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3. A Terra: Engenharia e Natureza

3.2. Uma nação “por fazer”

Dentro do vasto currículo das escolas politécnicas, em meio a disciplinas dedicadas às matemáticas, às técnicas industriais, à economia, às construções, estava disponível também uma gama de conhecimentos que lidavam diretamente com o reconhecimento da natureza. Sem precisar ir além dos muros da sua escola, o aluno poderia estudar sobre geografia, geologia, botânica, zoologia e mineralogia, para citar alguns tópicos curriculares. Essa formação pode ser avaliada através da obra de um dos mais célebres desses alunos, o jornalista Euclydes da Cunha: formado na Escola Polythecnica do Rio de Janeiro, ingressou posteriormente na Escola Superior de Guerra, obtendo diplomas de artilharia, engenharia militar, estado-maior, matemática, ciências físicas e ciências naturais (CUNHA, 2004). Euclydes iria, mais tarde, utilizar esses conhecimentos, aliados ao seu talento literário, para descrever suas viagens ao Nordeste brasileiro e à Amazônia, compondo relatos paisagísticos seminais publicados na primeira década do século XX (baseados em anotações tomadas desde a década anterior), cuja linguagem seria emulada e citada em diversos outros trabalhos que procuravam descrever a natureza dos ermos do “Norte” e seus habitantes.

Não é necessário, entretanto, buscar a obra de Euclydes da Cunha, para encontrar os primeiros indícios da avaliação que os engenheiros faziam da natureza brasileira. Os próprios discursos de início de curso e formatura das escolas de engenharia, abordados no capítulo anterior deste trabalho, já destacavam a imagem de um Brasil cheio de riquezas naturais inexploradas, esperando para serem aproveitadas pela industriosa mão da engenharia. Era o que anunciava Antonio Francisco de Paula Souza na inauguração da Escola Polythecnica de São Paulo (1894):

Sim, Senhores, fossem comesinhos ao nosso povo os conhecimentos technicos, teriamos graças á reconhecida intelligencia e natural perspicacia dos filhos desta terra, uma industria variada, prospera e bem dirigida. Essas riquezas fabulosas que existem occultas no nosso solo e sub-solo, nas nossas extensas mattas e campinas, nos nossos caudalosos rios e impetuosos ribeiros seriam convenientemente aproveitados; em nosso proprio lar encontrariamos facilmente o que hoje, com grande dispendio, necessitamos importar do estrangeiro! (REVISTA POLYTECHNICA, 1918)

Assim se apresenta, naquele momento, para aqueles homens, o Brasil: um país transbordante de riquezas naturais em rios, campos, matas e minas; riquezas que estavam, no entanto, abandonadas, que eram forças perdidas. A natureza, desta forma, apresentava-se como algo desprovido de valor e de proveito, enquanto ainda não se encontrava transformada pelo homem (pelo engenheiro). Uma situação que não deveria durar, no entanto: o conhecimento técnico que a partir de então seria transmitido, ao ser aplicado pelos engenheiros naquela luta pelo domínio da terra, transformaria o Brasil em um país rico e auto-suficiente.

Em novo discurso que Paula de Souza pronunciaria em 1901, o Brasil mais uma vez aparecia como uma “tela em branco”, terra com “tudo por fazer”, discurso que ao mesmo tempo lançava esperança e cobrança sobre os novos engenheiros. Neste mesmo ano, por exemplo, fora apresentado um mapa do Estado de São Paulo que apresentava uma grande área de “terrenos pouco explorados” a noroeste. Esse mapa seria motivo de veementes protestos, em 1904, por parte de parlamentares indignados com o desconhecimento geográfico das redondezas de uma área considerada uma das mais dinâmicas e modernas do país. A resposta política e técnica a esse desconforto seria o comissionamento, no ano seguinte, de quatro expedições de reconhecimento ao “extremo sertão” do Estado, nas quais figuravam engenheiros que portavam equipamento de batalha para enfrentar os “selvagens”. Nenhuma intervenção fora levada adiante e o levantamento nem mesmo fora completo, mas o preenchimento do mapa sossegaria por algum tempo os ânimos dos intelectuais “progressistas” do estado (ARRUDA, 2000).

Não era somente em São Paulo, e não foi somente naquele período, no entanto, que o Brasil aparecia como “tela em branco”. Em 1936, o engenheiro Luiz Cantanhede de Almeida discursava, pela ocasião do início do ano letivo na Escola Polythecnica do Rio de Janeiro:

Os elementos naturaes conquistados, os meios technicos de acção que dispomos hoje, fazem prever verdadeiras maravilhas para o futuro. (...)

Vêde que bellas perspectivas vos apresenta o Brasil futuro e como elle exige que vos prepareis pare essa obra gigantesca. (ALMEIDA, 1936. p. 83)

Cantanhede refletia sobre os avanços trazidos por toda uma geração de engenheiros – justamente aquela que se formara nos primeiros anos do século e ouvira discursos similares aos que Paula de Souza proferira na Polythecnica de São Paulo. Falava das ferrovias e rodovias construídas, da aviação, do início do aproveitamento do potencial hidroelétrico. Mais de trinta anos haviam se passado, muito mais se sabia e se explorava do território brasileiro, porém, continuava presente – talvez porque já mitificado – o enunciado da fartura de riquezas naturais no Brasil e de seu sub-aproveitamento – e do papel fundamental que os engenheiros teriam para corrigir tal situação.

Em “Memória e Paisagem” (1996), Simon Schama fez uma reflexão sobre o mito da natureza intocada – um lugar, imaginário (como uma Arcádia) ou construído sobre uma realidade (como um Yellowstone Vale), em que o homem reencontraria sua ligação com a natureza. Seria um lugar de pureza e tranquilidade, de transcendência espiritual e conexão com as forças telúricas, cuja grande virtude seria exatamente a ausência de qualquer intervenção humana. É uma imagem romântica, presente em diversas culturas e em diferentes períodos do tempo. Pois bem; aqueles engenheiros não sonhavam com a Arcádia, e não aparentavam ter qualquer interesse em criar um Yellowstone tropical. A natureza intocada, para eles, era uma natureza desperdiçada. O Brasil a tinha em abundância, e isso era bom; não por seu valor transcendente ou paisagístico, no entanto, e sim por seu potencial de criação de riquezas. Seu mito particular era esta virtual infinidade de uma rica natureza, e eles não demonstravam pudores em pilhá-la. Nem todas as visões sobre a natureza brasileira eram tão otimistas, no entanto, e nem todos tinham as mesmas opiniões sobre como a sociedade deveria relacionar-se com ela: é o que se expõe a seguir.