• Nenhum resultado encontrado

A verdade também é que a gente parece ter um gosto de usura em abrir um armário e vê-lo bem cheio. Agora pergunte- -se: quantos desses vestidos você realmente usa? Se a resposta for antes meditada, será surpreendente. Tenho uma conhecida que descobriu apenas dois ou três vestidos de estimação. (LISPECTOR, 2006, p. 71)

Um tema simples como o uso, ou melhor, o gasto com a compra de um vestido, pode despertar para os princípios da economia, ou até uma análise de economia doméstica. O poder de compra, as escolhas, os usos, toda temática circulante passa a ser válida. Faz-se necessário pensar em um arado pela linguagem. Esse trabalho ela empreendeu com ardor e deixou nos cheiros, essências, perfumes tão citados nos campos, nos jardins da linguagem, de onde brotou a Rosa veementemente notada, a obra da união da Literatura com a Mídia.

Numa perspectiva permeada pela modernidade, consegue redefinir os propósitos voltados para a mulher. Reflete um espaço para o público feminino que precisava ser questionado, modificado. Mas ao mesmo tempo mostra de forma subentendida as ações antipermissivas de uma sociedade, de certo modo, patriarcalista para as mudanças, diante de um contexto que já era estabelecido como natural.

Com a escrita de textos que demonstram leveza, consegue consagrar uma fluidez para o gênero, apontando que a mulher pode exercer determinados papeis dentro da sociedade, sem perder a sua feminilidade. O sujeito passa a estar intrinsecamente associado ao contexto social formulando novas dimensões e quebras de conflitos a partir do conteúdo que adquire.

Reconstrói então novas formas de pensar a concepção do ser, seus modos de agir, de andar, de vestir e se comportar. Assim, consegue até propor uma nova concepção de perfil, de estilo e de vida.

A crônica de Clarice Lispector põe-nos em um processo de essencialização a ser perseguido. Com isso, na relaçãojornalismo e literatura a passagem para as ideias capitalistas define uma prática discursiva a ser observada atentamente, retomada criticamente.

A língua entra a serviço de um poder de compreender a história e obter no finito uma infinitude de saberes. No transitório, saberes que permanecem, numa atividade em prol do cotidiano, que se abre à novidade da linguagem, para a própria vida moderna, mostrando a função significante da palavra, enquanto revelação do ―eu‖ e do ―outro‖.

Dá-se um encontro da letra com a indagação feminina, restituída na modernidade pela mão da mulher escritora, ampliando o sistema de significação linguística, enunciando o poder da palavra, mas também o poder da postura feminina.

A literatura assume muitos papéis, em meio à dominação do pensamento científico social, desenvolvendo-se em meio à crise entre as novidades do universo capitalista, o gênero feminino e as práticas de racionalidade cientificizante. Escrevendo um discurso de participação, a autora entra numa busca de atingir o público feminino, levando-o mais próximo da realidade. A cronista brasileira acaba realizando um empreendimento para duas áreas, por meio de uma crônica simples, que propicia o compreender e especular as coisas e os seres.

A mulher marginalizada passa a penetrar numa ótica que conduz ao moderno e aproxima a crônica para a possibilidade de mudança. O cotidiano passa a assumir o papel de espectro, desestabilizando o território demarcado dos discursos sociais, permitindo que vários assuntos ditos por alguns como banais ganhem o mesmo espaço, mesmo espaço de vida e arte, pondo, descobrindo e desvendando enigmas femininos.

Nos textos, esses enigmas são expressos por meio de um jornalismo apoiado na palavra de modo simples. Sendo este a porta de abertura para a literatura. Ninguém consegue omitir o uso das palavras para nenhum dos dois,

pois sem elas a escritura não existiria. Gradualmente, a partir da informação que chega até o leitor, o contexto vai aumentando de valor. Atingindo seu ápice quando é literalmente transportado para o plano do real.

E essa valorização pela palavra acontece quando as experiências, atitudes e ações são narradas e aplicadas com propriedade. Não existe a precipitação, o ego, ou vaidades por parte da autora para se distanciar das suas leitoras; pelo contrário, a aproximação passa a ser uma das chaves para abrir as portas do projeto jornalístico-literário. Deixando bem claro que um texto precisa do outro, e cada gênero, cada estilo, tem o seu diferencial. Tal como nos afirma LIMA (1960, p. 23): ―O jornalismo não é literatura pura, sem dúvida, como é um poema, no qual a palavra vale não como transmissão de um pensamento ou de uma mensagem‖.

Desta forma, ambos os gêneros apresentam suas especificidades, representam suas esferas de saber. Segundo Bakhtin (1997):

Cada esfera conhece seus Gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. (BAKHTIN, 1997, p.284)

Vemos Clarice Lispector inovando no jornalismo literário e estabelecendo propostas mais que bem direcionadas para a população feminina. Ela age com responsabilidade, pois sabe o valor que a sua comunicação tem. A autora compreende a importância da formação de um pensamento crítico na opinião pública e, com seu espírito polêmico, interage em prol da educação de suas alunas.

A escritora interage e agiliza com textos práticos o processo produtivo. Distribui e consequentemente inspeciona os problemas que surgem nos mais diversos grupos sociais. Ela encontra um ambiente favorável para o trabalho diante da boa distribuição dos seus textos, e o bom relacionamentono

processo de produção escrita, ajuda a ambas as partes, autor e leitor, a compreender e a superar os seus próprios conflitos.

É válido lembrar também do contexto ético que envolve a autora e seus textos. A todo instante, ela busca compreender os problemas sociais , orienta e dá conselhos para aquele ser que enfrentava limitações. O desejo é que as pessoas envolvidas cresçam, apareçam, acompanhando todo o processo de leitura e avaliando os temas que eram considerados os mais importantes para a época.

Enfim, o envolvimento coletivo para a produção de Clarice Lispector passa a ser essencial. Além de tornar o processo democrático, envolve o público feminino ao ponto de incentivá-lo a desenvolver o seu próprio potencial criativo. Ela preocupa-se com um tipo de texto que viabilize a participação e o envolvimento das leitoras. E as suas leitoras passam a exercer um grau de lealdade muito superior ao esperado, pois o jornal que poderia ter ido à falência naquele momento, ressurge, deixando agora a sua marca feminina.

Nos dias de hoje, poderíamos até dizer que Clarice Lispector foi uma mulher com visão empreendedora dos seres e das coisas. Contagiou centenas de mulheres envolvidas no processo de leitura em prol de uma mudança do modo de pensar. As orientações dadas não continham nenhuma especialização especial, mas o cuidado com a palavra a levou a um compartilhamento da informação bem sucedido. Ela estimulou fortemente um pensamento voltado para a inovação e também para a tomada de decisões. E compartilhou interesses comuns que fizeram surgir afinidades naturais.

A autora recomendou soluções, dissolveu problemas e mostrou a capacidade feminina de conquistar o seu espaço moderno de responsabilidade. Responsabilidade essa que abrange o individual e o coletivo, pois, ao mesmo tempo em que a mulher deve buscar os seus próprios interesses, ser feminina e cuidar de si, não pode esquecer que existe um lar que espera por ela para os encaminhamentos diários. Ela deve limpar a casa e ficar bonita, como diz um dos títulos dos textos.

E, diante dos dilemas da vida diária, a autora passa a informação para quem lê e direciona às leitoras a possibilidade de escolhas dos seus

próximos passos. Faz com que reconheçam a importância de novos pensamentos e perspectivas de vida, a partir dos quais as motiva para um contexto tão desafiante, que desafia até a opinião do sujeito masculino, mesmo sabendo que este não irá se dobrar facilmente ao discurso da mulher: