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Marcel Mauss nasceu na cidade de Épinal em 1872, na França. Descendente de uma família judia praticante que residia na fronteira com a Alemanha. Desde muito jovem, foi considerado uma pessoa com grandes capacidades intelectuais e inquieto diante de causas sociais, o que lhe mobilizara ao ponto de se envolver com a organização de conhecimentos que deram origem a antropologia francesa (MAUSS, 2003).

Tal envolvimento lhe rendeu muitos méritos como a formação de uma nova geração de sociólogos que o seguiram, mas também, deméritos por suas características revolucionárias, o que levou muitos a subestimarem sua capacidade e suas teses.

Foi ativo no socialismo e colaborador com a imprensa de esquerda, envolvido com o movimento cooperativista, integrava o Partido Socialista Francês e chegou a

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Baseada no liberalismo teve sua origem nos Estados Unidos e teve como defensores Friedrich Hayeck e Milton Friedman. Com vistas a aumentar a produtividade e o capital, o paradigma neoliberalista ou neoliberalismo é uma corrente de pensamento que se ocupa com estratégias que regulem o trabalho e explorem a população, de modo que as políticas sejam voltadas para a produção de capital e lucros. Com isto, o governo possui uma participação menor nas ações e no capital, viabilizando a privatização do patrimônio que atualmente chamamos de público (empresas e serviços).

doar suas economias ao partido por acreditar nos seus ideais (CAILLÉ; GRAEBER, 2002).

Com conhecimentos oriundos da formação como jurista e da filosofia, Marcel Mauss, aos 46 anos publicou o “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas" (MAUSS, 2003), ocupando-se com estudos que vislumbravam conhecer fatos etnográficos e analisar o direito em civilizações antigas do Noroeste americano, Polinésia e Melanésia (SIGAUD, 1999).

Ao longo do séc. XX, diversos antropólogos divergem na concepção de que este ensaio poderia ou não conter uma proposta teórica que contemple explicações sobre as trocas entre os homens, ou que se poderia denominar como sendo uma teoria da troca.

Originalmente, o “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca em sociedades arcaicas” esta relacionado a um contexto mais amplo de pesquisas sobre o regime do direito contratual e os sistemas de prestações econômicas entre grupos e subgrupos das sociedades ditas primitivas e arcaicas (SIGAUD, 1999).

De acordo com Lanna (2000), o argumento central do ensaio é de que a dádiva produz a aliança, tanto as alianças matrimoniais como as políticas (trocas entre chefes ou diferentes camadas sociais), religiosas (como nos sacrifícios, entendidos como um modo de relacionamento com os deuses), econômicas, jurídicas e diplomáticas (incluindo-se aqui as relações pessoais de hospitalidade).

Na década de 1920, este estudo era também concebido como a atribuição de um sentido espiritual para o ato da doação, sendo contraditório ao que os contemporâneos de Mauss entendiam, por definirem o modelo teórico como fundamentado pelas premissas do direito (FOURNIER, 1994).

Para Mauss, o progresso das organizações sociais ocorreu de fato quando o homem se deu conta da importância de estabelecer relações com seu semelhante, de forma que o ato de dar, receber e retribuir faz parte de um processo de relações saudáveis (MAUSS, 2003). A dádiva pode ser entendida basicamente por esta tríade, que está presente em todas as relações humanas, representado pelo esquema a seguir:

Figura 1 - Esquema representativo do ensaio sobre a dádiva (construído pelo autor).

Em referência a aspectos relacionais dos grupos humanos, Geertz (2001) aponta que o objeto da antropologia já não se restringe as sociedades primitivas, mas está presente nas organizações contemporâneas.

Marcel Mauss analisa registros etnográficos sobre as ilhas Trobriandesas, na Melanésia, extraídos de estudos da obra de Malinowski, “Argonautas do Pacífico Ocidental” publicada em 1922, nos quais encontra manifestações de práticas de instituições que se dedicam a dádiva, o que viria a subsidiar seu ensaio sobre a dádiva (SIGAUD, 1999).

Como revolucionário por meio dos seus estudos, Mauss refere certo “direcionamento” dos seus escritos para pesquisadores da antropologia que buscam compreender os modos de vida da humanidade, para um atentar nas implicações em relação ao todo, às simbologias e concepções de vida e de mundo (MAUSS, 2003). Para tanto, os instrumentos propostos requerem um alinhamento e sensibilidade do pesquisador ao empreitar em uma pesquisa de campo com o intuito de conhecer as complexas minúcias dos grupos humanos.

Na transposição do ensaio sobre a dádiva, de sua proposta original para o uso no Brasil dos dias atuais, deve ser considerada a forte influência do catolicismo e das religiões que exercem importantes influências na vida das pessoas. Há uma aproximação ou associação do termo “dádiva” ao uso religioso, o que pode inferir na compreensão das discussões e conceitos manifestos nesta proposta e posteriormente

na tese, portanto, é fundamental atentar ao sentido original da proposta de Mauss e sua referência às trocas sociais estabelecidas pelo homem, uma vez que relações humanas são permeadas por trocas e pela reciprocidade com caráter interpessoal (MARTINS, 2005).

No ensaio sobre a dádiva, a troca é apontada como um denominador comum de um grande número de atividades sociais, aparentemente heterogêneas entre si. O ato da troca envolve três compromissos já mencionados: dar, receber e retribuir. “podendo- se provar que nas coisas trocadas há uma virtude que força as dádivas a circularem, a serem dadas e retribuídas” (MAUSS, 2003). Devem ser desconsideradas as propriedades físicas do objeto ou dos bens trocados, as quais podem ser cargos, privilégios, dignidades, cujo papel sociológico é o mesmo dos bens materiais.

Nos processos relacionais, “nada é dado” bem como “nada é perdido”, mas acontecem de forma a passarem despercebidos pelos processos de cognição e de consciência, distintamente dos acontecimentos no universo dos animais, em que os fatos ocorrem de modo repentino sem que tenham previamente sido premeditados e sem que possam ter um desenrolar progressivo ou evolutivo no campo da complexidade (MAUSS, 2003), ao menos até onde conhecemos deste universo.

Pela perspectiva da dádiva, a ausência da obrigação nos atos de dar, receber ou de retribuir encontra-se no centro das relações, opondo-se ao modelo neoliberalista que vislumbra relações de comércio e de lucro.

Esta concepção de relação interpessoal pode ser vista no fragmento do texto poético que manifesta ideias alusivas ao direito em uma sociedade escandinava primitiva.

Deve-se ser um amigo para seu amigo E retribuir presente por presente;

Deve-se ter riso por riso e fraude por mentira.

Sabes isto, se tens um amigo em quem confias E queres ter um bom resultado,

Convém misturar tua alma a dele e trocar presentes E visitá-lo com frequência.

(MAUSS, 2003, p. 186).

Nesta proposição de relação, pode-se perceber a amizade como algo necessário e que deve ser cultivado para o bem estar do homem sociável, podendo-se considerá- la como um importante elemento presente nas relações oriundas do modo psicossocial de ver o sujeito.

O uso do ensaio sobre o Dom para uma leitura de comportamentos e relações sociais, em especial pelas particularidades do campo da saúde mental, torna-se instigador, uma vez que esta ferramenta trata-se de um instrumento que não viabiliza respostas, mas que tem o potencial de levar o pesquisador a novos questionamentos (CAILLÉ, 2002a).

A capacidade de inquietação e de questionamentos do pesquisador bem como do trabalhador e/ou militante pelo modo psicossocial devem estar sempre aguçados, pois tratar do ser humano em um campo, de certo modo efêmero, em uma conjuntura instável, requer a busca pelo conhecimento e a instrumentalização para a potencialização dos fazeres.

Um importante traço do pensamento de Mauss é o desejo por aprofundar o conhecimento sobre elementos das relações humanas presentes nas sociedades arcaicas como voluntariado, não obrigatoriedade e doações, na busca da compreensão pelo viés do direito, do que movia os sujeitos dessas sociedades a darem e a retribuírem, diante da inexistência de um compromisso com tal retribuição (SIGAUD, 1999).

O desenvolvimento da teoria da dádiva instrumentaliza-se como o estabelecimento de relações não financeiras, o que ocorrera nestas sociedades e que viabilizava as relações [inter]pessoais. Assim, pode-se conceber a dádiva como não pertencente ao nicho do mercado nem das organizações estatais e a nenhum tipo de violência, tendo as ações como geradoras de vínculos sociais (GOUDBOUT, 1998).

Por outro lado, a dádiva é vista como um conjunto de valores que são incorporados ao sujeito coletivo, pois fazem parte da sociedade com a qual ele está inserido (MALINOWSKI, 1961), ou seja, por este ponto de vista pode-se dizer que a dádiva não é livre.

Paradigmaticamente, a dádiva rege premissas como dar, receber e retribuir, de modo que estas se manifestam por meio da liberdade de escolha da pessoa, sem que haja a obrigatoriedade, mas a consciência de que sempre se ganha quando se segue espontaneamente tais premissas para as relações interpessoais (CAILLÉ, 2002b).

Por esta perspectiva, a dádiva está presente em todas as trocas sociais, as quais ocorrem nem sempre por trocas de caráter material ou econômico, mas, sobretudo em caráter simbólico, sem valores utilitaristas. Todas as manifestações como simples risos ou gestos possuem importantes significados que podem traduzir o

modo de vida do grupo, seus valores, suas crenças e como as pessoas se afetam nas suas relações cotidianas, ou seja, como ocorrem as trocas sociais.

Assim, quaisquer manifestações de sentimentos por meio de expressões faciais, choros, risos ou gestos, não devem ser vistos como fenômenos somente fisiológicos ou psicológicos, mas principalmente, como manifestações sociais permeadas por significados intrínsecos ao meio em que são expressos (MAUSS, 2003).

Perceber além das aparências e deslocar-se do psicológico e fisiológico para o social, trata-se de ir mais intimamente ao âmago das relações para entender como se dão os processos relacionais.

Os instrumentos teóricos propostos por Mauss servem como referencial para análise destas relações interpessoais e das relações com os objetos em determinada sociedade, bem como seu sistema de trocas, e ainda, quais trocas que possibilitam às pessoas viverem em sociedade, serem aceitas, estabelecerem relações e viverem dentro de padrões de vida preestabelecidos.

O paradigma da dádiva ou terceiro paradigma é aquele que, na contemporaneidade, viria a proporcionar ferramentas para que se perceba além do dualismo individualismo/holismo, a conjuntura das relações humanas que ligam os indivíduos e os fazem atores sociais (CAILLÉ, 2002a).

O campo psicossocial, em questão neste estudo, requer pensar os modos de produção de vida que decorrem em solidariedade e fortalecimento de relações sociais, cuja busca aqui é presentificada pela compreensão de significados.

O entendimento das redes sociais presentes nesta “produção de vida” a partir da dádiva poderá elucidar como ocorrem as trocas afetivas e simbólicas entre os sujeitos, de modo que a reciprocidade e o engajamento entre as pessoas por meio dos coletivos em torno de objet[iv]os comuns são fatores que devem estar presentes nas relações (MAUSS, 2003).

Divergências e tensionamentos nestes seguimentos são fatores intrinsicamente ligados às relações interpessoais e ao convívio grupal, o que está diretamente relacionado às formas, aos valores e às forças que se presentificam nas construções de cada grupo e que são fundamentais na construção do sujeito.

A apropriação de tais elementos requer uma intimidade ou imersão no campo e, consequentemente, apropriação dos fatos e elementos que fazem parte da vida das pessoas, como ocorreu nos estudos de Malinowski, os quais levaram Mauss a

revolucionar o entendimento de sujeito e coletivo á partir do conhecimento de culturas antigas, apresentando então definição de fato social total (MAUSS, 2003).

Esta ideia parte de um olhar para a complexidade do sujeito social, cuja existência é compreendida à partir de suas relações com outros sujeitos, seja por intermédio de instituições - religiosas, jurídicas, familiares, econômicas ou morais – relacionando-se aos modos de produção e de consumo, pautados nas trocas ou presentes em retribuição a serviços prestados.

Este modo de conceber a pessoa consiste em interligar o social e o individual; de um lado o físico ou fisiológico e de outro o psicológico, devendo-se considerar seu caráter tridimensional - dimensão sociológica com seus aspectos sincrônicos; dimensão histórica ou diacrônica e a dimensão fisiopsicológica (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 24).

Não se consegue sê-lo pela simples reintegração dos aspectos descontínuos das relações (familiar, técnico, econômico, jurídico e religioso), ou pelo simples estudo de um fragmento da vida humana, necessitando-se da real compreensão do todo.

Pela perspectiva da antropologia social pela ótica da etnografia, durante a observação destes aspectos, o observador é parte da sua própria observação, e toda a sociedade que não é a sua, é seu objeto.

Dentro do contexto em que se está inserido como pesquisador e membro “nativo”, Geertz (2008) atenta para a existência de elementos oriundos das relações, os quais ele denomina como símbolos significantes, que se constituem em veículos de comunicação dos processos subjetivos das manifestações humanas.

Tais manifestações são de enorme complexidade e estão imbricadas por tramas ou “feixes de símbolos significantes” e “feixes de feixes de símbolos significantes”, os quais só podem ser descritos ou decodificados por quem os identifica a partir do compreender como é o olhar do nativo, de modo que estas interpelações entre os elementos não serão vistas como um fragmento da totalidade, mas como parte constituinte dela e diretamente relacionada com ela e sem a qual, esta totalidade não existe (GEERTZ, 2008).

Mauss pensa num sujeito total que, para ser conhecido em todas as suas dimensões, tem de ser visto no seu contexto, sendo que a imersão no núcleo sócio cultural e coletivo é o único modo de acesso e compreensão deste sujeito. A compreensão do todo (a sociedade) é maior do que a compreensão de suas partes (o indivíduo) e, para Mauss, a superação do dicotômico sociedade/indivíduo proposto por

Durkhein está na sua percepção de que, na gênese, o individuo com suas singularidades carrega influências da totalidade – sociedade em que está inscrito – o que o levará a reproduzir normativas e valores presentes neste sistema maior (MAUSS, 2003).

O entendimento dos símbolos e seus significados para o sujeito nativo só pode ser compreendido pelo pesquisador se ele estabelecer uma relação de horizontalidade com o nativo. As relações interpessoais e os significados de cada elemento manifesto, seja verbal ou gestual, objetivo ou subjetivo, só podem ser compreendidos pelo pesquisador quando ele estiver vivendo o campo e de posse dos símbolos significantes presentes nele (GEERTZ, 2008).

Numa relação de intimidade com os nativos, conquistada pela aproximação e pelo afeto, construídos no convívio com os sujeitos deste estudo, o pesquisador teve uma percepção dos fatos muito próxima do ponto de vista dos mesmos, nos meandros da sociedade em que vivem e se constituem como sujeitos.

Ao se empoderar e utilizar este sistema de códigos em meio aos nativos, ele terá credibilidade para ser visto como participante da sociedade pesquisada e, a partir deste momento, poderá decifrar ou desvelar as comunicações que de fato ocorrem no campo.

Deste modo, compreender a sociedade está relacionado diretamente com a apropriação do seu simbolismo e com o entendimento de elementos presentes tanto em sociedades do passado como atuais: dar, receber e retribuir, ou seja, a dádiva.