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4. HUMANIZANDO CHATBOTS DE MARCAS À LUZ DE ERVING GOFFMAN

4.4 DO BACK END AO FRONTSTAGE

Um robô de conversação disposto a dialogar por várias horas com um interlocutor humano, além da necessidade de manter sua atenção e interesse, precisa ter coerência narrativa a fim de que a representação ao qual se propõe não caia por terra. Isso significa dizer que deve haver uma coerência entre a mensagem que se quer transmitir e modo com que essa transmissão ocorrerá durante toda a interação humano-máquina. Afinal, ao lidarmos com um público exigente, não podemos olvidar que ele tem uma tendência natural a “precipitar-se sobre defeitos

59 Diferente da publicidade, cujo foco é a venda de um produto ou serviço, a propaganda visa

insignificantes como sinal de que o espetáculo inteiro é falso” (GOFFMAN, 1999, p. 54). Desta maneira, convém pensar estrategicamente se realmente é interessante ocultar do público que uma determinada interação está sendo conduzida por um computador e não por um funcionário da empresa. Caso opte-se por simular integralmente um ser-humano, toda a representação precisa ser suficientemente robusta para manter a fachada ao que se propõe.

A fim de auxiliar nessa indagação, buscamos amparo nos conceitos de Goffman acerca das regiões que moldam a manifestação do interlocutor: região de fachada (frontstage) e bastidores (backstage). A primeira diz respeito ao local onde a performance principal se desenrola, ou seja, é aquilo que o público vê. Já a segunda concerne a uma região oculta ao olhar do expectador e onde o indivíduo pode despir-se do papel desempenhado no palco, preparar os itens que integrarão a performance futura para sua audiência, conspirar com outros membros da equipe ou mesmo descansar em um ambiente privado (GOFFMAN, 1999). Entretanto, quando lidamos com pessoas, não há uma distinção clara entre essas duas regiões, sempre há uma representação a desenrolar-se, mas para públicos diferentes e em papéis distintos. Ademais, a mesma área pode ser simultaneamente a região de fachada de uma performance e os bastidores de outra (GOFFMAN, 1999). Nesta toada, ao aplicar a teoria da teatralidade em interações mediadas, Meyrowitz (1985), entende que a mediação pode acabar revelando certos comportamentos a públicos não intencionais. Para ele, além dos bastidores e da região de fachada, haveria uma terceira região intermediária.

Antes de adentrarmos especificamente na questão sobre bastidores e região de fachada nos chatbots, precisamos esclarecer dois pontos acerca da aplicação destes conceitos: 1) a aplicação no contexto mediado das redes sociais, amplamente estudado pela academia; e 2) a aplicação destes conceitos em termos de programação dos robôs de conversação. No que diz respeito ao primeiro ponto, ressaltamos que nas redes sociais online, conforme já explicamos, os usuários possuem a tendência de ocultar certas características suas, físicas ou psicológicas, no anseio de expor uma versão idealizada de si mesma. Quando se deparam com situações em que se desnuda a discrepância entre estas versões de si há um rompimento no trabalho de face. Trazendo o conceito de bastidores à baila, isso significa dizer que antes de apresentar suas personas à audiência, é preciso que haja uma cuidadosa preparação de bastidores. (SILFVERBERG; LIIKKANEN;

LAMPINEN, 2011). Nesta toada, ao tratarmos de manifestação de persona no ambiente online, as regras aplicáveis aos indivíduos se estendem às corporações: o trabalho de bastidores envolve coerência do discurso da marca nos ambientes

online e offline. E mais, a personalidade do chatbot que ganha vida através do

Messenger está intimamente ligada a persona manifestada na rede social online como um todo. Portanto, essas três versões empresariais precisam cantar em uníssona: a offline (que engloba toda cadeia de consumo, desde os valores empresariais, passando pela produção dos produtos e desaguando no pós-venda),

online a que interage com o público através do Facebook (cujo perfil geralmente é

gerenciado por uma pessoa que presta serviços à empresa) e a online que interage com o público através de um chatbot. A falha em qualquer um desses pontos faz cair por terra o trabalho de face do bot.

No que tange ao segundo ponto, precisamos compreender que quando pensamos em redes sociais online, mormente o Facebook, notamos que há filtros que permitem escolher o grupo de pessoas que podem acessar determinas informações acerca do perfil de usuário. Alguns dados, por exemplo, são acessíveis a todos os usuários da rede (modo público). Outros, por sua vez, são restritos apenas a rede de amigos do usuário. Estamos tratando aqui, obviamente, da usabilidade superficial da rede e não os dados que englobam o Big Data e que são acessíveis via algoritmos específicos que mineram informações acerca dos indivíduos. Estes filtros, ao contrário do que possa parecer em primeiro momento, não constituem os bastidores da performance que ali se desenrola. Pelo contrário: são encenações destinadas e um público específico e previamente escolhido. Assim, “existe um terceiro (servidores do Facebook) que sabe quem é considerado um membro da audiência apropriado para esse conteúdo e quem não é” (HOGAN, 2010, p. 380).

Ademais, a suposta privacidade que as mídias sociais oferecem, conforme Lewis, Kaufman e Christakis (2008) sugerem, permite que algumas pessoas abram a cortina e permitam que a audiência veja seus gostos. Contudo, para estes pesquisadores, gostos não integram o conteúdo de bastidor, e sim de fachada: alguns elementos são pinçados cuidadosamente e postos para apreciação. A escolha do que encenar e para quem encenar são a razão para tornar o perfil menos privado ou mais privado. Já em termos de programação de softwares, por sua vez, encontramos conceitos similares: enquanto o front end concerne a usabilidade do

programa, ou seja, a interação direta com o usuário, o back end diz respeito a parte oculta da aplicação, seus mecanismos de funcionamento o qual o usuário final não tem contato, mas que são essenciais para o funcionamento da plataforma (COSTA, 2015).

Em analogia à teatralidade, no back end encontramos os bastidores da peça que se desenrola no front end: é o local em que encontramos as engrenagens da aplicação que interage diretamente com o usuário. Por isso, é importante que o programador também se preocupe não apenas com o fazer funcionar tecnicamente o programa computacional, mas com a experiência do usuário. Dito isso, fica fácil correlacionarmos a tecnologia do Chatbot às regiões de interação proposta por Goffman: o back end, onde encontramos a programação e as linhas de código do software, é nosso bastidor e o front end, onde ocorre a interação com o usuário final e a qual se destacam itens como aparência da aplicação, cores e design gráfico é nossa região de fachada. Dito isto, lembramos da importância de não transparecer para a audiência toda a complexidade de ações que se desenrola nos bastidores ou, nas palavras do sociólogo, “o controle dos bastidores desempenha papel significativo no processo de ‘controle de trabalho’, pelo qual os indivíduos tentem se premunir contra as exigências deterministas que os cercam” (GOFFMAN, 1999, p. 108). Assim, da mesma forma que os bastidores são a base que subsidia a performance do palco, observamos que o back end de programação se revela como o frontstage (região de fachada) goffmaniano da interação.

Isto posto, diferente do que observamos nas interações mediadas pelas mídias sociais em sua forma pura, ao utilizarmos chatbots para interagir com usuários precisamos ter um olhar especialmente dedicado a programação dos agentes artificialmente inteligentes que formularão perguntas e respostas aos indivíduos. Portanto, além de buscar no próprio perfil do interlocutor informações relevantes acerca de sua identificação e personalidade, o que pode contribuir para criar laços de intimidade e empatia, outros padrões comportamentais que envolvem a interação via aplicativos de conversa instantânea precisam ser considerados, inclusive no que concerne ao imediatismo, ou não, das respostas. Ademais, eventual não compreensão dos estímulos ou sua interpretação equivocada pode gerar desconforto ou quebra da interação, além de prejudicar o trabalho de face da persona. Portanto, pensar em formas de lidar com a quebra dialogal precisa ser planejada e isso está inserido dentro do trabalho de bastidores previsto por Goffman.