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A formação plural recebida no curso geral e nas diversas especialidades oferecidas pelas escolas, que capacitava os engenheiros politécnicos a projetar e supervisionar a construção de obras tão diversas quanto edifícios, poços, estradas, barragens e mesmo cidades19, também fazia deles, de fato, homens da ciência moderna (ou, especificamente, de ciências então consideradas “positivas”: matemática, física, química); comprometidos, portanto, com o conjunto de discursos e práticas discursivas a ela pertencentes. Cabia às “ciências positivas” buscar não a essência, mas as leis; não os seres, mas suas regularidades, em uma mudança de postura que, iniciada no final do século XVIII, e dando fim a uma tradição da “idade clássica”, transformaria saberes, práticas e discursos (FOUCAULT, 1999),estabelecendo um novo modelo de se pensar e fazer ciência.

A esse pensamento, ou “epistémê” – como Michel Foucault define o conjunto de práticas discursivas que dão origem a figuras epistemológicas, ciências e sistemas formalizados (FOUCAULT, 2002) – da ciência moderna, somava-se entre os engenheiros brasileiros da época a forte influência da filosofia positivista, do “Grande Positivismo” de Comte, e portanto da oposição entre ciência (encaminhada pelos interesses do espírito) e opinião (representando os interesses da vida); da valorização da empiria e desqualificação da metafísica enquanto explicação para a natureza dos fenômenos – e para os fenômenos da natureza (STENGERS, 2002). O pensamento do século XIX possui, dessa forma, uma vontade de verdade, expressada por um discurso “ingênuo”, cuja verdade estava apoiada na verdade do objeto, tratado de forma exclusivamente empírica (FOUCAULT, 1999). Parece adequado, portanto, que os engenheiros, cuja atuação baseava-se em ciências da primeira das três “dimensões” da epistémê moderna apontadas por Foucault – ou seja, aquelas para as quais “a ordem é sempre um encadeamento dedutivo e linear de proposições evidentes ou verificadas” (FOUCAULT, 1999), adotassem o ideal positivista como mote em seus discursos, participando do “folclore particular” da pretensa total objetividade (STENGERS, 2002).

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Dentre as idéias que influenciaram as elites intelectuais ocidentais no século XIX, o positivismo foi uma das mais difundidas, em suas diversas vertentes e através de diferentes veículos. Surgido de uma necessidade percebida de reformar-se a sociedade respondendo às mudanças econômicas e produtivas decorrentes da ascensão da burguesia à posição dominante na Europa, teve no francês Auguste Comte (1798- 1857) seu principal desenvolvedor e propagador.

Tendo estudado na École Polytechnique de Paris e na escola médica de Montpellier, Comte tinha a mente voltada para a ciência, mas também influenciada pelo conservadorismo cristão. Sua busca por “reorganização social” baseava-se não em uma revolução política, mas em uma reforma intelectual e moral baseada em uma ciência social que seria supostamente “positiva”, baseada na observação das “leis naturais da sociedade”, a exemplo das ciências experimentais já desenvolvidas. O objetivo declarado dessa reforma seria o “aumento da felicidade das sociedades”, através do desenvolvimento das ciências, sem ameaça à ordem social estabelecida (FERREIRA, 1989).

No pensamento de Comte, a sociedade tinha uma estática essencial, na qual as funções dividiam-se entre cada segmento. A família e o Estado seriam os pilares dessa estrutura, e os elementos percebidos em todas as sociedades seriam a propriedade material, a família, a linguagem, a religião e o governo. A sociedade positivista seguiria em direção ao progresso, teleologicamente e seguindo leis objetivas, em direção a um estágio definitivo de altruísmo, pacifismo, industrialismo e cientificismo. O dado “positivo” seria, ao mesmo tempo, real e útil (“propriedades fundamentais”), certo e preciso (“atributos intelectuais”), orgânico e relativo (“propriedades sociais”) e simpático (“assimilação da origem moral pela aceitação final”). A disciplina de consciência submetida à “experiência moderna” pregada por Comte passava por uma observação, reflexão e classificação da realidade através de critérios racionais que permitiriam uma avaliação exata, ou seja, positiva, da natureza (FERREIRA, 1989). O Positivismo era, dessa forma, essencialmente uma ideologia da contra-revolução.

Mesmo consideradas essas características básicas, o positivismo como ideologia não foi monolítico. O pensamento do próprio Comte mudou ao longo de sua vida; durante sua juventude acreditava que a política deveria subordinar-se à

economia; passou posteriormente a defender que a crise não era material, mas intelectual, moral e espiritual. Como parte de seu projeto de “sistematização de toda existência humana, individual e sobretudo coletiva”, e reconhecendo entre as tais leis naturais a necessidade de culto, veio a criar sua “religião da humanidade”, o que transformou o positivismo Comteano em uma espécie de “seita”, aspecto criticado por muitos e que teve pouca difusão, mesmo entre os que concordavam com a ética e moral positivista, em geral. Variantes “heterodoxas” do positivismo também existiram, entre as quais se destaca o Spencerismo20, mais próximo do liberalismo, para o qual a dominação da classe burguesa – os “mais aptos” dentro da dinâmica moderna – era decorrência natural da evolução social, e que condenava intervenções estatais na economia e à regulamentação da indústria. Outra variante, o Darwinismo social e as teorias racistas criadas em torno dele, era utilizada para dar justificativas pretensamente científicas à desigualdade social entre os grupos étnicos.

No Brasil, as diversas versões e derivações do positivismo exerceram inegável influência ideológica, mesmo que nem sempre em suas formas mais puras, mas sempre pairando de forma difusa no discurso de muitos intelectuais, destacadamente daqueles que se reivindicavam “cientistas”. Profundamente ligado à modernização social e ao pensamento das elites da segunda metade do século XIX, o positivismo impregnou-se na ideologia política brasileira, influenciando os movimentos pela abolição da escravatura e, principalmente, pela proclamação da República, marcada pelo mote claramente positivista da busca de “ordem e progresso”. O positivismo no Brasil foi então usado como suporte para a construção de uma “sociedade disciplinar”; seus conteúdos autoritários, afirma Luiza Otávio Ferreira (1989, p. 79), adequaram-se e reforçaram tendências autoritaristas historicamente predominantes no desenvolvimento da sociedade brasileira; o caráter difuso de sua introdução favoreceu, também, a aceitação de idéias de cunho evolucionista social – com destaque para aquelas derivadas do pensamento de Herbert Spencer – entre a burguesia nacional.

O positivismo, enfim, serviu (de forma intencional ou não) como ferramenta para fortalecer a hegemonia burguesa no Brasil, e dessa forma permitiu que essas

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elites tomassem as rédeas do processo de modernização da sociedade, da economia e da produção espacial no país. Mais do que uma substituição de idéias, esse processo passaria pela modernização da estrutura física que dava suporte à economia nacional, à cafeicultura e à nascente industrialização, tarefa que recairia sobre as mãos dos engenheiros. Para realizar esse ideal, no entanto, era-lhes necessário garantir para si a posição de orquestradores de tal processo.

Na parte seguinte – O Homem: engenharia e poder – discute-se como os engenheiros, tematizando o conhecimento científico e técnico que detinham e a ideologia positivista que defendiam, empunharam o discurso como ferramenta para legitimar suas vontades perante a sociedade. Utilizando noções fornecidas pela obra de Michel Foucault e iniciando-se a exposição do trabalho realizado com as fontes primárias, exemplifica-se também a forma como o discurso da engenharia foi utilizado, dentro do próprio estabelecimento de ensino para reproduzir a rede de influência e poder dos engenheiros, e como aqueles intelectuais/técnicos conseguiram posicionar- se como detentores do conhecimento e do poder para liderar a modernização técnica e espacial do país na virada do século XIX para o XX.