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Formação discursiva e formação ideológica

No documento 2011MarioRafaelYudiFukue (páginas 43-48)

QS 21: Família parafrástica dos saberes hiperdiscursivos sobre TAB

1 DO SÓLIDO AO LÍQUIDO: uma breve história dos estudos linguísticos

1.3 O afluente materialidade histórica

1.3.1 Formação discursiva e formação ideológica

Em Foucault, um enunciado “é um gesto; de outro, liga-se a uma memória, tem uma materialidade; é único, mas está aberto à repetição e se liga ao passado e ao futuro” (1995, p. 32). Um enunciado, circunscrito em uma prática discursiva, constitui uma articulação dialética entre singularidade e repetição. Há a repetição de elementos de discursos anteriores e a singularização de novos sentidos por meio da descontinuidade. Sendo o enunciado dialeticamente constituído pelo novo e pela repetição, “a sua análise deve, necessariamente, levar em conta a dispersão e a regularidade de sentidos” produzidos (GREGOLIN, 2007, p. 96). Dessa forma, descrever a singularidade de um conjunto de enunciados é descrever a dispersão desses sentidos e detectar uma regularidade, correlações, posições, funcionamentos, deslizamentos de sentido. Foucault escreve:

Sempre que puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) entre objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, teremos uma formação discursiva. (1995, p. 43)  ao passo que Foucault não considera o papel da ideologia na construção dos conjuntos que determinam as regras de produção discursiva.

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Foucault assinala que uma formação discursiva (FD doravante) constitui um grupo de enunciados que obedecem a um sistema de dispersão, no qual será possível observar uma regularidade em relação aos objetos, tipos de enunciação, conceitos e temas. A individuação das formações discursivas é regida por regularidades que determinam sua homogeneidade e fechamento. “Este é seu princípio organizador”, escreve Indursky (2007, p. 77). Nesse sentido, nota-se que, conforme Foucault, os enunciados de uma dada FD são filtrados pelas

regras de formação, que se constituem em “condições de existência (mas também de

coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada repartição discursiva” (1995, p. 43-44). As regras de formação determinam o que pode ou não ser dito em uma dada FD. Essas regras, pautadas pela regularidade, determinam o fechamento de uma FD e trabalham para homogeneizá-la. Todo movimento de transformação rompe com a FD e submete-se à regra principal da regularidade.

Para Foucault as regras de formação e regularidade não têm relação com “ideologia”:

[...] no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se poderia definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), dir-se-á, por convenção, que se trata de uma formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio de objetividade”. Chamar- se-á regras de formação às condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição. (1995, p. 51)

Como vemos, Foucault afasta a ideologia da FD. Para o filósofo, as regras de formação e a regularidade refletem o poder da instituição em permitir ou proibir discursos. As águas dos dois afluentes, história e língua, são determinadas pelo poder das instituições, as quais determinam como as águas do discurso devem fluir e em que margens devem correr.

Na AD essas águas não estão atreladas a um poder institucional. Para a AD as regras de formação dos discursos não estão submetidas, pura e simplesmente, às interações entre poder, instituição e enunciado. A ideologia se faz presente em todo o processo de produção de dizeres. Para Pêcheux e Fuchs (1997) as regras de formação dos discursos relacionam-se ao conceito de formação ideológica (FI doravante) por meio das posições de classe. Dessa forma, a FI funciona como um quadro de regras de formação que determina o que pode e deve ser

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ser dito) e autenticação (do que pode ser dito). A FD seria, em suma, a exteriorização de uma determinada FI em uma situação de enunciação específica. Assim, Pêcheux e Fuchs aproximam a materialidade linguística da materialidade histórica e inauguram o que poderíamos chamar de “materialidade discursiva” (onde o ideológico toca a língua) e esclarecem que se “deve conceber o discurso como um dos aspectos materiais do que chamamos de materialidade ideológica” (1997, p. 166). Essa materialidade se revela pelas formações ideológicas, que comportam “uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito, a partir de uma posição dada numa conjuntura, isto é, numa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico”. (1997, p. 166-7)

As FDs representam, na ordem do discurso, as FIs que lhes correspondem. Todo discurso filia-se a uma dada FD por ser o resultado material de um dizer que obedece às regras de formação dessa FD. Tomemos a SD 10:

SD 10: Não existe um motivo plausível. Simplesmente a cabeça resolveu produzir menos ou mais

determinada substância e pronto: Você fica a mercês das oscilações. “Desviva” a Química! (fonte: http://bipolarbrasil.blogspot.com/2009_06_01_archive.html - Acesso: 09/11/2009)

Poderíamos dizer que a SD 10 filia-se à FD médico-psiquiátrica (FDMP), porque expressa na materialidade linguística (o enunciado) o determinismo fisiológico acerca da causa/origem do TAB. Para o autor da SD, a bipolaridade seria ocasionada quase que exclusivamente por fatores químico-hormonais do cérebro: “simplesmente a cabeça resolveu produzir menos ou mais determinada substância e pronto”. O determinismo fisiológico é ironicamente expressado neste enunciado: “‘Desviva’ a Química!” A FD médico-psiquiátrica é determinada pela ideologia do determinismo fisiológico, que defende uma origem exclusivamente orgânica (não psicológica) para o TAB. Dessa forma, os enunciados produzidos no interior dessa FD seriam controlados pelas regras de formação da ideologia supracitada, que proíbe dizeres que expressem uma origem psicológica ou espiritual para a bipolaridade e permite dizeres que expressem a origem fisiológica para o transtorno. Com as noções de FD, FI e regras de produção discursiva, a AD começa a navegação pelas águas nervosas da língua e da ideologia. Estamos quase chegando ao grande rio da língua líquida e logo alcançaremos os mares da designação e da determinação.

Antes de prosseguir, é importante descrever o desenvolvimento do conceito de FD na AD de Pêcheux. Para isso, será necessário navegar, antecipadamente, pelo outro afluente a teoria do Sujeito (que será tratada no próximo capítulo). A interação da noção de sujeito com o conceito de FD-FI modificou-se conforme o desenvolvimento da AD. Podemos afirmar,

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juntamente com Pêcheux, que os “indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos de seus discursos, pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes” (PÊCHEUX, 1990, p. 161). A interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso realiza-se pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (p. 163), a qual se dá pelo viés da forma-sujeito (p. 167), que “é o lugar do sujeito universal próprio a uma determinada FD. [...] Assim, é o ponto onde se ancora a estabilidade referencial dos elementos de um saber [...] E existe na identificação pela qual os sujeitos enunciadores vêm encontrar nela os elementos de saber [...] de que eles se apropriam como objetos de seu discurso” (COURTINE, 2009, p. 87).

Dessa forma, enquanto Foucault restringe o controle e a delimitação de uma FD às regras de formação discursiva e regularidade, Pêcheux inclui questões relativas à ideologia e ao sujeito. Conforme Indursky (2007, p. 79), “é o indivíduo que, interpelado pela ideologia, se constitui como sujeito, identificando-se com os dizeres da formação discursiva que representa, na linguagem, um recorte da formação ideológica”.

Essa identificação é reduplicada pelo processo da “tomada de posição”, conforme postula Pêcheux (1990, p. 171). O sujeito do discurso, ao tomar posição, identifica-se plenamente com seus semelhantes e com o Sujeito, “reduplicando sua identificação com a forma-sujeito que organiza o que pode ou não ser dito no âmbito da Formação Discursiva”. Dessa forma, nota-se que a noção de FD era marcada pela homogeneidade, ou seja, cada FD era homogênea e possuía fronteiras delimitadas com as demais; por isso, falava-se em diferentes FDs, separadas umas das outras, sem elos. A identificação do sujeito dá-se diretamente com a Forma-Sujeito.

Posteriormente, Pêcheux introduz as “modalidades da identificação”, as quais relativizam essa “reduplicação da identificação” e, por conseguinte, a homogeneidade da FD. Percebe-se que há no interior de uma FD diferentes posições de sujeito que constituem modalidades da relação do sujeito universal com o sujeito de enunciação (COURTINE, 2009, p. 102). Vejamos em que consistem as modalidades de tomada de posição.

A primeira modalidade ocorre quando o sujeito do discurso se identifica com a forma- sujeito da FD em que está inscrito. É o discurso do “bom sujeito que reflete espontaneamente o Sujeito” (PÊCHEUX, 1990, p. 215). Assim, um dado sujeito “X” produz um discurso “Y”, que obedece integralmente às regras de formação de uma FD “Z”. No entanto, é de suma importância ressaltar que essa superposição nunca é total, isto é, não há identificação plena.

A segunda modalidade consiste na contraidentificação entre sujeito do discurso e forma-sujeito. É uma “separação (distanciamento, dúvida, questionamento, contestação,

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revolta...)” (PÊCHEUX, 1990, p. 215) em relação ao que diz o sujeito do discurso e à forma- sujeito. É importante frisar que essa tensão acontece no interior de uma FD, é a luta ideológica dentro da formação discursiva. O sujeito do discurso questiona saberes de uma determinada FD em que se inscreve. A superposição é incompleta e resulta num “recuo que permite a instauração da diferença e da dúvida, as quais são responsáveis pela instauração da contradição no âmbito dos saberes da Formação Discursiva e, consequentemente, pelo surgimento de posições-sujeito no interior da Formação Discursiva” (INDURSKY, 2007, p. 81). Cada posição-sujeito corresponde a maneiras diferentes de o sujeito do discurso se relacionar com a forma-sujeito da FD. Assim, a segunda modalidade traz para o interior da FD o discurso-outro e indica a heterogeneidade da FD. Um dado sujeito “X” produz um discurso “O” que contradiz, integral ou parcialmente, as regras de formação de uma FD “Z”; é o discurso do “mau-sujeito”.

Com esse manejo teórico, “começa-se a fazer explodir a noção de máquina estrutural fechada na medida em que o dispositivo da FD está em relação paradoxal com seu ‘exterior’: uma FD não é um espaço estrutural fechado, pois é constitutivamente ‘invalidada’ por elementos que vêm de outro lugar” (PÊCHEUX, 1997b, p. 314). Pêcheux reconhece que outras FDs se repetem em uma dada FD sob a forma de “pré-construídos" e de "discurso transversos". Essa relação entre a FD e seu exterior acontece pelo efeito do interdiscurso, que designa esse “exterior específico de uma FD enquanto este irrompe nesta FD para constituí-la em lugar de evidência discursiva” (PÊCHEUX, 1997b, p. 314). Apesar da abertura das fronteiras da FD, o fechamento da maquinaria é conservado, pois ainda é concebido como “resultado paradoxal da irrupção de um ‘além’ exterior e anterior”.

A terceira modalidade das tomadas de posição funciona sob o modo da “desidentificação, isto é, de uma tomada de posição não-subjetiva, que conduz ao trabalho de transformação-deslocamento da forma-sujeito” (PÊCHEUX, 1990, p. 217). O sujeito do discurso desidentifica-se de uma FD e sua respectiva forma-sujeito para se credenciar a outra FD e sua forma-sujeito. Há um rompimento entre sujeito do discurso e FD. É propício lembrar que contraidentificação e desidentificação não designam a mesma tensão entre FD e sujeito do discurso. Na contraidentificação o sujeito desloca-se em relação à forma-sujeito e, por essa razão, não reduplica o seu saber, permitindo emergir a contradição; por seu turno, na desidentificação ocorre uma ruptura completa entre sujeito e forma-sujeito de uma FD. Entretanto, durante a desidentificação de uma FD o sujeito também se identifica com outra FD. A desidentificação de um sujeito de discurso com uma FD flagra a identificação desse mesmo sujeito com outra FD. Por exemplo, um dado sujeito “X” produz um discurso “O”,

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que não se filia mais às regras de formação de uma FD “Z”, mas passa a obedecer às regras de formação da FD “J”.

No momento atual dos estudos sobre FD, sob a influência de Courtine (2009), não se trata mais de estudar um complexo de FDs com dominantes, mas de lidar com FDs heterogêneas, nas quais há lugar para a contradição. Passa-se a falar em posições-sujeito, isto é, posições que um sujeito ocupa em relação a certa FD; as fronteiras tornam-se instáveis, fluidas, permitem deslocamentos. Escreve Courtine (2009, p. 99): “É no interdiscurso de uma FD, como articulação contraditória de FD e de formações ideológicas, que se constitui o

domínio de saber próprio a esta FD”. A contradição é percebida como elemento constitutivo

de toda FD, que é aberta a diferentes posições-sujeito e diferentes efeitos de sentido. A heterogeneidade da FD revela também a ambiguidade que pode existir na forma-sujeito, e é essa forma-sujeito que torna possível pensar em uma FD heterogênea, que “continua comportando um sujeito histórico como um sujeito para ordená-la” (INDURSKY, 2007, p. 83). As fronteiras de uma formação discursiva são suficientemente porosas para permitir que saberes oriundos de outras FDs ali se façam presentes. Assim, “a forma-sujeito que a organiza também é heterogênea em relação a si mesma, o que significa afirmar que a forma-sujeito abriga a diferença e ambiguidade em seu interior” (INDURSKY, 2008, p. 18).

Vemos que a noção de interdiscurso, enquanto “exterior de uma FD que nela se irrompe”, é responsável pela abertura das fronteiras da noção de FD. Assim, seguimos com o estudo do conceito de interdiscurso e intradiscurso.

No documento 2011MarioRafaelYudiFukue (páginas 43-48)