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Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro exatamente por que disse, mas disse com sinceridade. Hoje repito: é uma maldição. Mas maldição que salva. Não estou me referindo muito a escrever para jornal. Mas àquilo que eventualmente pode se transformar em conto ou romance. Ou novela (acabei uma agora).

É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso, do qual é quase impossível se livrar pois nada o substitui. E é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva.

Escrever é tentar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o fim o que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é abençoar uma vida que não foi abençoada. (LISPECTOR, 2006, p.145)

Para Clarice Lispector, não importam as diferenças entre gêneros textuais, o que vale é o texto produzido que vicia, faz doer, mas ao mesmo tempo gera bênção para a vida de alguém. O ato de escrever, que para muitos é oriundo do ato de ler, é aqui incentivado pela própria Clarice. Ela quer que suas leitoras leiam o seus textos para que também possam passar para o papel as suas próprias histórias de vida. Tudo deve ficar registrado. Marcado para que outras pessoas também possam compreender que muitas vezes é irreproduzível.

Compreendemos que as deficiências no que diz respeito a leitura e a escrita na época eram muitas, principalmente no que tange ao público feminino, pois a mulher não tinha tanto espaço no que diz respeito a aprendizagem, e Clarice Lispector sabia disso. Tal fato representava um fator negativo para a disseminação das ideias femininas e ampliação do espaço da mulher na sociedade. Então a escrita passa a contribuir para a diminuição das desigualdades sociais, melhorando a qualidade de vida, buscando possíveis soluções para o contexto em que a mulher se encontrava.

Como a personagem principal do texto clariciano desenvolveria suas ideias e habilidades, para ajustamento às exigências decorrentes da evolução do conhecimento e suas competências (tão exploradas por estudiosos, professores e pedagogos)? De que forma compreenderia temas exteriores ao âmbito específico da realidade em que estava situada, ligados à realidade brasileira e mundial e a outras áreas do conhecimento se não soubesse ler e principalmente escrever?

Seria este um dos motivos para a linguagem facilitada? Configuramos um cenário, onde a avaliação dos textos gerada pelo público feminino da autora se apresenta associada ao contexto da leitura e interpretação de textos dos mais variados temas, com o objetivo de aferir um maior e melhor rendimento dos alunos/leitoras em seu contexto social? Estamos diante de um processo de formação de leitoras? Lembramos aqui das palavras de Antonio Candido (1953) ao estabelecer o conceito de crônica no prefácio de A vida ao Rés-do-chão, como um texto revelador de singularidades insuspeitadas:

A literatura corre com frequência este risco, cujo resultado é quebrar no leitor a possibilidade de ver as coisas com retidão e pensar em consequência disto. Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas [...]

[...] No caso da crônica, talvez como prêmio por ser tão despretensiosa, insinuante e reveladora. E também porque ensina a conviver intimamente com a palavra, fazendo que ela não se dissolva de todo ou depressa demais no contexto, mas ganhe relevo, permitindo que o leitor a sinta na força dos seus valores próprios. (CANDIDO, 1992, p. 6)

Assim, a crônica é revelada como um texto que estabelece novas dimensões. É um texto que liga tudo a todos, delineia proporções para uma história comum e constrói pelo verbal novas indagações e questionamentos. Ironia, crítica, isolamento, até as próprias restrições do convívio humano podem servir como tema para um questionamento estabelecido por essa construção narrativa.

Não podemos esquecer que o próprio conceito do mito no mundo contemporâneo apresenta-se de forma discutível e nos leva a refletir por meio da crônica sobre seus polissentidos. A palavra mito no uso popular é tomada para designar algo sobrenatural, mentira, algo falso ou algo que, simplesmente, pode não existir. Mas esses seriam seus verdadeiros sentidos? Ou algumas de suas formas?

Uma maneira de observar o mito é como demonstração prática, na tentativa do homem de buscar conhecer sua origem, seus sentimentos, sua forma, enfim, sua essência. Ou seja, ele reside na eterna busca do conhecimento do que está fora, além das ―mãos‖ humanas. É a tentativa de explicação da alma. O mito usa faces que dependem de quem o observa.

Ao analisarmos os textos do Correio Feminino e remetendo às questões que envolvem as ideias em torno do que é mito, podemos fazer a seguinte indagação: estaria Clarice estabelecendo nas crônicas jornalísticas uma antecipação da Via Crucis do Corpo?

Estamos diante de uma filosofia da existência, vendo a figura da mulher como objeto de transfiguração mítica que se ergue, para não perder o seu papel na cultura e ainda deixar o seu legado? É notório que ao término do conto publicado pela primeira vez somente em 1974, a autora deixa claro que existe uma dificuldade que cerca a vida de todos. Seriam as dificuldades enfrentadas pelo perfil feminino traçado nas crônicas tal e qual a criança ao nascer: ―Não se sabe se essa criança teve que passar pela via crucis. Todos passam‖ (LISPECTOR, 1991, p. 50).

Dessa forma o conceito estabelecido para a expressão mito em função de um sujeito (ser social) passa a ser fundamental. A busca pela perfeição na concepção da língua, pela aproximação com os sujeitos passa a estar em sua totalidade relacionada aos seres e às coisas que o homem possa querer interagir. Uma realização, mediante a linguagem inerente a quem está a nossa volta e os meios que são disponibilizados para que a comunicação tenha fluência.

3.1. Literatura, jornalismo e educação: produzindo a novidade de vida.

Ao analisar o perfil de Clarice Lispector enquanto uma professora, a vemos como um dos personagens principais de um filme para mulheres. Estamos diante de uma sala de aula de uma escola que é cercada por muros, onde um dos maiores deles é o da metodologia utilizada pela sociedade perante o grande grupo. Contudo, vemos a professora encaminhando para a quebra de muitos paradigmas, paradigmas estes que constituíram o muro imposto pelo social.

Em meio a uma trajetória que demonstra o conhecimento de diferentes perfis, de origens e costumes bem diferentes, vemos a difícil tarefa de conduzir uma sala de aula com mulheres de culturas distintas, mas que ao mesmo tempo, estão sufocadas por esta cultura. Logo nas primeiras aulas, vemos a necessidade do aprendizado a respeito do ―belo‖; conceito retomado por um dos sujeitos citados na crônica O dever da faceirice.

Nela, o filósofo Renan é citado, dialogando com a fala da autora, e, em seu discurso, demonstra uma reflexão a respeito dos conceitos de beleza impostos para as mulheres ―do lar‖, a diferenciação para com as alunas despenteadas e mal cuidadas, mostrando que existem gostos e preferências, e não deixa de recomendar o bom discernimento para cada situação; por mais que a sociedade possa vir a impor um protótipo para a beleza e o pensamento do sujeito feminino seja contrário a ele, existem situações em que a mulher deve rever os seus próprios conceitos: