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Enfim, ela flui A língua líquida!

No documento 2011MarioRafaelYudiFukue (páginas 37-41)

QS 21: Família parafrástica dos saberes hiperdiscursivos sobre TAB

1 DO SÓLIDO AO LÍQUIDO: uma breve história dos estudos linguísticos

1.2 Linguística: do sólido ao líquido

1.2.5 Enfim, ela flui A língua líquida!

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Na língua sólida “o sentido das palavras, dos enunciados [...] aparece como se já estivesse dado, cabendo ao sujeito reconhecê-lo e adequá-lo ao seu dizer. Cria-se assim, a ilusão de um sujeito desprovida de história e de um sujeito origem de si mesmo” (LEANDRO FERREIRA, 2000, p. 6). Cria-se, dessa forma, o que Leandro Ferreira chama de “evidência de sentido” (ilusão da literalidade do sentido de uma palavra) e “evidência de sujeito” (sujeito mostra-se como tendo existência espontânea). A língua sólida expulsa de suas fronteiras a historicidade (sob a ilusão de homogeneidade e da literalidade de sentidos) e o sujeito (sob a ilusão da existência de um sujeito dono de si, sem afetamentos).

Falar de uma língua líquida que inclua o equívoco (ou, ao menos, o reconheça) é participar da resistência, “como modo de pôr em questão essa tendência de apagar o ideológico [e o sujeito afetado pelo inconsciente] nas discussões envolvendo linguagem” (LEANDRO FERREIRA, 2000, p. 21). Leandro Ferreira trata da noção de resistência por meio da relação entre o mundo (a coisa), a linguagem (a palavra) e o pensamento (a ideia), conforme o diagrama abaixo:

No realismo platônico, a linguagem é um mal necessário na descrição do mundo (as coisas) e aparece como um instrumento variável por meio do qual se reflete uma realidade tomada como invariável. A língua sólida do estruturalismo, herdeira do idealismo, é também translúcida. Por meio dela, devem-se deixar passar a luz do pensamento e a imagem do mundo. Na verdade, esse conceito de língua só seria possível em um universo em condições especiais, sem a interferência do sujeito e da historicidade. A dificuldade de lidar com uma língua afetada por uma teoria do sujeito e pela historicidade forçou a linguística a rejeitar o discurso como objeto de especulação e a se limitar ao estudo das unidades mínimas da língua até o nível da frase (OSAKABE, 1979, p. 9). A linguística, assim, absteve-se de nadar pelas águas turbulentas da língua líquida e preferiu descansar contemplando a língua monolítica.

Nosso trabalho vai mobilizar uma linguagem líquida e opaca. Reconhecemos que, em condições naturais, a linguagem não pode ser translúcida, como o desejava a linguística. A língua flui de modo inconstante, deixando-se “contaminar” pelo equívoco e pelo “erro” e ficando à mercê da contradição e da luta ideológica. Essa língua líquida é chamada de

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“discurso”. Indursky (1992, p. 5) escreve que “a AD pressupõe a linguística, mas não se limita a ela [...]. O deslocamento da unidade de análise determina a necessidade de criar um corpo teórico analítico que vise a considerar a materialidade discursiva como objeto próprio.” Na verdade, ao lidar com uma língua fluida, a AD também necessita ser concebida como uma modalidade fluida de estudos, sem bordas costuradas, mas com margens deslizantes e em comunicação com outras áreas do conhecimento. Conforme postulado por Pêcheux e Fuchs (1997, p. 163), a AD, como conjunto de proposições teórico-analíticas, “inscreve-se na articulação de três regiões”: 1- materialismo histórico: teia das formações sociais e suas transformações; 2- linguística: teoria dos mecanismos sintáticos e da enunciação; e 3- teoria do discurso: teoria da determinação histórica dos processos semânticos.

Pêcheux e Fuchs reconhecem que essas três regiões determinam o quadro epistemológico da AD e acrescentam que estão atravessadas por uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica, especialmente o Outro (o inconsciente) de Jacques Lacan.

É preciso retrabalhar o diagrama de Leandro Ferreira; porém, a fim de evitar mal- entendidos, substituiremos os termos dos vértices por conceitos que melhor se relacionam com a AD. Dessa forma, no lugar de “linguagem” teremos “real da língua” de Milner; no lugar de pensamento, “teoria do sujeito”; e, em vez de “mundo”, utilizaremos “real da história”. Desse modo, o diagrama ficaria assim representado:

É possível notar, até o presente momento de nosso trabalho, que, para a Análise do Discurso de linha francesa, a linguagem não é mero instrumento de comunicação, mas “mediação, trabalho simbólico” (LEANDRO FERREIRA, 2000, p. 24) afetado pela ideologia e pelo sujeito lacaniano. Lembramos: a língua é líquida e opaca: líquida porque flui ao lado da ideologia e de outras áreas do conhecimento; opaca, porque o sujeito psicanalítico e o materialismo histórico, como efeito da contradição ideológica, interferem na relação “real da língua - real da história – teoria do sujeito”. Assim, retomando o diagrama exposto anteriormente, no eixo “real da língua – teoria do sujeito” um sujeito de natureza psicanalítica (afetado pelo Outro) se faz presente. Da mesma forma, percebemos que no eixo “real da história – real da língua” a ideologia intervém. Conforme Pêcheux (1997a, p. 160), “o sentido

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não existe em si mesmo, isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante, mas é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas”. E para Orlandi (1994, p. 6) “não há relação termo-a- termo entre as coisas e a linguagem; são ordens diferentes, a do mundo e a da linguagem, incompatíveis em suas naturezas próprias”.

Dessa forma, avançamos na representação do diagrama proposto por Leandro Ferreira:

Entretanto, ainda falta algo no diagrama. Precisamos representar a epifania do equívoco, da falha, do deslizamento de sentidos, do impossível da língua (a lalangue de Milner), que advém da interferência da ideologia no eixo “real da história – real da língua” e do inconsciente no eixo “real da língua – teoria do sujeito”. O equívoco realiza-se na materialidade linguística. Para Leandro Ferreira (2000, p. 24), “o equívoco, a falha e o deslizamento de sentido são lugar de resistência, lugar do impossível (nem tão impossível) e do não-sentido (que faz sentido).” Finalmente, o diagrama ficaria assim:

Diagrama 1 – Representação da erupção do equívoco na materialidade linguística

No viés da AD, todo problema de língua indica questões da materialidade histórica, sob a erupção da contradição e da luta de classes (vide o signo ideológico de Bakhtin), e vislumbra uma teoria do sujeito, pois é pelo ato falho de um sujeito de natureza psicanalítica

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que o equívoco pode emergir na materialidade linguística. Dessa forma, buscamos repetir e construir um aparato teórico-analítico que trate a designação e a determinação, primariamente, como uma questão linguística, mas sem excluir as questões que emergem da interferência da ideologia e da teoria do sujeito na língua. Em suma, trabalharemos a designação e determinação navegando em uma língua líquida. Para atingir tal intento, nas páginas anteriores saímos do continente rochoso da língua sólida dos gramáticos e da linguística estruturalista e começamos a navegar pelo afluente de uma língua que se liquefaz pelo contato com a ideologia. Na verdade, ao estudar a AD já iniciamos a navegação pelo longo afluente da língua líquida. Entretanto, antes de nos aventurarmos pelos mares da designação e da determinação, é necessário navegar e conhecer os outros dois afluentes que desembocam no rio da língua líquida: a materialidade histórica e uma teoria não subjetiva da subjetividade.

Portanto, vamos voltar um pouco em nossa jornada e tomar o afluente materialidade

histórica. Como as águas desse rio se combinam com as águas da língua líquida?

No documento 2011MarioRafaelYudiFukue (páginas 37-41)