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A rigor, não se sabe bem o que é que faz o lar. Sabe-se que ele pode ser feito, muitas vezes desfeito e, algumas, também refeito. É uma coisa parecida com eletricidade, não se entende a sua origem, mas se faltar a luz dentro de casa todo mundo sabe que está no escuro. Então lar é isso. É aquilo que a garotinha de cinco anos sentiu com tanta força e que nós todos sabemos quando ele está presente, como sabemos quando houve desarranjo sério nas turbinas ou simples curto circuito num fusível qualquer. (LISPECTOR, 2006, 123).

A mulher do lar passa a não enxergar só o consumo, ela enxerga o consumo e o consumismo. Estes na concepção de BACCEGA (2009) são ativos, a diferença é que o consumo é indispensável à sociedade ao dar sentido à vida cotidiana na medida em que traduz aspirações e esperanças dos indivíduos, seja pela posse material de algo material, ou pelo aspecto simbólico que é passada a comunicação.

No decorrer da história percebemos no pensamento de alguns teóricos, entre eles Walter Benjamin, um perfil negativo do consumo. Um perfil que associa consumo a alienação. Entretanto, não era neste campo que Clarice Lispector permanecia. A autora designa o consumo como algo necessário, proveniente do universo da natureza humana e dá ênfase nas suas falas às modificações da essência do sujeito quando relacionada ao ato de consumir.

Faz lembrar que a mulher não pode se deixar perder diante de tantas coisas a comprar e é convicta que ela é capaz de conciliar todas as suas obrigações. Com isso, redige o texto indicando que as suas leitoras não poderiam abdicar dos seus papéis primordiais, de mãe e mulher somente em função de um simples objeto de desejo. Na verdade, no Correio Feminino, a figura feminina é que o centro do momento, ela é o próprio objeto de desejo capaz de controlar e realizar o que desejar.

A nova mulher deveria estabelecer uma postura associacionista dos seres e das coisas. A nova proposta era a de encarar o ato de consumir associado à ética, mesclando o básico a um pouco de desejo, propondo assim um equilíbrio à natureza feminina. Educando-a de um modo que por mais que ela pudesse vir a pensar que estava sozinha no momento de adquirir qualquer coisa, sentindo-se só ou estabelecendo uma proposta um tanto individualista, pudesse compreender que tal feito era momentâneo e nele ela poderia exercer o seu potencial criativo, contrariando por um momento até as mais tradicionais teorias:

Weber, ao contrário, via no consumo uma ameaça à ética capitalista protestante. Esta favorecia a frugalidade, o conforto básico, não os luxos e desejos. Durkheim, por sua vez, identificava o consumo com uma ameaçadora anomia social, dada sua dimensão individualista. Esta só podia ser neutralizada pelo potencial agregador da divisão social do trabalho, encontrado na produção. Mesmo aqueles raros autores simpáticos ao novo mundo que se formava, como Charles Gide, Gabriel Tarde, Walter Benjamin, que viam na atividade de consumo novas possibilidades criativas, temiam de alguma forma o potencial desagregador do individualismo com o qual o consumo estava intimamente associado. (BARBOSA e CAMPBELL, 2006b, p. 35-36)

As diversas propostas que se delineiam em torno da figura feminina passam a ter como ponto em comum a permanência de uma postura crítica diante dos mais variados temas que lhes são impostos. A autora contraria ―em parte‖ autores como Weber e Durkheim. Ela não queria se deixar vencer pelo pensamento masculino estereotipado e passa a mostrar que a busca pela ação de consumir embasa a conquista de garantias no papel do sujeito, dentro do espaço em que ele está situado. Consumir, como situa CANCLINI (2005), é participar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade produz e pelos meios de usá-lo.

E este cenário do conflito em função do consumo é a todo tempo demarcado na escritura clariciana. Existe uma necessidade de se falar da temática e tal necessidade se dá, também, pelo fato de as leitoras estarem alheias ao jogo de valores, não terem acesso pleno às informações e ainda não

terem adquirido o hábito cotidiano da busca pela informação. Vale ressaltar que elas estavam, há bastante tempo, longe do espaço do jornal e dos livros, ou melhor, estavam ausentes da leitura de textos que tratassem acerca do seu próprio perfil.

Através deste jogo de palavras e ideias em volta do ser social, é percebível uma tessitura que faz emergir a linguagem em meio ao consumo e ao universo capitalista. Um discurso que torna a própria linguagem como magia, como teatro, como encantamento, como representação que aponta o mulher em meio à diversidade dos parâmetros sociais estabelecidos para o momento.

O TEXTO EM FUNÇÃO DO NOVO

Microfilme social: Clarice Lispector milimetricamente falando.

Os homens quando desejam alguma coisa vão sempre por meio diretos, o que pode dar bons resultados ou não, enquanto que as mulheres não se arriscam a perder a partida e tomam todas as cautelas para que seus planos sejam vitoriosos. (LISPECTOR, 2006, p.77)

O homem e a máquina: esta relação perpetua as sociedades humanas desde a Antiguidade. Mas, somente há aproximadamente 200 anos as máquinas tiveram um maior aperfeiçoamento e guinaram rumo à modernidade. Podemos intuir que a autora dos textos do Correio Feminino também tinha consciência deste avanço tecnológico. Percebia a sociedade cada vez mais dependente de eletroeletrônicos e maquinarias em geral, passando a viver rodeada por uma diversidade de utensílios que fascinam e ao mesmo tempo dispensam e dispersam o homem, enquanto ser social.

O campo minado da modernidade pode tornar algo que é prático, em algo cômodo de forma demasiada, o que faz anestesiar alguns dos humanos. E não era isso que a autora queria. Seu pensamento demonstra nos textos uma independência associada à disposição de querer viver e participar da vida nos seus pequenos detalhes.

Clarice Lispector mostra a vida no espaço do microfilme, a mídia analógica que enquadra as imagens nos mínimos recortes e com ela constrói o seu arquivo de ideias. Ela sabia que o processo de resgate de imagens, o enquadramento do percurso da vida era árduo e propunha no espaço do jornal um acesso eficiente de leituras e releituras oferecidas por baixo custo. Tal e qual a microfilmagem a digitalizar o passo a passo do cotidiano para que todas as suas leitoras tivessem acesso simultâneo à informação.

Mas para que a microfilmagem pudesse ocorrer, todo pensamento deveria estar muito bem alinhado. Mais um motivo para se pensar em criar estratégias no campo do textual que orientassem a mulher para que ela não viesse a se perder em meio a tantas novidades do mundo moderno. É notável

o vínculo existente entre as relações estabelecidas pelos seres humanos para produzir modos de ser e de viver e a emblematização da possível mudança da figura feminina como rainha do lar.

Vemos que em todo processo da escritura clariciana por meio das crônicas jornalísticas deve ser levada em consideração a essência da mulher e o processo de apropriação com um texto que passe a confiabilidade do microfilme, pois existia uma nova conjuntura do pensamento em torno do sujeito feminino para aquela época.

Com isso, os objetos de consumo materializados pela sociedade não poderiam omitir a valoração do humano e a integridade da mulher, e assim era proposto para elas, as leitoras, a oportunidade de dar continuidade à renovação tecnológica inicialmente proposta pelo sujeito masculino, sem perder de vista as características inerentes ao ser feminino.

O discurso da modernização pelo tecnológico passa a ser tão emergente para o momento que, em alguns dos textos estudados, vemos a indignação da autora com tamanhas mudanças, e nelas o texto aparece como um manifesto, ou melhor, um protesto de alguém que queria o avanço, alguém que estava aos poucos sendo escrava de latas, fios e poluição sonora, mas que não queria perder de vista em meio a tantos metais a sua natureza humana.

Estamos diante de um ser que via com intolerância a desigualdade, não permitia as diferenças sociais, a pobreza e a miséria em face da tecnologia. Ficava indignada quando não podia fazer nada, principalmente quando não podia falar simplesmente por ser mulher. Não aceitava que a sua voz se despedisse e a cada texto procurava falar e expor pensamentos que amparassem as pessoas que estavam sendo menos favorecidas: