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Capítulo II – Cidadania: genealogia do conceito no século XX

2.3 O novo paradigma, do século XXI: Birzéa Considerações finais

Com a ampliação dos direitos e criação de novas instituições sociais, o próprio político se ampliou e mudou de forma no século XXI. Instalou-se o paradigma da Diversidade. Daí esta dissertação.

Estas mudanças de paradigma resultam de dramáticas mudanças sociais. A realidade desmentiu o saber. O quadro de pensamento mudou porque o mundo mudou. Não mudaram apenas as sociedades democráticas ocidentais, senão lembremos algumas das principais mudanças que ocorreram a partir da segunda metade do século XX, tais como:

- o fim dos regimes políticos totalizantes como o imperialismo, colonialismo, regime soviético;

- a expansão dos mercados para o continente asiático e África;

- as tentativas da hegemonia do capitalismo financeiro por todo o globo;

- o ritmo galopante da evolução tecnológica com o acesso generalizado (global) da população a estas tecnologias;

- a ilusão do acesso à informação generalizada;

- o encurtamento das distâncias trazidas pela internet e a sua ilusão de proximidade real; - a abertura das fronteiras para pessoas, bens e mercadorias que conduziu a migrações inesperadas (novos migrantes da Europa do Leste, da África, da América do Sul e de todo o Oriente para as sociedades democráticas ocidentais), com o consequente aumento do intercâmbio de culturas, instalando a diversidade cultural no interior das sociedades democráticas ocidentais;

- a perda de atuação dos Estados-Providência no fim do século XX e princípios do século XXI;

- e o aparecimento e convívio com a nova imagem sintética. Entre outros.

Concomitantemente emerge, cresce e expande-se, uma nova consciencialização da realidade, do espírito crítico, e, dos direitos fundamentais e da necessidade de serem garantidos. Impõe-se assim, a necessidade do cidadão atuar para melhorar as condições de vida que o Estado não assegurou. O campo de possibilidades de análise alargou-se. Operou-se um deslocamento da relação binária e biunívoca para uma lógica de pelo menos três elementos e da “posição relativa”.

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Em 1997 foi lançado o projeto “Éducation à la Citoyenneté Démocratique” por um grupo de trabalho constituído por representantes dos ministérios de educação, organizações internacionais, ONG’s, especialistas ligados à esfera da educação para a cidadania democrática. O projeto visava determinar os valores e as competências necessárias para os indivíduos se tornarem “cidadãos plenos”, e, nesse sentido, de que forma poderiam adquirir essas competências e como poderiam aprender a transmitir a outros.

Das inúmeras atividades organizadas entre 1997 e 2000 resultaram, entre outras, na elaboração do relatório de síntese de César Birzéa.

Birzéa (1944-…), psicopedagogo romeno, neste seu relatório de síntese do projeto “Éducation à la citoyenneté démocratique” apresenta à partida a Cidadania como sendo um conceito pluriforme e nesse sentido põe à discussão diferentes perspetivas de diversos autores (Birzéa, 2000: 91).

Segundo Birzéa, os anos noventa foram uma década de muitos desafios e incertezas fomentados, sobretudo, pela depreciação dos valores fundamentais da Modernidade, nomeadamente com a crise do Estado-Nação, com a precariedade do trabalho e a massificação/estereotipização; mas também foi uma década de otimismo. Segundo este autor, muito devido à ação conjugada entre o chamado “complexo do milénio” e o ressurgimento da “virtude da cidadania”.

A Cidadania ganhou um novo fôlego. Já não como conceito mas como prática. O milénio acabava com medo da desestruturação da democracia. A miragem da Europa unida estava posta em causa. Impunha-se reavaliar as liberdades (a precariedade do trabalho e a agressividade do mercado levaram ao endividamento do indivíduo, etc.). Foram postas em causa os princípios da Modernidade estruturadores das sociedades democráticas ocidentais: a igualdade (o Estado corretor das desigualdades parecia ter fim); a propriedade (as privatizações e o crescimento das multinacionais alteraram as leis do mercado); e a solidariedade (as novas migrações e os novos refugiados obrigam à reavaliação das identidades nacionais). O modelo societal estava posto em causa.

O Estado social parecia estar incapaz de cumprir a sua missão de providenciar pensões, solidariedade social, cultura, educação e saúde. Assim, os argumentos de Birzéa apoiam-se nas diversas transformações históricas ocorridas na década de 90, a que Dahrendorf chamou a “década da cidadania”. Esses argumentos realçam a crise do Estado-Providência, os processos de transição dos países do pós-comunismo, a mundialização da economia, a emergência das

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biotecnologias, etc. A par disso a constatação de que a geopolítica da Europa mudou. A globalização estava no horizonte. O genoma humano podia ser mexido.

Portanto, foi uma década de emergência de novos temas e abordagens.

Deste modo, o autor parte de uma localização histórica definida, os anos 90. Parte da deslegitimação do conceito de Cidadania para, a partir daí, levar a Cidadania para o campo das práticas e da identidade.

Birzéa sublinha as questões relacionadas com as contradições geradas na própria sociedade, entre a competição e a solidariedade e a possibilidade de conciliar as exigências destas contradições - da sociedade gerir o que gerou - não sendo apenas uma nova utopia. Portanto, parte da realidade, ao contrário de Habermas, para chegar à realidade.

São questões que o autor levanta com o intuito de encontrar soluções capazes de responder a estes grandes desafios e às pressões exercidas sobre a cidadania democrática.

Estas abordagens, sobre a concetualização do conceito de Cidadania, remetem para a construção dos direitos e deveres ao longo dos tempos, e, para a construção e evolução do sentimento de pertença a um território específico. O que consequentemente, se traduz em diferentes práticas de cidadania (Birzéa, 2000: 7). A genealogia dos valores terá que ser feita ao interior das questões da identidade, ou seja, equacionada com as questões que constroem a identidade.

O autor sublinha que em todos os períodos de crise se procura o “ideal de cidadania” como esperança ou como um “novo projeto de civilização”. Façamos alguns reparos às teses de Birzéa: de civilização passámos a falar de culturas no novo milénio; o fim da hegemonia ocidental foi um bom resultado das crises do século XX. O modelo da sociedade ocidental já não é o modelo a exportar obrigatoriamente para todos os cantos do mundo. As utopias perderam o seu sentido escatológico. Temos os meios para poder edificar a sociedade da diversidade, isto é, o novo paradigma atual. A esperança não reside na idealização da Cidadania mas na sua vivência plena (nas suas diversas modalidades).

Ao reificar a vivência da Cidadania, Birzéa desloca a atenção para as condições de possibilidade de implementação do novo paradigma, tanto ao nível das ideias como ao nível das práticas sociais, das vivências.

Neste sentido, Birzéa, quando se refere ao período atual, o autor fala de um “novo contrato social” baseado nos deveres e direitos do cidadão, que restauraria a coesão social bem como a solidariedade fundada numa ordem moral. Parece-nos a nós que Birzéa fala de moral e não apenas de ética porque mais uma vez apela para a construção efetiva de uma nova realidade –

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as suas teses traduzem as preocupações e as inquietações e uma confiança nas capacidades de aprendizagem do ser humano.

Sem dúvida, nas teses de Birzéa, neste relatório, a Cidadania aparece como uma vivência nas suas diversas modalidades. Apela portanto, para as práticas das suas vivências. Esta noção está estabilizada. A nosso ver, o “novo contrato social” nas sociedades democráticas ocidentais está edificado com os novos valores da Equidade, Diversidade e da Solidariedade. Não nos parece que seja necessário voltar a refletir sobre Uma ordem moral. Muito menos generalizável através de uma forma legalista.

A sociedade ocidental tem mostrado neste princípio de século que é capaz de gerir as suas contradições. As crises mais não fizeram que nos obrigar a uma reinvenção. O paradigma da diversidade é possível de implementar em paz e com coesão social. E a Cidadania foi um mobilizador da nossa reinvenção societal, espacialmente vivida, localizada nas vivências dos indivíduos.

É preciso operar um deslocamento para nos aproximarmos da realidade vivida pelos cidadãos. A juntar ao conceito de “relação” é preciso focalizarmo-nos na noção de “vivências”. Esta traduz, o novo paradigma atual. Porque os Cidadãos praticam estes novos valores: da Equidade, da Diversidade e da Solidariedade. Já não são apenas “princípios e valores”, são práticas. Doravante, as modalidades de cidadania impõem a ideia de que conforme o contexto cultural em que se dá a viver a Cidadania, se poderá definir os contornos da Cidadania que ela assume. Os contextos sociais e culturais estão no centro da análise e definirão as modalidades em que se pode viver a Cidadania. A Solidariedade, nos novos moldes, resulta da compreensão desses novos valores e das suas vivências possíveis.

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Capítulo III – Cidadania: nascimento da Modernidade e as suas ideias