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5. TEATRALIZANDO O BOT NA VIDA COTIDIANA

5.3 PROJETO CARETAS / FABI GROSSI

5.3.2 Performatizando o ciberbullying

5.3.2.3 Realização dramática e lealdade dramatúrgica

Após identificar como seria a aparência da Fabi, passamos a observar os elementos que integram a realização dramática da personagem. Começamos pela análise do suposto o Processamento da Linguagem Natural (PLN) de forma satisfatória, uma vez que a maior parte da interação deste chatbot ocorre por meio

de mensagens abertas, ou seja, o usuário digita livremente as respostas aos estímulos fornecidos pelo software. Depois de finalizar a interação e revisitando-a, é interessante observar que nenhuma resposta escrita implica em uma contra resposta direta do bot (Figura 28). A impressão que temos é que pouco importa o que falamos, a Fabi sempre continuará o assunto de forma mais ou menos genérica. Assim, se o interlocutor se envolver de maneira fidedigna na conversa, respondendo-a de maneira coesa com o assunto em pauta, a forma como a narrativa foi escrita permite que esse artifício de não precisar interpretar diretamente o que o outro diz passe desapercebido e seja bem camuflado durante toda a conversa. Dessa maneira, notamos um falso PLN na medida em que o código não busca realmente compreender o que está sendo dito. Entretanto, a boa emulação do PLN faz com que o usuário pense que a Fabi realmente está entendendo o que ele diz e, aos olhares menos detalhistas, a impressão de que há uma interpretação do que se diz acaba por fabricar uma aparência mais humana e crível ao bot.

Figura 28: exemplo de diálogo aberto. Fonte: Facebook

Dessa maneira, por mais que seja uma ilusão de compreensão, a estratégia de maquiar um falso PLN através de uma narrativa permite manter de forma

satisfatória não apenas sua fachada, mas também a lealdade dramatúrgica que camufla sua real identidade de robô e a realização dramática que ampara toda a fachada de vítima defendida pelo bot. Ademais, o uso da linguagem coloquial é um dos elementos que valida o quadro cênico escolhido pelo idealizador da campanha e enquadra a Fabi dentro do estereótipo de mulher jovem de classe média que compõe sua aparência. Todo esse cuidado com a linguagem escolhida e com a emulação de PLN são eficazes para evitar a faux pas e manter a antropomorfização em um nível crível. De fato, somente ao fim da interação o discurso publicitário é revelado ao interlocutor através de um vídeo institucional e uma pesquisa de opinião sobre a experiência com o bot, delimitando o fim do quadro cênico do discurso. Somente neste ponto todo o trabalho de face é desfeito para revelação do real intuito da conversa: uma campanha de conscientização.

De outro pórtico, caminhando lado a lado e de forma complementar ao falso PLN, o tempo de resposta longo da Fabi também se mostra um detalhe relevante. Conforme observamos na Figura 28, o bot esperou quase 22h64 para responder ao

estímulo do interlocutor humano. É justamente esta interação assíncrona que melhor contribui para a manutenção da Realização Dramática do bot e, por mais estranho que possa soar, na sensação de copresença digital. Este detalhe emula o não imediatismo das conversas entre humanos mediadas por softwares de conversação de forma que, ao responder após determinado tempo, o bot faz parecer que de fato há do outro lado da tela um humano no exato momento em que aquela resposta foi enviada. Afinal, se nem sempre estamos disponíveis para prontamente responder em nossos aplicativos de WhatsApp ou Messenger, não há sentido em fazer com que um bot que tem por objetivo emular da melhor forma possível um ser humano responda prontamente. Esse contato supostamente longo e pausado65 ocorre auxilia a fazer com que o interlocutor acredite estar acompanhando os fatos em tempo real, pois é assim que a história é contada. Dessa forma, o bot não antecipa o final da celeuma, uma vez que a intenção da campanha é fazer com que o público viva a problemática da vítima ao mesmo tempo que ela: a preocupação, as ameaças, os

64 Estímulo humano enviado às 22h09min do dia 27 de março de 2018 e resposta da Fabi às

19h47min do dia 28 de março de 2018.

65 Ao mandar uma mensagem para Fabi, o interlocutor pode ter que esperar até várias horas pela

resposta. Durante estas janelas, ocorrem os fatos novos que constroem a narrativa, conforme detalhamos ao falar sobre o tempo de resposta.

julgamentos sociais. Assim, além de humanizar o comportamento da Fabi, o tempo de resposta do chatbot também é uma importante ferramenta narrativa.

Dito isto, importa dizermos que dentre os três robôs analisados, apenas a Fabi tem essa característica de demorar a responder. Naturalmente, como o bot da Americanas.com tem como objetivo ser um canal de atendimento ao consumidor, é de se esperar que ele esteja sempre pronto para responder às indagações do usuário. Aliás, conforme já explicitamos, o chatbot das americanas emula um atendente de SAC, ou seja, de fato é esperado que este funcionário esteja sempre pronto para atender. Dessa maneira, adequar o tempo de resposta aos objetivos performáticos do bot, por mais que seja uma característica nem sempre atentada pelos programadores, é peça fundamental tanto para a manutenção da realização dramática como para a sensação de copresença, mesmo que num ambiente digital.

Por fim, algo que salta aos olhos na análise da Fabi é como toda a fachada defendida ao longo de quase 24h de conversa é rapidamente desfeita com apenas algumas palavras: “a experiência CARETAS finalizou. Obrigado por participar. Pode responder algumas perguntas?” (Figura 29). Neste ponto temos a finalização da

realização dramática. A partir de então, as perguntas que se desenrolam não possuem qualquer obrigação de fidelidade à lealdade dramatúrgica: a peça acabou. Como o fechar das cortinas ou o acender das luzes de um teatro, estas poucas palavras são suficientes para demarcar o fim da simulação e o desfazimento de todo trabalho cênico até então realizado pela Fabi. Mais do que encerrar este ciclo comunicativo, estas mensagens desnudam o quão trabalhoso é manter a realização dramática e o quão fácil é desviar-se do caminho e revelar a encenação por trás do trabalho realizado. Para tanto, notamos não apenas uma mudança na linguagem, com o emprego de mais formalidade, mas um distanciamento emocional do público. Assim como o reabrir das cortinas que revela o elenco que se apresenta, a mensagem vem finalizar a narrativa. Até antes da mudança a qual revela, no início, tratar-se de uma ficção, a campanha deixava no ar se os fatos descritos eram reais ou não, mesmo que desde sempre houvesse essa pesquisa de opinião ao final. Hoje, não há mais espaço para esta dúvida, vez que a primeira mensagem que recebemos é um aviso de que se trata de uma experiência de ficção. De qualquer forma, o que percebemos é que a quebra de todos os elementos goffmanianos até então trabalhados é suficiente para romper com o trabalho de face desenvolvido.

Figura 29: encerramento da interação. Fonte: Facebook

Dito isto, mesmo considerando um propósito e um modus operandi completamente antagônicos aos demais robôs aqui analisados, o chatbot Fabi Grossi é onde mais ficam perceptíveis os pressupostos de Erving Goffman para as interações face a face aplicados às conversas automatizadas. Numa analogia causal, concluímos que ao observarmos maior quantidade de pontos de convergência entre a aplicabilidade dos pressupostos goffmanianos para relações humanas em copresença nas relações mediadas que envolvam robôs de conversação, maior o processo de antropomorfização do bot. Via de consequência, maiores as chances ser estabelecido um vínculo empático e afetivo entre o público e a marca que se utiliza destas ideias sociológicas para a manifestação da persona por intermédio da Inteligência Artificial.