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Capítulo V – A Solidariedade Social Territorial como modalidade de vivência da

6.2. Enquadramento da instituição da Re-food de Telheiras nos valores societais no espaço da

O projeto Refood aparece enquadrado no sistema político democrático da sociedade portuguesa. Possibilita aos cidadãos exercerem os seus direitos de cidadania e assim assumirem as suas responsabilidades perante a comunidade onde estão inseridos. Podemos vê-la à luz dos princípios enunciados na Lei sobre Cidadania.

A questão dos valores promovidos pela associação Re-food levanta questões interessantes do ponto de vista sociológico.

Em primeiro lugar, parece-nos importante que, dada a origem do movimento, se dê a conhecer os valores democráticos da sociedade portuguesa.

A Constituição e legislação portuguesas parecem-nos que são profundas e extensas na definição dos direitos fundamentais e cívicos. Contudo, a Cidadania não conhece uma definição

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legal, extensa e operatória ao contrário do que era expectável. Fomos encontrando o seu desenho na fundamentação dos diversos Ministérios. Percebemos que o espírito da Lei propõe que sejam os Cidadãos e as instituições em que se organizam, que lhe definam os contornos. Sem esquecer uma direta filiação na legislação europeia.

Também podemos constatar que o sistema social e político parece estar preparado para conceber e dar voz a este tipo de associação, com as suas práticas e vivências próprias e, parece- nos já existir em condições no terreno instituições vocacionadas para a integração dos valores democráticos.

Podemos conceber a vivência desta solidariedade diretamente ligada com o reinventar da identidade social, das populações envolvidas, construída num território (do bairro de Telheiras). Não se propõe ajudar a criar uma única identidade, apenas traduz as vivências adentro de um território concreto, localizado. Como Amaro diria, numa visão integrada dos problemas e soluções, e alicerçada no protagonismo da comunidade local (Amaro, 2003: 57). A pretensão comunitária justifica-se, no paradigma atual, segundo o entendimento de que seja “ vivido pelas pessoas onde elas estão, onde vivem, aprendem, trabalham, amam, agem e morrem" (Friedmann, 1996: 4).

Esta visão partilhada por tantos pensadores que constituíram o novo paradigma parece já estar a ser adotada pelas pessoas nas suas vivências. No entanto, como todo o trabalho de ciência, estas novas composições sociais deveriam também ser objeto de reflexão pela comunidade científica.

Concretizando, conforme nos foi dado a ver nos princípios gerais, nos sites de promoção e nas leituras de documentos do próprio núcleo de Telheiras, a leitura dos valores democráticos aparece de maneira dispersa e confusa.

Assim, a Igualdade, a Sustentabilidade, a Equidade, o bem-estar, a conceção de pessoa, o respeito e a dignidade, são valores que a Lei profusamente enuncia e parece que a Associação Re-food não mostra ter conhecimento desta enunciação Especialmente nas definições que apresenta sobre Igualdade, respeito, Inclusão e ideia de Comunidade, que se encontram díspares face às definições propostas pela Lei e o novo paradigma.

Se acreditamos que o melhor conhecimento dos valores e dos princípios fundamentais da democracia ocidental se traduz numa melhoria da capacidade de escolhas dos indivíduos, acreditamos também que as noções de vivência, práticas de cidadania, da Diversidade como valor, impõem a ideia de acreditar nas dinâmicas sociais, e, portanto fazem valer os seus contextos. Com isto queremos dizer que não há composições sociais ideais nem comunidades fechadas sobre si mesmo.

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A inclusão social não é um valor, é um resultado de uma dinâmica social, assente na comunicação entre pessoas e grupos - o valor em causa seria o de Integração. A ideia a reforçar será sempre a do reforço dos laços sociais, isto é, a comunicação efetiva entre as pessoas e o reforço de laços de respeito e simpatia e solidariedade.

Acreditamos que, nessa relação, a identidade mútua sai reforçada. A diversidade de costumes e a curiosidade entre diferentes composições sociais locais parece intrínseca à construção da nossa Identidade Nacional. Isto, hoje, está patente na valorização da nossa gastronomia de uma forma óbvia. Parece ser um dado assente que a nossa cultura nacional sempre assentou na ideia da coexistência na diversidade socio cultural.

Parece-nos também, que a Solidariedade Social Territorial estabelece uma vinculação à ideia de território simbólico, social e cultural que, em meio urbano, pressupõe sempre territórios mais vastos do que os limites geográficos (administrativos, jurisdicionais). Portanto, obedece à ideia de adesão aos princípios estruturantes da Identidade Nacional e dos seus valores societais. Assim, a ideia de se constituir cidadão português implica o conhecimento desses valores e princípios e que só se adquire na sua plenitude quando os indivíduos reúnem as condições de acesso à compreensão dos mesmos e às formas de vivência dos mesmos. Portanto, trata-se de criar as condições de acesso: à literacia, à compreensão da língua, à compreensão da Lei, acesso à educação, e a todos os direitos fundamentais. A cidadania, vista como um conjunto de práticas que promove esta Identidade com os princípios, só funciona segundo os princípios da Equidade, esta vista como um processo de aquisição destas “condições de possibilidade”. A efetiva adesão aos valores dá-se nas vivências da Cidadania.

A ideia de vinculação a um território mais vasto também está adquirida na formulação da atitude ecológica enunciada na sustentabilidade, amplamente debatida em vários setores da sociedade (educação, saúde, trabalho, etc.). A ideia da luta entre Homem e natureza foi dissipada ao longo do século XX em todo o mundo ocidental. Hoje, os contextos enunciam a necessidade de que o “Homem utilize o meio ambiente para, simultaneamente, cooperar na sua reprodução contínua”, numa relação harmoniosa que vise desenvolver a ideia de “acabar com a exploração (do Homem pelo Homem e da natureza pelo Homem) ”, criando uma relação de justiça natural (Cruz, 1985: 130).

Esta ideia de sustentabilidade ecológica levou-nos, entre outras coisas, a reequacionar o espaço urbano e a sua ocupação. Levou também a criar novos hábitos de vida quotidiana ecológicos, vividos no espaço íntimo da privacidade, portanto também no domínio do privado (esta nova consciência individual fica expressa nas práticas de separação dos lixos domésticos, por exemplo). Criou novas escolhas com a identificação de novos recursos e de novas

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utilizações para os mesmos, e possibilitou a vivência das identidades na multidimensionalidade (vividas na educação, na saúde, no trabalho, na relação com o ambiente, com o espaço, no lazer, etc.). Assim, necessariamente criou novas expressões da forma como os indivíduos vivem em sociedade, partilham espaços comuns, partilham vivências e vivem os valores e em novas formas de viver.

Transparece das práticas do Re-food, que a tomada de consciência pelos parceiros de fontes de alimento traduz a nova atitude ecológica sustentável e a vivência dos novos valores: o desperdício torna-se recurso; permite viver na sustentabilidade; possibilita vivenciar a solidariedade social territorial; possibilita a participação (num território físico e humano); parece traduzir uma vinculação a um território mais vasto (que não apenas a sua área profissional e de negócio), e portanto desenha uma pertença simbólica.

E, com este conjunto de atitudes, os parceiros da Re-food vivem a cidadania adentro dos novos valores societais.

Quando o voluntariado se exerce sob valores que dizem respeito às condições de vida dos indivíduos (na saúde, no combate às situações de carência, no combate à marginalização, etc.), o exercício dos valores em presença, exige práticas que comportam em si um cuidado maior na relação entre os indivíduos. Exige formação aos voluntários que passam obrigatoriamente pela consciência dos limites na sua atuação e que envolvem mais do que empatia. Envolvem uma simpatia (na relação com o outro) estruturada em valores que guiem o seu voluntariado. Portanto, impõe-se a necessidade de estabelecer e interiorizar princípios que norteiem o voluntariado de uma forma clara - agora numa vivência direta dos valores que esses princípios proclamam – Igualdade, Equidade, Solidariedade, para finalmente se chegar à Integração. Assim, valeria a pena a Re-food estabelecer princípios deste voluntariado (que não encontrámos!) adentro dos valores da Cidadania.

A discursividade enunciada na documentação traduz uma indefinição no uso dos termos “pessoas” e “cidadãos”. Convém também, aqui, fazer um reparo aos termos usados nesta discursividade para referir os diferentes parceiros envolvidos. Assim: “Cidadãos com boa vontade que irão responder ao seu convite e que vão ser a "ponte humana" entre o excesso e a necessidade”, resolvendo o problema das “Pessoas com necessidades na sua comunidade”. Mais uma vez, conforme esclarecemos nos capítulos anteriores, trata-se de conceitos e não de termos do léxico comum. Acresce ainda dizer que quando se referem aos voluntários o termo usado é o de Cidadãos, e, o termo usado quando se referem aos beneficiários (“pessoas com fome”) é o de Pessoas, e não Cidadãos também. Portanto, conduz à leitura de que estes não comportam os mesmos direitos que os outros.

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As vivências da Cidadania pretendem dinamizar a interação entre as diferentes instituições e indivíduos. Não se esgotando o Re-food na questão alimentar, abre a possibilidade dos diferentes e múltiplos parceiros poderem relacionar-se entre si.

Abre também a possibilidade de criar mais um momento para vivenciar a Cidadania na sua modalidade de Solidariedade Social Territorial. Podendo, deste modo, vir a contribuir para a coesão social e consequentemente a inclusão social de quem se queira ver incluído.

Assim, a pertença faz-se a um território (social e cultural) e não a uma comunidade, estabelecida ou a estabelecer, porque esta pertença é enunciada na adesão aos valores e vivida na Cidadania. Se pressupõe uma escolha, dos indivíduos e das instituições envolvidas, será vivida assente no valor da Equidade, que propõe criar as condições para que esta pertença seja possível.

O Re-food pretende e faz comunidade, de acordo com os termos que definimos anteriormente (vide capítulo do Desenvolvimento). Assim, põe em relação (em interação) pessoas e instituições, com identidades diferentes e diferenciadas, organizadas em torno de uma vivência comum (os valores do Re-food e, a nosso ver, da Cidadania), estabelecendo nestas relações uma vinculação a um território simbólico e físico. Nesta dimensão, mais uma vez se pode constatar que nem a ideia de território físico corresponde a uma delimitação concreta, com fronteiras estabelecidas – Telheiras não tem jurisdição legal. Não se trata de uma comunidade homogénea nem se pretende a construção de uma identidade única para o bairro de Telheiras. Esta ação de voluntários, ao por em relação pessoas e instituições, faz sobressair a diversidade destes, que já comportam outras vinculações e outras vivências (trabalham, habitam, vivem simplesmente, portanto socializam) neste mesmo território.

Seria interessante que o Re-food estabelecesse uma relação direta com os valores societais (presentes na definição de “Pessoa”, “Bem-estar”, “Solidariedade”, respeito pelos direitos individuais, tomada de consciência da “Equidade”, conhecimento das identidades). Deste modo, poderia reforçar a confiança nos indivíduos e comunidades em que vivem.

Mais uma vez, num estudo de caso, seria necessário descortinar as perceções que fazem dos lugares sociais (simbólicos e funcionais), que obrigariam a instituição a reconhecer e a identificar a caracterização que se faz dos envolvidos, nestas práticas do Re-food.

Esta participação na vida do bairro de Telheiras faz vida. Constrói momentos para poder acrescentar qualidade às vidas das pessoas envolvidas.

Portanto, faz comunidade no sentido em que o novo paradigma epistemológico e societal enuncia.

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Nesta discursividade denotámos também que o uso do termo “pessoas com fome” é contrário à discursividade enunciada pela Cidadania.

A Re-food contribui para a satisfação de um direito básico – a alimentação, que uma vez assegurado este direito, permite aos cidadãos em situação de carência alimentar, vivenciar a Cidadania. Satisfeitas as necessidades alimentares, nada impede que o mesmo cidadão possa também ser voluntário nesta e noutras iniciativas (princípio enunciado pelo Re-food). São os princípios e valores societais a funcionar.

Assim, os beneficiários deste voluntariado que se encontram em situação de carência alimentar são Cidadãos de pleno direito e, portanto, o objetivo deveria ser o de criar as condições para que possam vivenciar a sua cidadania de forma plena. Mais uma vez a discursividade enunciada nos documentos a que tivemos acesso, não se enquadra nos valores explicitados pela Lei – “pessoas com fome ajudam os outros”.

A vivência da Cidadania pretende também esclarecer os Cidadãos dos seus direitos e a forma como devem ser percebidos. A situação de carência é uma situação transitória que não acarreta perda de direitos. A defesa dos direitos fundamentais foi uma luta do século XX e passou por um debate acesso sobre a questão da fome, diretamente relacionada com as questões da condição humana. Os princípios da Cidadania resolveram e estabilizaram este entendimento.

Nas sociedades democráticas ocidentais, no século XXI, está adquirida a noção de Diversidade. A Cidadania implica a ideia de vivência da mesma – é preciso vivê-la.

Este modelo eco-sustentável, assente nas dinâmicas sociais, não pode nem deve ter a pretensão de ser replicado, pois, na sua implantação, tem de se considerar as especificidades de cada território. Cada território tem os seus grupos de pessoas, e cada grupo de pessoas tem as suas caraterísticas culturais, e, portanto identidades próprias – portanto deve ser entendido como “um processo integral de expansão de oportunidades para os indivíduos, grupos sociais e comunidades organizadas territorialmente” (Henriques, 1990: 54).

Por fim, resta-nos sublinhar que a nomenclatura da discursividade usada pela Re-food encontramo-la na legislação que fundam os diversos Ministérios do Estado Português, que também definem: missão, visão, valores, etc. No entanto, temos de considerar que, no espaço europeu, estas questões e noções têm sido amplamente debatidas, e conhecem significados precisos. Fica a ressalva de que alguns destes termos conhecem enunciações nas discursividades religiosas que não se confundem com a legal. Porém, a discursividade enunciada pela Re-food apresenta-se em registos dúbios de leitura. Vemos aparecer no seu site de divulgação a palavra “caridade”, enunciando assim, uma modalidade discursiva que facilmente pode ser confundida com o discurso religioso.

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O entendimento que se faz da caridade cristã em geral é apercebido da seguinte forma: trata- se de partilhar o pão com o pobre, portanto uma relação de indivíduo a indivíduo. Este espírito de partilha nesta relação individual propõe um terceiro termo a fundar que será Deus. Trata-se de amar Deus no próximo, ser generoso em nome de Deus. Esta representação social é uma representação simbólica, imbuída de significado espiritual.

Assim como a noção de caridade, também vemos aparecer nesta discursividade o estabelecimento de “dez mandamentos”, bem como de “sete afirmações”, decalcando uma estrutura do espaço simbólico religioso judaico-cristão.

Hoje, na nossa sociedade, a Solidariedade é um valor laico e social. Esta representação social implica ideias de contexto e organização social, de acordo com o modelo da sociedade vigente. Este é apenas um exemplo da importância da discursividade que se adota porque denota lugares sociais e a sua carga simbólica, que a definição de território explicita, fazendo denotar as premissas culturais e as de contexto com as suas dinâmicas.

No caso das sociedades democráticas ocidentais trata-se de adesão a um conjunto de valores e práticas sociais. Daí as noções de vivência, da Diversidade, da Equidade, da Solidariedade, da Individualidade, da Liberdade e, portanto da Cidadania. A pertença a um território, não é apenas uma pertença a um território físico mas a um conjunto de representações simbólicas.

Deixamos aqui apontadas, de forma ainda não trabalhadas, algumas questões que nos parecem essenciais num qualquer estudo de caso possível, fruto da velha e abandonada ambição de realização de um estudo de caso, sobre uma instituição deste tipo.

Enunciamo-las apenas como curiosidade.

Questões possíveis

Q.: De que forma são enunciadas, percecionadas, as representações e práticas sobre esses direitos e obrigações da vivência da Cidadania, por parte dos membros da comunidade do bairro de Telheiras envolvidos no projeto do Re-food de Telheiras – os voluntários; os parceiros, os beneficiários e a comunidade em geral; vivenciadas?;

Q.: De que forma os beneficiários do projeto do Re-food de Telheiras entendem as práticas de solidariedade?;

Q.: De que forma os parceiros de Fontes de Alimentos (doadores da restauração) do projeto do Re-food de Telheiras entendem o seu lugar social? Como se traduz este entendimento na sua ação? Como cruzam com as questões da Cidadania, mais concretamente na modalidade de Solidariedade Social territorial?;

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Q.: Qual o entendimento que os diversos intervenientes no projeto do Re-food de Telheiras fazem das questões ecológicas que o Re-food enuncia?;

Q.: De que forma os parceiros do projeto do Re-food de Telheiras enunciam a vivência da Cidadania no bairro de Telheiras?;

Q.: De que forma os envolvidos do projeto do Re-food de Telheiras enunciam a pertença social e cultural a este território?;

Q.: De que forma o bem-comum contribui para a sua Felicidade?;