia das ausências e das emergências” do sociólogo Boaventura de Souza Santos (2004).

A sociologia das ausências caracteriza-se por um processo investigativo que busca evidenciar que aquilo que não existe é, na realidade, ativamente produzido como não-exis-tente, como uma possibilidade descartável. Neste sentido, aquilo que é compreendido como hegemônico assume papel impeditivo para que outras possibilidades de experiências sejam percebidas. Assim, a sociologia das ausências busca ampliar o conhecimento de leitura de mundo e dilatar o presente, transformando ausências em presenças, transformando objetos impossíveis em possíveis.

A sociologia das emergências, em adjacência à dilatação do presente, que é a socio-logia das ausências, é o procedimento de contração do futuro, isto é, contração no sentido de enxergar esse futuro menos abstrato e mais concreto a partir de pistas e sinais do presente. A sociologia das emergências busca substituir o vazio do futuro por um futuro de possibilidades concretas, múltiplas, a um só tempo utópicas e realistas, que vão sendo forjadas no presente, a partir da tomada de consciência de alternativas pelos sujeitos. A sociologia das emergências parte do princípio de que o futuro não é algo vazio e infinito, mas sim um futuro concreto, porém cercado de incertezas.

Amparada nesses conceitos, Gomes (2017) localiza o potencial da pedagogia das ausên-cias e emergênausên-cias.

A compreensão dos saberes produzidos, articulados e sistematizados pelo Movimento Negro tem a capacidade de subverter a teoria educacional, construir a pedagogia das ausências e emergências, repensar a escola, descolonizar os currículos. Ela poderá nos levar ao necessário movimento de descolonização do conhecimento (GOMES, 2017, p. 139).

Com essa perspectiva, reconhecer os saberes produzidos por intelectuais que buscam a convergência das potencialidades da educação e comunicação, na Educomunicação, é tarefa da pedagogia das emergências. E, neste sentido, é importante apontar os trabalhos de Rosangela Malachias e de Sátira Pereira Machado, que atuam nesta área.

Malachias aponta para o fato Educomunicação ser atravessada por uma lógica que apaga pensadoras/es, intelectuais, cientistas sociais e ativistas negras/os. Em produção recente, Malachias (2017) pondera como não se trata de deslegitimar contribuições de teóricas/os de

64 Chimamanda Adichie debate o perigo da história única, durante sua apresentação, em 2009, no TED (Technology, Entertainment, Design), conferência que promove a troca de experiências e ideias entre personalidades de diferentes áreas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qDovHZVdyVQ. Acesso em: 04 nov. 2020.

cor/raça não-negras, mas sim de apontar a lacuna epistemológica que ocorre quando, nos espaços acadêmicos, não se incorpora na centralidade da discussão as questões étnico-raciais.

Parafraseando Chimamanda Adichie64, podemos dizer que Malachias nos alerta sobre o perigo da história única, num campo que propugna pela emancipação de sujeitos quanto à construção de suas identidades individuais e coletivas.

Em trabalho anterior, Cabelo bom, Cabelo ruim (2007) Malachias já apontava para a interface Comunicação e Educação. A obra integra a coleção Percepções da Diferença. Negros e brancos na escola, que teve como objetivo primeiro estabelecer um diálogo com professoras/

es da educação infantil e do ensino fundamental, acerca das discriminações enfrentadas por crianças negras em diferentes idades no espaço escolar. Esta perspectiva pode ser observada na passagem em que relata o ato de educadoras/es com frequência acariciarem cabeças de crianças que possuem cabelo liso, em face de outras crianças negras, que não possuem esse traço fenotípico, mas que igualmente anseiam por demonstrações de afetividade:

Sem saber, as duas professoras repetem, em suas salas, as mesmas ações. Passam a mão na cabeça das meninas mais branquinhas, porque elas têm um “cabelão lindo”, nunca precisarão de escova progressiva nem de gel em excesso. As crianças negras e mestiças observam, sem fala, o carinho demonstrado pela “tia” àquela criança. Talvez estejam ansiosas, esperando a sua vez de receber carinho semelhante, mas ele não ocorre (MALACHIAS, 2007, p. 12).

O volume escrito por Malachias estabelece um diálogo com essas/es educadoras/es a partir de um elemento fenotípico, o cabelo, e vai trabalhar como a estética negra pode ser elemento de tensionamento, desconstrução e fortalecimento identitário no lócus escolar. A dialogicidade é elemento presente em toda a coleção, que também faz uso de outros elementos comunicativos, tais como: ilustrações, letras de música e verbetes para mediar as/os educandas/

os, isto é, leitoras/es da obra, acerca das implicações das discriminações raciais em ambiente escolar. Trata-se, portanto, de um trabalho com evidente lente educomunicativa.

Em suas produções, não raro Malachias remonta um arco histórico com protagonismo negro acerca de conquistas jurídicas e legislativas em prol da justiça racial, ressaltando ele-mentos em termos de comunicação adotados pelos Moviele-mentos Negros. A partir de sua vasta experiência na formação de professores para no eixo de Educação para as Relações Étnico-ra-ciais, Malachias (2017) descortina o recorrente desconhecimento de educadoras/es, na rede de ensino em São Paulo, acerca dos enfrentamentos e conquistas de sujeitos dos Movimentos Negros no constructo histórico brasileiro, e assinala como o trabalho de formação desses pro-fissionais assume relevância fundamental para a construção de uma sociedade mais equânime.

Neste processo, a autora aponta como a mídia, em diferentes momentos, e mais recentemente as redes sociais, assume papel importante como instrumento de visibilização e/ou invisibili-zação dos saberes negros.

65 Realizado de 10 a 12 de junho de 2015, na PUCRS em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul no Brasil.

66 Na produção do artigo de 2019, “Dear White People”: Tensões e negociações entre identidade e diferença, traba-lharam em coautoria com Sátira Machado, Rosane Rosa; Liliane Dutra Brignol. Dear White People, traduzido para o português como Cara Gente Branca, é uma série de televisão satírica americana baseada no filme de 2014 de mesmo nome. A série se passa em uma fictícia conceituada universidade estadunidense e retrata o cotidiano de um grupo de estudantes negras/os, em meio a uma universidade com a maior parte de estudantes brancas/os.

Outro trabalho importante dentro da perspectiva Educomunicativa é a tese de Sátira Machado (2013) que enfoca a rede de educação de Porto Alegre e a relação com políticas de enfrentamento das desigualdades étnico-raciais para a promoção da cidadania no Brasil. Na pesquisa a autora traz importante contribuição para o debate de negritude, a partir do que designa como negritude midiática, isto é, a negritude orientada pelos meios de comunicação.

Nesse sentido, Sátira aponta três dimensões de arguição em observação ao comportamento das/os sujeitos negras/os: negritude como resignação, negritude como perturbação e negri-tude como participação. A autora constrói essas categorias a partir de seu próprio olhar sobre a representação midiática acerca da negritude.

A negritude como resignação opera com a ideia de cidadania negada, na qual as pessoas negras, enquanto vítimas de sua própria história, não têm poder de agenciamento, isto é, enfa-tizando a condescendência com a situação assimétrica social. A negritude como perturbação remete à ideia de cidadania limitada, na qual se percebe os debates raciais como aborrecimento para a agenda nacional, e é assumida como problemática a postura de reivindicação de ativistas e atores dos Movimentos Negros. A negritude como participação coloca em relevo a ideia de cidadania conquistada, e destaca a premência de reconhecimento dos direitos das pessoas negras enquanto cidadãs tensionando a supremacia branca na sociedade brasileira.

Na interface de Comunicação e Educação, Machado (2016) esteve à frente da organização da obra Educomunicação e diversidade: múltiplas abordagens, na qual, para além da organização, contribui com um artigo em que relata a memória de uma mesa de discussão do VI Encontro Brasileiro de Educomunicação e III EducomSul65. No documento ela faz um resgate da apro-ximação do movimento Pan-africanista para pensarmos educação, a partir do entendimento de que um debate intercultural pode fomentar trocas internacionais em prol da solidariedade entre os povos. E, recentemente, Machado (2019) investiga as representações midiáticas que a produção audiovisual objeto do trabalho Dear White People66 evoca, concluindo que, mesmo obras com intencionalidade de desconstrução de identidades, podem, paradoxalmente, reforçar ideologias que racializam seres humanos.

Em síntese, a produção científica de ambas autoras merece destaque por justamente trabalharem na encruzilhada de comunicação, educação, relações étnico-raciais, ponto em que o nosso trabalho também pretende contribuir em termos de pesquisa científica.

3.2