• Nenhum resultado encontrado

Capítulo III – Cidadania: nascimento da Modernidade e as suas ideias democráticas

3.3. A Cidadania Moderna: sua construção e seus autores fundamentais

3.3.2 Thomas Hobbes

Na nossa reflexão, importa mostrar como é que a Modernidade equacionou as questões da condição humana e da sociedade, tornando possível as ideias sobre os direitos individuais e sociais, para todos os indivíduos. E também como a Modernidade equacionou as questões sobre o indivíduo e a sua relação com o social.

Instituída a Modernidade (a Razão cartesiana), vejamos então as contribuições de Thomas Hobbes (1588-1679) sobre estas questões. Trata-se da aplicação das ideias da Modernidade à construção social – a génese do ideal democrático das sociedades ocidentais.

Vemos em Hobbes a tentativa de criar uma “ciência política”, liberta das premissas teológicas, centrada no homem. (Bronowski e Mazlisch, 1988: 221).

Hobbes aplicou à reflexão filosófica as regras do método científico (o método axiomático). Aplicou as regras da Razão ao pensamento sobre o Homem. Estas regras formam a doutrina da causalidade: a capacidade de conhecer, a capacidade de decompor em elementos distintos, de deduzir todas as suas propriedades, de organizar os acontecimentos de forma causal. É o discurso científico aplicado às ideias. A partir de Hobbes, a reflexão sobre o Homem centra-se nas construções sociais.

91

Assim, Hobbes aplica o método e as ideias da nova ciência do século XVII para uma explicação geral do Homem e do Universo. Ao equacionar a questão do homem com esta metodologia, cria o modelo que serviu de base para grande parte do pensamento futuro. Juntou à sua “física” uma “teoria científica” da “natureza humana”.

A este modelo, Hobbes chamou-lhe “metafisica do materialismo e do mecanismo”. Metafisica, porque trata das questões do espírito e não do transcendental. Faz das questões sociais matéria de ciência. Instaura a possibilidade de constituir o objeto das ciências sociais: o homem adentro das suas relações sociais.

Hobbes tenta reunir na sua reflexão espírito e matéria, reconduzindo a reflexão filosófica – das questões sociais ao antropocentrismo. Tudo o que é material e corpóreo é suscetível de ser estudado. O pensamento reside no corpo e não pode nem deve ser tratado na dualidade alma e corpo. Ora, Deus não podia ser demonstrável.

Hobbes elabora “as suas filosofias políticas com o homem num estado original de natureza” (Bronowski e Mazlisch, 1988: 217), portanto, sujeitos à lei natural. Enuncia a sua teoria sobre a natureza humana e, portanto, uma reflexão sobre a condição humana. Esta teoria enuncia que os homens, no estado natural, se comportavam uns com os outros com ferocidade, em permanentes condições de insegurança, chegando, deste modo, “a desejar a lei e a ordem”. Deste modo, Hobbes define a “lei natural”. Esta tese enuncia que todos os homens estão em permanente luta uns com os outros, no estado natural (primitivo) – a “luta de todos contra todos”.

Nesta conceção, os seres humanos aparecem isolados, desagregados, em competição uns com os outros. E desta guerra nasce o desejo de poder e dele, o desejo de lei e de ordem. Para Hobbes, este desejo impõe a ideia do desejo natural do soberano, ou, “simplesmente um acordo para designar alguém a que devem obedecer”. Delegar o poder a uma pessoa, “com autoridade absoluta para lhes dizer o que deviam fazer”. O que só poderia ser com um convénio mútuo em que todos estariam de acordo em colocar um acima de todos os outros – postula, pois, a necessidade de um “contrato social”.

Trata-se de um encadeamento lógico – a necessidade da chefia para a possibilidade de resolução social. Não significava que fosse um desenvolvimento histórico. Era uma questão lógica e não histórica. Opera um deslocamento do enfoque histórico para o enfoque ontológico (a condição humana).

92

Hobbes publicou em 1651 - séc. XVII - o seu tratado “Leviathan”11, em que demonstra as

suas teses sobre a organização do poder político (citado por Bronowski e Mazlish, 1988: 207). No “Leviathan”, apresenta o “estado natural” em que decompõe os laços da sociedade civil em todos os seus elementos estruturantes, portanto constrói uma análise para depois realizar uma nova síntese. Aplica o método experimental do século XVII.

Como dissemos anteriormente, a lei natural funda a necessidade da ideia de comunidade (social). Portanto, concebe a comunidade como um corpo artificial, que se constrói depois do “convénio de submissão” a um líder. Deste modo, equaciona a confiança em “Estabelecer uma autoridade absoluta” que institua os laços artificiais – a Lei -, que são os laços da coesão social, sem as restrições da lei natural (o direito de preservação como lei da natureza). Sem autoridade absoluta não se constitui a comunidade social. Esta comunidade, para se constituir “Procurou laços artificiais” (porque não naturais). Tratava-se, nas teses de Hobbes, de atingir a ideia de leis civis. Estas serviriam para “controlar o soberano” e edificar um Todo social coeso.

Assim, “Hobbes confiava no poder do rei para reforçar a unidade e a obediência” às leis artificiais.

O poder absoluto em Hobbes não se baseava no poder divino, era pensado, era proposto em convénio, no estabelecimento do contrato social.

A grande realização de Hobbes, no “Leviathan”, é propor a ideia de que o governo seria objeto de uma análise racional, sujeito a exame. Serviu-se da Lei (tratado laico) para libertar o pensamento político da tutela religiosa. Ao sublinhar a necessidade da ideia de um soberano regulador (legislador), podia-se finalmente pensar o político fora da tutela de Deus. Operou, assim, o deslocamento lógico face ao paradigma anterior.

No discurso sobre o social, liberto do transcendente, podia-se pensar a condição humana. Do ponto de vista de Hobbes, no “Leviathan” (1651), o nascimento do Estado, situa-se na passagem do estado de natureza, com a sua lógica “imediatista” do direito natural, para o “estado civil”, como garante da paz, exigência da lei natural. (Soromenho-Marques, 1996: 11). Quanto à soberania e ao exercício do poder, Hobbes considera que a soberania não se concebe à margem da sociedade mas sim no seu interior. Ela está sim, sujeita ao poder dos seus membros.

Para Hobbes, o poder não vem de Deus nem de qualquer impulso natural. Parte da premissa que o contrato social surge quando, na busca do bem-comum, os indivíduos decidem agir em comum. E só nesse momento, em que surge o contrato social, se pode falar de “povo” e termina

93

o “direito de natureza” (estado natural), iniciando-se o “estado civil”. (Soromenho-Marques, 1996: 11).

Trata-se pois, de um poder organizado e constituído pelo contrato social. Estão criadas as condições para que se criem os direitos individuais dos cidadãos, e se previnam os riscos de abuso do poder do soberano.

Para este filósofo, a sociedade não se reduz a um mundo de encontros fortuitos mas é constituída através dos laços artificiais e do contrato social, portanto, do estabelecimento de consensos que estabelecem o bem comum e, portanto, pressupõem a Lei (com os seus princípios e valores). Nas teorias de Hobbes, a obediência dos súbditos ao soberano, está estabelecida pela necessidade deste, aquando da renúncia “consentida” pelos membros da comunidade ao exercício do poder.

Estamos perante um consentimento racional e coletivo (renúncia ao autogoverno), inserido num processo de contrato social, não individual.

Estamos ainda, perante uma estrutura de poder que implica acordos entre os seus membros – apela a consensos.

E na medida em que “o poder soberano é único e uno” e transita “integralmente do povo para o soberano, no acto do contrato” (Soromenho-Marques, 1996: 16), estamos igualmente perante a confiança e a obrigação, perante um estado artificial e construído (não natural), ou seja, um “estado civil”, onde se enquadra a cidadania.

Uma cidadania que, como acabámos de constatar, não é um dado natural mas sim um processo onde intervêm Razão e vontade.

Neste processo, “o homem é tornado apto para a sociedade não pela natureza, mas pela educação” do pensamento (Hobbes, 1642, De Cive: cap. I, 2 citado por Soromenho-Marques, 1996: 17).

Na perspetiva de Hobbes estamos perante uma “aquisição artificial” (construída). “Nascemos homens mas tornamo-nos cidadãos” (Soromenho-Marques, 1996: 17). Com Hobbes, a Modernidade instaura de vez a necessidade do Estado de Direito, isto é, da normatização social, possibilitando assim, o nascimento da Cidadania regulada, mais próxima do nosso entendimento atual.

Estavam criadas as condições para se poder pensar as estruturas políticas, societais que dessem forma a estas ideias que estruturam o político. É o reforço da crença na capacidade dos indivíduos de pensarem e organizarem o social. Assim, as doutrinas de Hobbes, embora despóticas nas suas implicações, forneceram o ponto de partida para a possibilidade de pensar o político moderno.

94

Porque Hobbes deslocou definitivamente a reflexão social para uma análise do poder, foram possíveis, o aparecimento das ideias “liberais” (da necessidade de fazer Lei) de Locke e o “contrato social” de Rousseau. Este contrato, em Hobbes, ainda é “simplesmente um acordo para designar alguém a que devem obedecer” - a figura do príncipe a encimar o todo social.

A Razão aplicada ao social, espera ainda por Locke…