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Uma teoria não-subjetiva da subjetividade e a constituição do sentido

No documento 2011MarioRafaelYudiFukue (páginas 57-60)

QS 21: Família parafrástica dos saberes hiperdiscursivos sobre TAB

2 DA LÍNGUA LÍQUIDA AOS ESTUDOS SOBRE DETERMINAÇÃO

2.1. O afluente teorias do sujeito

2.1.2 Uma teoria não-subjetiva da subjetividade e a constituição do sentido

Pêcheux segue uma linha muito próxima à de Bakhtin ao articular a ideologia (materialismo histórico) com a linguística. O objeto de estudo da AD não é o texto ou a enunciação, mas o discurso, materialidade onde se articulam língua e ideologia. Pêcheux trabalha com um “sujeito interpelado pela ideologia”, conforme proposto por Althusser (1996, p. 126). Se, por um lado, a “ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (p. 126), também “tem existência material” (p. 128). Althusser afirma que “não existe prática, a não ser através de uma ideologia e dentro dela” (p. 131). Nesse sentido, a “ideologia interpela os indivíduos em sujeito” (p. 131).

Nessa instância, o sujeito é percebido a partir de lugares sociais. Surge a “forma- sujeito”, o lugar de identificação total do sujeito do discurso (aquele que produz a materialidade linguística, o enunciado) com determinada formação discursiva. Entretanto, a inscrição do sujeito em uma determinada formação discursiva não ocorre de forma consciente. O sujeito da AD é dotado de pré-consciente e de inconsciente (FUCHS; PÊCHEUX, 1997) e é afetado por dois esquecimentos.

No primeiro, o sujeito acredita ser a fonte do sentido e, por isso, ignora os mecanismos inconscientes que o afetam. Indursky afirma que esse esquecimento é indício de que o sujeito da AD é dotado de inconsciente (1998, p. 116). Na segunda ilusão, o sujeito do discurso supõe ser o dono de seu dizer, o que, conforme Indursky, é indício de que é dotado de pré- consciente. Toda atividade de linguagem, necessariamente, demanda esses esquecimentos como pontos de ancoragem para o sujeito. Se essa estabilidade falha, há um abalo na própria estrutura do sujeito e na atividade de linguagem (FUCHS; PÊCHEUX, 1997, p. 175). Apesar de não ter sua origem no sujeito, o discurso realiza-se necessariamente nesse mesmo sujeito. Essa contradição aparente remete na realidade à própria questão da constituição do sujeito e ao seu assujeitamento (p. 170). O duplo esquecimento revela um indivíduo que se constitui como efeito-sujeito, que crê estar na origem do seu dizer e que, portanto, “produz seu discurso sob a ilusão da unicidade imaginária do sujeito” (INDURSKY, 2008, p. 12).

Dessa forma, o sujeito da AD não é onipotente, pois não é a fonte do sentido de seu dizer; tampouco se pode dizer que o sujeito é totalmente livre, pois seu dizer está afetado pelo inconsciente. O sujeito da AD é duplamente afetado: pelo inconsciente e pela ideologia. É, pois, apenas efeito-sujeito.

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discurso se dá pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina, “onde ele se encontra ‘encravado’ na condição de sujeito - esse encravamento se desloca juntamente com a própria dominância no decorrer da ‘formação’ do sujeito” (PÊCHEUX, 1990, p. 265). Conforme Indursky (2007, p. 79), “é o indivíduo que, interpelado pela ideologia, se constitui como sujeito, identificando-se com os dizeres da formação discursiva que representa, na linguagem, um recorte da formação ideológica”.21 Por essa razão, podemos afirmar que o modelo teórico da AD postula uma “teoria não-subjetiva da subjetividade” (PÊCHEUX, 1990), já que não pode haver prática sem ideologia, nem ideologia sem sujeito.

A relação entre sujeito do discurso e a forma-sujeito revela um sujeito cindido, pois sua inscrição em certa FD realiza-se pelo viés de “posições-sujeito”, reveladas por meio das modalidades da tomada de posição. Na primeira modalidade, ocorre hipoteticamente a identificação entre sujeito e forma-sujeito; dessa forma, a posição-sujeito se superporia à forma-sujeito (FS=PS). Na segunda, a divergência entre sujeito e forma-sujeito indica uma contraidentificação, em que a superposição é incompleta e resulta num “recuo que permite a instauração da diferença e da dúvida, as quais são responsáveis pela instauração da contradição no âmbito dos saberes da Formação Discursiva” (INDURSKY, 2007, p. 81). É por esse processo que surgem diferentes posições-sujeito no interior da formação discursiva, cada uma correspondendo a maneiras diferentes do sujeito do discurso poder se relacionar com a forma-sujeito da FD (PSFS). Afirma Indursky (2008, p. 14) que “a forma-sujeito tem capacidade de dividir-se em um número maior de posições de sujeito [...]. É a esta possibilidade que designo de fragmentação da forma-sujeito.”

Introduzem-se o diferente e o divergente, que, por sua vez, instauram a contradição. Indursky assinala que “um sujeito com tais características apresenta o ‘dizer do outro’ como parte integrante da constituição de seu dizer. Consequentemente, o ‘outro’ é constitutivo do ‘eu’” (1988, p 116). A subjetividade que AD pressupõe é heterogênea.

Apesar das inúmeras posições-sujeito possíveis numa FD, a aparência de unidade da forma-sujeito é mantida. A divisão ocorre sob a ilusão de unidade, que é garantida pela identificação imaginária que o sujeito constrói com a forma-sujeito. Essa forma de perceber o sujeito instaura o efeito-sujeito (INDURSKY, 1998, p. 117). A unidade do sujeito é do campo do imaginário, pois, na realidade, o sujeito é heterogêneo, fragmentado e disperso. Dessa forma, a AD inaugura uma “teoria não-subjetiva da subjetividade”.

A relação do sujeito com a linguagem é uma relação contraditória, em que há uma



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dupla determinação: do enunciado pelo sujeito e deste pela sua relação com a exterioridade. A inscrição do sujeito em uma FD, que, por sua vez, oculta uma FI, demonstra que os processos de constituição do sujeito e do sentido estão intimamente ligados, pois, no momento em que se o sujeito se relaciona com a forma-sujeito de uma FD, o sentido do enunciado é construído. Conforme Pêcheux “o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe ‘em si mesmo’, mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico, no qual são produzidos” (1990, p. 160).

O sentido nunca é literal22, mas determinado ideologicamente. Na AD o sentido é pensado como uma relação determinada do sujeito fragmentado com a materialidade histórica; dessa forma, é influenciado pelas condições de produção que determinam o processo discursivo.

Todo enunciado é “intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (PÊCHEUX, 1997c, p. 50). Há pontos de deriva, que oferecem oportunidade para a emergência da paráfrase e do deslizamento de sentido, os quais, por sua vez, revelam a existência do equívoco na língua.

Conforme Orlandi (1996a), os pontos de deriva denunciam um sentido intervalar, que não se origina com o interlocutor, mas no espaço discursivo (intervalo) criado pelos interlocutores. É na interação entre locutor e interlocutor que se estabelecem os efeitos de sentido. Por essa razão, se consideramos a linguagem como interação (aqui lembramos Bakhtin), não há espaço para um sentido literal, canônico. A polissemia estrutura o sentido, que está sempre em movimento. Em outras palavras, podemos dizer que o sentido é fluido. Escreve Orlandi (1997, p. 20): “Compreender o que é efeito de sentidos é compreender que o sentido não está (alocado) em lugar nenhum, mas se produz nas relações: dos sujeitos, dos sentidos, e isso só é possível, já que sujeito e sentido se constituem mutuamente”.

Em resumo, sentido e sujeito estão intimamente ligados e compartilham o mesmo processo de constituição; ambos são fluidos. O sujeito é descentrado, afetado pela ideologia que o interpela e afetado pelo inconsciente; por seu turno, o sentido está em constante movimento, evidenciando a polissemia e a heterogeneidade constitutiva das formações discursivas e formações ideológicas.

A fim de compreendermos melhor a relação entre ideologia e inconsciente na constituição do sujeito e do sentido, é necessário ultrapassar o estudo da materialidade



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linguística. Precisamos ir um pouco além da interlocução que Pêcheux formula entre o sujeito heterogêneo da AD, ideologicamente fragmentado, e o inconsciente lacaniano. Esse é o objetivo da próxima seção.

No documento 2011MarioRafaelYudiFukue (páginas 57-60)