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És ambicioso?

4.1.2 Enquadramento Jurídico

A comunidade internacional começa a reconhecer agora que o TSH deve ser abordado da perspectiva dos Direitos Humanos, centrado nas vítimas. Deve ser assegurada a sua plena protecção em todas as fases do processo, para tal é preciso criar a vários níveis (internacional, regional, nacional) mecanismos, instrumentos jurídicos coerentes, eficazes, céleres baseados na Convenção ONU contra o Crime Organizado Transnacional e o seu Protocolo adicional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas (o primeiro instrumento jurídico mundial concebido para combater redes criminosas e proteger as pessoas da escravatura, da exploração sexual e do emprego ilegal). Aliás o reforço dos direitos das vítimas, sua protecção e assistência, tem início exactamente nesta Convenção (e supramencionado Protocolo) na qual se distinguem três naturezas diferentes de normas 46:

46Classificação retirada do estudo PEREIRA, Sónia, VASCONCELOS, João (2007) “Combate ao

Tráfico de Seres Humanos e Trabalho Forçado - Estudos de casos e respostas de Portugal” – OIT

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Normas. que obrigam o Estado parte a actuar: art. 6º nº1 do Protocolo contém um

obrigação de protecção da identidade/privacidade da vítima levando a que os casos de procedimentos criminais sobre TSH sejam confidenciais; art. 6º nº 2 a) do Protocolo contém a obrigação de prestar à vítima informação sobre procedimentos administrativos e judiciais; art. 6º nº2 b) do Protocolo contém a obrigação e garantir à vítima a possibilidade de expor a sua versão dos factos bem como as suas preocupações no momento adequado dos procedimentos criminais que envolvam o(s) seu(s) agressor(es); finalmente o art. 6º nº6 do Protocolo e art. 25 nº2 da Convenção contém a obrigação de incluir na legislação interna meios que permitam à vítima de TSH obter uma compensação por danos sofridos;

Normas que solicitam ponderação/esforço dos Estados na sua aplicação: art. 24

nº 4 da Convenção exige que cada Estado parte adopte medidas adequadas para que seja garantida a protecção das vitimas, e, quando conveniente, a dos seus familiares, que sejam testemunhas em procedimentos criminais; o art. 6º nº5 do Protocolo prevê mesmo que os Estados deverão garantir a segurança física das vítimas enquanto se encontrem no seu território nacional; o art. 7º do Protocolo aponta para que os Estados ponderem uma forma de regularização de permanência das vítimas de TSH no país de destino;

Normas cuja implementação é de natureza totalmente opcional: o art. 6º nº3 do

Protocolo enumera um com junto de medidas que visam a recuperação física, psicológica e social da vítima como sejam alojamento adequado, acompanhamento e aconselhamento na sua língua ou numa outra que consiga

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compreender adequadamente, assistência médica, psicológica e material, emprego e acesso ao ensino e à formação.

Apesar do exposto o Protocolo, surpreendentemente, não estabelece um procedimento específico para a determinação do estatuto de vítima. Por outro lado um procedimento administrativo ou judicial poderá ser alcançado de duas formas:

a) Por iniciativa das forças de autoridade, de controlo fronteiriço ou outras que tenham contacto com as vítimas;

b) A requerimento das vítimas.

O tribunal competente para julgar o crime de TSH em causa deverá certificar o estatuto de vítima no âmbito do processo para que esta possa usufruir plenamente dos seus direitos.

A efectiva protecção das vítimas também é consagrada no ordenamento jurídico comunitário, nesse sentido a Decisão-Quadro do Conselho 2001/2220/JAI de 15/03/2001 fornece, no seu art.1º, um conceito básico inicial para esta análise relativa ao estatuto de vítima em processo penal:

“Vítima”: pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um dano moral, ou uma perda material, directamente causadas por acções ou por omissões que infrinjam a legislação penal de um Estado Membro.

Esta Decisão-Quadro estabelece ainda que as vítimas beneficiem de um estatuto específico, adequado à sua situação em sede processual (art.2 nº2), estatuto esse a que deve ser dada especial atenção tratando-se de um menor que preste testemunho em audiência pública (art.8º, nº4). Por outro lado o

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impulso para que se estabeleça a abertura de procedimentos criminais que tenham por base o crime de TSH não depende de queixa da vítima (art.7º nº1).

A Directiva 2004/81/CE do Conselho de 29/04/2004 regula a autorização de título de residência concedido aos nacionais de países que sejam vítimas de TSH ou objecto de uma acção de auxílio à imigração ilegal e cooperem com as autoridades competentes. Essa autorização (válida por um período mínimo de seis meses de acordo com o art.8 nº3) deve ser concedida sob as seguintes condições cumulativas (art. 8º nº1 e nº2):

• Demonstração de uma vontade clara de colaborar por parte da vítima; • A vítima não se encontrar em contacto com os presumíveis autores do

crime;

• Relevância do seu depoimento para investigações ou processos judiciais.

Uma critica imediata ao primeiro destes requisitos reside no facto de estarmos perante um crime que implica a violação dos Direitos Humanos, proteger a vítima somente em troca da sua participação activa nos procedimentos criminais enfatiza a ideia errada de que a única vítima nos casos de TSH é o Estado. Há quem adiante que a vítima, ao colaborar, se expõe de tal forma que existe um segundo momento de vítimização, tais são os riscos substanciais que esta atitude acarreta.

A Directiva prevê igualmente a possibilidade das vítimas disporem de um prazo de reflexão para se desligarem definitivamente dos autores do crime e simultaneamente tomarem uma decisão informada sobre as consequências de uma possível colaboração com as autoridades, cujo início e duração é deixado à

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discricionariedade dos Estados Membros. Durante o prazo de reflexão as vítimas beneficiam de assistência médica, ou outra necessária, bem como da possibilidade de serem inseridas em programas de reintegração social, de acordo com os arts.9º e 12º respectivamente. Quando se tratam de menores a Directiva exige que seja, antes de tudo, considerado o interesse superior da criança aquando da aplicação do seu regime. No caso de um menor não acompanhado, segundo o art.10º, as autoridades devem desenvolver todos os esforços para que seja determinada a sua identidade, localizar a família existente e promover a sua representação legal.

A possibilidade de implementação de um Sistema Europeu de Residência Temporária, segundo Schlapkohl (2006)47, poderá ser útil para a prevenção de vítimas de TSH. Após a sua identificação, e antes de regressarem ao seu país, as autoridades têm contacto com as vítimas uma vez que devem zelar pela sua segurança, protegendo-as nesse particular estado de vulnerabilidade. Vítima que é clandestina, sem qualquer apoio das autoridades do país de destino, e que quando identificada é imediatamente deportada para o seu país não consegue fornecer qualquer informação que combata o TSH. A implementação deste sistema permitiria melhorar a forma desproporcionada e inconsistente como se tem lidado com as vítimas deste crime, permitiria também não só o aumento quantitativo e qualitativo da informação como a partilha entre os Estados-Membros. Na sequência do trabalho desenvolvido a partir da Directiva de 2004, este caminho está aberto e revela-se cada vez mais necessário no combate ao TSH.

47SCHLAPKOHL, Laura (2006) ” Human trafficking and the common European Asylum System-

Victim protection and assistance in the European Union” – The Fletcher School, Tufts University,

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Nesta matéria importa elencar os seguintes diplomas no ordenamento jurídico português, partindo, evidentemente da prática do crime de TSH:

Lei 61/91 de 13/08 – garante a protecção adequada às mulheres vítimas de violência; -Da qual se destacam essencialmente quatro aspectos: criação,

através de apoio do estado, de casas de atendimento, abrigo e acompanhamento das vítimas (art.5º); criação de um gabinete de atendimento SOS junto do MJ (art.6º); implementação, por parte dos OPCs, de gabinetes de atendimento à vítima (art.7ª); direito das associações de defesa das mulheres vítimas de crimes de se constituírem assistentes em representação da vítima no processo penal (art.12º);

Resolução da Assembleia da República nº31/99 de 14/04 que regulamenta a legislação que garante a protecção às mulheres vítimas de violência;

Decreto-Lei 423/91 de 30/10, actualizado em 1996, 1999 e 2004, que estabelece o Regime Jurídico de Protecção às vitimas de Crimes Violentos –

é um regime subsidiário, somente aplicável quando os danos sofridos não foram ressarcidos através da responsabilização civil dos agentes do crime ou outra fonte de reparação de efectiva e eficiente (art. 1º,nº1 c)). No caso de se tratar de ressarcir uma vítima estrangeira, o diploma deixa claro que somente o serão os actos intencionais de violência praticados em território português (art.1º, nº1);

Lei 107/99 de 03/08 que cria a rede pública de casas de apoio a mulheres vítimas de violência;

Decreto-Lei 323/2000 de 19/12 que regulamenta a lei que cria a rede pública de casas de apoio às vítimas de violência doméstica;

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Lei 93/99 de 14/07 que regula a aplicação de medidas de protecção de testemunhas em Processo Penal; - A aplicação dessas medidas, quer gerais

quer pontuais, depende da demonstração de factos que revelem intimidação ou elevado risco de intimidação da testemunha, entendida como toda a pressão ou ameaça, directa, indirecta ou potencial exercida com o objectivo de condicionar o seu depoimento ou declarações (art.4º nº2);

Decreto-Lei 190/2003 de 22/08 que regulamenta a lei anterior;.

Lei 23/2007 de 04/07 – lei de estrangeiros - cujo Capítulo VI contém a Secção V (arts 109º a 115º) dedicada à autorização de residência a vítimas de tráfico de pessoas ou de acção de auxílio à imigração ilegal. – Consagra

finalmente, à luz da Directiva 2004/81/CE do Conselho de 29/04/2004, uma protecção para as vítimas de TSH absorvendo as recomendações que têm sido emitidas pela comunidade internacional, sobre esta matéria, na última década: autorização de residência (art.109º), período de reflexão de, no máximo, 60 dias (art. 111º), especial atenção dada à vítima menor (art. 114); • Decreto-lei 368/2007 de 05/11 – define, num artigo único, o regime especial

de concessão de autorização de residência a cidadão estrangeiro identificado como vítima do crime de tráfico de pessoas;

Lei 147/99 de 01/09 alterado pela Lei 31/2003 de 22/08 – Lei da Protecção de Crianças e Jovens em Risco;

Plano para Integração dos Imigrantes – Resolução do Conselho de Ministros 63-A/2007 de 03/05/207 – Enfrenta o facto do fenómeno migratório ter

assumido um novo contorno para a sociedade portuguesa acarretando uma responsabilidade para com a integração destes cidadãos. Os pontos 119 a

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122 debruçam-se especificamente sobre o TSH apontando quatro grandes medidas que se harmonizam com um conjunto a legislação em vigor com metas específicas (páginas 22 e 23 do referido Plano): a) reforço na protecção legal e apoio jurídico às vítimas, incluindo crianças; b) criação de Centro de Acolhimento para vítimas de TSH; c) criação de um Observatório de TSH; d) Desenvolvimento de estratégias mais eficazes de combate ao

TSH;

Lei 48/2007 de 29/08 – Código do Processo Penal – no que respeita ao reforço da tutela das vítimas de crimes, estabelece-se que o Tribunal informa a vítima da libertação ou fuga do arguido ou condenado, sempre que se entenda que pode existir perigo para vítima. Para proteger directamente testemunhas e vítimas de TSH, prescreve-se o regime de declarações para memória futura no inquérito (art. 271 nº1) não sendo também autorizada, aos órgãos de comunicação social, por qualquer meio, a publicação da identidade da vítima salvo se nisso ela consentir expressamente ou se o crime for praticado através daquele meio (art. 88º nº2 c)). São permitidas, em sede de audiência de julgamento, a leitura das declarações para memória futura sem necessidade de acordo do MP, do arguido ou do assistente (art.356 nº2 a) do Código do Processo Penal (CPP)), não pondo em risco a perda desse importante elemento de prova.

A legislação anti-TSH, de acordo com a realidade deste fenómeno no nosso ordenamento, é uma novidade. O mais recente Relatório sobre TSH

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elaborado pelo Departamento de Estado Norte-Americano (Junho de 2007)48 salienta que o governo português, no que respeita à protecção de vítimas de

TSH, tem desenvolvido esforços para lhes prestar assistência bem como a

encorajá-las a depor contra dos seus traficantes, tendo contribuído de forma determinante para esse facto a Lei 23/2007 de 04/07, denominada Lei de Estrangeiros, e a nova redacção do CP (Lei 59/2007 de 04/09) que finalmente, no seu art. 160º, consagra uma definição de TSH de acordo com a visão ampla dos diversos diplomas internacionais nesta matéria.