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Capítulo III – Cidadania: nascimento da Modernidade e as suas ideias democráticas

3.1. Reparos à aceção grega e romana de Cidadania

Reparo à aceção grega de Cidadania

Na Grécia, com Aristóteles (384-322 a.C.), surgiram as primeiras tentativas de reflexão da noção de cidadania escrita. Aristóteles entendia o Homem como um animal político e a cidade como um tipo de comunidade organizada.

Começou-se a desenhar a noção de “pólis”, entendida como uma comunidade com princípios expressos de organização social, cultural e económica.

Nesta perspetiva, “o elemento central da cidadania era a participação na comunidade política” (Nogueira e Silva, 2001: 15), concebida nos moldes da época, a saber: só se considerava cidadão quem preenchia certos requisitos, e só participavam alguns esclarecidos na assembleia de assuntos públicos. Uma participação indissociável de uma noção de liberdade e de uma noção dos indivíduos específicos da Grécia, mas já associada a um conjunto de direitos e deveres prescritos por lei.

Apenas homens livres detinham poderes políticos e podiam participar na vida pública da “pólis” (designação da cidade-estado grega), e eram reconhecidos como cidadãos.

É preciso afirmar que se estava perante uma sociedade fortemente hierarquizada e com acentuadas desigualdades sociais, em que a cidadania era um “status” privilegiado “do grupo dirigente da cidade-estado” (Barbalet, 1989: 12), ou seja, de uma minoria (Ferreira, 2011: 21).

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Estava-se perante uma condição humana que associava a cidadania à ideia que imprimia qualidades ao cidadão (civitae). Cidadão, vocacionado especialmente para a vida pública da “pólis”, portanto, prescrita por lei e à qual se tinha acesso cumprindo condições específicas. O político desenhava-se, estabelecia-se na esfera pública da assembleia de homens livres. E, neste contexto, situava-se também a noção de igualdade entre estes cidadãos (o direito de gerir a pertença à “pólis”) e a essência da noção da liberdade nas cidades gregas.

A problemática do direito de exercício da cidadania encontramo-la na Grécia circunscrita aos requisitos para um tal exercício - a centralidade de participação na comunidade política.

Daqui reconhecemos o embrião da ideia igualdade pois só nessa esfera pública se considerava que todos eram iguais (Arendt, 2007: 40-42). Acresce dizer que o exercício do poder político era exclusivo destes homens livres. As mulheres eram consideradas como despojadas de racionalidade necessária para a participação na esfera política (Nogueira e Silva, 2001: 17). Crianças, artesãos, comerciantes, estrangeiros e escravos não podiam participar na esfera política. Não podiam ter os direitos dos homens e livres, direitos estes, prescritos por lei. A pertença à “pólis”, distinta do direito de habitar, definia um território e modalidades de pertença a esse território. Apenas os cidadãos tinham pertença ativa e definiam a identidade desse território. Este estatuto de cidadão podia excecionalmente ser concedido a figuras que representavam a “pólis” e a estrangeiros. Sem esquecer também que o sagrado estruturava as vivências dos indivíduos na Grécia.

Reparo à aceção romana de Cidadania

Para os Romanos, a conceção de cidadania parece ter-se tornado mais ampla e flexível. Ampla porque não se circunscrevia a um território restrito. Conhecia um carácter inclusivo, associado diretamente à expansão do império, obviamente associado a condições prescritas. Flexível pois no Império Romano todos os seus habitantes poderiam ser cidadãos de Roma, ainda que oriundos dos territórios conquistados. Portanto, a cidadania não estava adstrita a um território, mais concretamente a um território que se habita. Ser Romano era uma condição de identidade política e sociocultural. Acresce dizer que a deificação romana não se prendia a um lugar de origem, ao contrário dos gregos. A espacialização do sagrado romano é mais ampla.

Convém contudo tecer algumas considerações sobre o que acabámos de enunciar, a saber: - a cidadania prescrevia a “situação política da pessoa e os direitos que ela podia exercer”, e, só “tinham os mesmos direitos”, os romanos (Ferreira, 2011: 22);

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- a sociedade romana pressupunha uma divisão por classes sociais, que se refletia na escolha do lugar social e na forma de participação e de quem tinha o direito de exercer esta participação na vida romana (Ferreira, 2011: 22);

- a noção de cidadania, seria entendida como um estatuto de privilégio pertencente aos que detinham a legitimidade de participar politicamente. Participação que se tornou “um instrumento de controlo social e pacificação”. E, portanto, um “conceito legalista”, um esforço de normatização para tornar homogéneo o espaço sociocultural com o objetivo de conter, e até destruir, quaisquer manifestações de descontentamento social que surgissem no vasto império (Nogueira e Silva, 2001: 18). A pertença à cultura romana, e, portanto, de sujeição cultural, garantia a inclusão social (definia a categoria amigo/inimigo), garantia a manutenção da propriedade individual, a manutenção da própria vida individual, bem como a segurança coletiva).

Deste modo, para a maioria destes cidadãos romanos, a cidadania associava-se diretamente à aquisição do estatuto que conferia segurança e guarda judicial, mais do que a um estatuto que indicasse “agenticidade política” (ocupação de um lugar na assembleia e no poder de governação), portanto, adesão às estruturas políticas de Roma-cidade (Nogueira e Silva, 2001: 18).

A cidadania romana tornou-se, sobretudo, a expressão de inscrição num regime de normatividade, portanto a um conjunto de leis escritas, uma espécie de cidadania nominal”, que podia ser adquirida segundo critérios. Conferia estatuto – proteção da Lei romana. Isto é, a cidade no império romano sujeitou-se a uma lei escrita (reconhece-se que o poder de obrigar está nas mãos do cidadão romano). A cidadania aparece pois, como instrumento de dominação (sujeição e pacificação).

Neste sentido, segundo Nogueira e Silva, a cidadania foi assumida no império romano como uma primeira iniciativa de “estratégia de normatividade” que teve por objetivo garantir o controlo social ao tornar-se o seu instrumento (Nogueira e Silva, 2001: 18). A lei foi estabelecida como uma arma cultural para evitar a guerra. Não prescreve valores morais e culturais. Portanto não exige adesão aos mesmos. Apela apenas a uma sujeição e adoção de costumes que ilustrem essa sujeição, como forma de garantir a vida e a propriedade. A cidadania torna-se mais ampla a nível espacial porque não se prende a uma origem. Ou seja, não indica a pertença a um lugar, não faz pertença a Roma-cidade, mas demonstra o regime legal em que o indivíduo homem se encontra. A vinculação é à Lei romana e não ao espaço físico.

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