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É inegável: os que convivem com os loucos reais consideram a loucura antes de mais nada como dor e ruína; os que vivem distantes dela — fisicamente ao menos — são os que mantêm acesa a chama de um imaginário ancestral sobre a insensatez. (PELBART, 1989) Resgatando uma experiência de conscientização sobre atenção psicossocial com estudantes da rede básica de ensino de Pelotas, a qual foi mencionada na apresentação, foi selecionado o texto de uma estudante da Educação para Jovens e Adultos (EJA), escrito no primeiro semestre de 2014, cuja compreensão manifestada sobre loucura, apresento como disparador para esta discussão.

O que é loucura?6

Loucura é fazer coisas que outras pessoas normalmente não fariam, por vergonha, por medo, para não se exporem, para se preservarem, para não passarem por loucos. Então, loucura é encontrar com alguém que você não conhece e abrir os braços para receber um abraço (mesmo que não receba). É conversar com os pássaros, com os cães e gatos... Conversar com as plantas, mesmo que isso não pareça “normal”, conversar com Deus em voz alta logo pela manhã, enfim, isso é loucura (Cristiele Lima).

Diante desta manifestação espontânea e poética, podemos iniciar uma reflexão sobre o que se apresenta, por outro lado, como conceito de loucura, e o que podemos observar da produção de loucura, por meio de ferramentas que objetivam manter o “domínio” sobre a sociedade e a exclusão daqueles que possuem algum tipo de patologia ou de sofrimento mental, ditos/vistos como “loucos”.

Por esta razão, teriam a ausência da razão, o que os desqualifica perante as organizações sociais, e, ao longo da história, os conhecemos como indignos de credibilidade devido as suas manifestações não condizentes com o que é esperado de uma pessoa pelas tais “organizações sociais”. Neste modo de pensar, há uma generalização da loucura associada à periculosidade, o que potencializa o estigma sobre a pessoa com sofrimento mental.

A espontaneidade dessa jovem estudante pode levar-nos a pensar sobre manifestações de singularidade, e por isto, apresenta-se aqui a manifestação de uma percepção da subjetividade, uma vez que, por tais capacidades, poderá

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Texto produzido pela estudante Cristiele Lima da escola Dr. Joaquim Assumpção, Pelotas, cuja utilização neste projeto foi autorizada por meio de consentimento assinado pela autora.

expressar suas emoções e sentimentos mais íntimos diante da sua contemplação do mundo e dos elementos que o constituem. Isto (a expressão do íntimo – do pensamento) ocorre, de modo geral, padronizado pelo condicionamento dos sujeitos a um modo de existir e de se manifestar aos outros, que quando escapa ou resiste a este modo operativo, é visto como loucura.

Em seu sentido etnológico, de acordo com Pelbart (1989), o termo loucura traz sua origem do latim, insaniam, e no grego antigo é apresentado como manikê, traduzido para português como insanidade, e respectivamente, delirante ou divinatório, o que era visto uma capacidade de acesso a conhecimentos divinos.

No período medieval a loucura estava relacionada à um fenômeno mágico ou religioso, sendo atribuída a possessão demoníaca, cujo tratamento era pautado em castigos para que os demônios fossem afastados (RESENDE, 2000).

Na obra intitulada “Ordem do discurso”, Foucault (1996) questiona a supremacia do poder biomédico sobre o discurso do “louco” que não é aceito pela organização “sociedade”, de forma que este louco é visto como uma produção social, portanto, derivada dos mecanismos rotulatórios deste poder.

Em Geertz (1978), a doença trata-se de uma construção relativa a questões culturais que são intrínsecas de cada cultura e que interferem diretamente na concepção de manifestações da pessoa, mesmo que não necessariamente biológicas, como patológicas ou doentias.

Para Szasz (1980), a loucura não existe, pois se trata nada mais do que desajustes do indivíduo moderno a um sistema complexo que perpassa sua existencialidade, tangendo diversos aspectos da organização social desse sujeito, podendo ser de ordem biológica, econômica, política ou sociopsicológica.

Para Silveira e Braga (2005), a “loucura” ou “desrazão” na sociedade ocidental moderna é vista como objeto de intervenção científica, de modo que o sofrimento psíquico é denominado como doença mental.

Estas concepções apresentam-nos um aporte teórico para que pensemos a partir da singularidade do indivíduo, de modo que a sua rotulação pode ser vista como um padrão de referência pelo qual “a sociedade” avalia o comportamento deste indivíduo de maneira que, se ele não estiver adaptado aos padrões, estará enquadrado dentro de um estatuto de anormalidade, cuja denominação para suas manifestações subjetivas é de loucura.

A partir de uma perspectiva etnográfica, pode-se encontrar em Frayze-Pereira (1984), a concepção de que a loucura é uma manifestação singular da pessoa, a qual varia de acordo com o contexto sociocultural em que ela está inserida e com suas vivências pessoais que a constituem como sujeito.

Pelo olhar da medicina erudita, há uma produção de doenças a partir da manifestação sintomática, o que muitas vezes, pode rotular o sujeito como incapaz, muito embora não exista um entendimento das potencialidades ou das limitações destes sujeitos. O déficit nesta compreensão faz com que haja a imposição de condições que resultam no sofrimento físico e emocional da pessoa, fenômeno este que vem sendo olhado por estudos antropológicos e sociológicos em torno dos significados das manifestações subjetivas (CANESQUI, 2007).

De acordo com Mauss (1979), tais manifestações sintomáticas ou de singularidade, subjetividade e criatividade, podem ser entendidas como ações simbólicas, sendo avaliadas ou lidas como uma forma de comunicação da pessoa com a sociedade e da sociedade com esta pessoa, de modo que são construídos mecanismos para o convívio social, ou para a aceitação da pessoa adoecida.

Tratam-se mais do que simples comunicações, uma vez que mesmo sendo subjetivas, falam com a força de palavras e são compreendidas pelo grupo social pela necessidade do sujeito manifestar-se e pela necessidade do grupo compreender ou aceitar (MAUSS, 2003), mesmo que haja repúdio e discriminação do outro por tais subjetividades [quando não são compreendidas].

A comunicação do sofrimento humano por meio das ações simbólicas, possui uma força de produzir repulsa e de manifestar sentimentos da pessoa diante das limitações impostas pela patologia, o que, de acordo com Geertz (1978) molda o senso comum de modo a dar origem a conceitos não eruditos ou pré-conceitos sobre a pessoa a partir da sua subjetividade.

Este processo transcende o saber médico, perpassando as fronteiras físicas dos mecanismos de cuidado em saúde mental, abarcando o núcleo da comunidade, na qual circula cotidianamente a pessoa com transtorno, de modo que, para haver a compreensão de como é sua inserção em tal meio social e o que é simbolicamente para ela o “cotidiano” o “estar saudável”, é necessário que se esteja imerso nesta conjuntura.

Desta maneira, será possível traduzir e compreender a concepção da comunidade em relação às manifestações da pessoa, assim como o que é para esta

pessoa estar saudável, vislumbrando-se uma leitura que transcende as limitações do discurso verbal.

Para Ferreira (1994), somente a pessoa acometida pela doença saberá avaliar e manifestar verbalmente seu sofrimento, porém, para a sociedade, há um processo dialógico no qual a leitura das manifestações do subjetivo produz um ajustamento para que aquela pessoa seja aceita e respeitada.

Deste modo, produz-se a aceitação da doença e das diferenças pelo seu enquadramento na normatização, ou seja, ser/estar doente faz parte das normas existenciais do ser humano, muito embora isto produza manifestações que fogem de tais normativas e seja enquadrado como “loucura”.

Ao longo da caminhada como trabalhador da saúde mental e militante pela reforma psiquiátrica, convivendo com pessoas e seus sofrimentos, tem sido possível refletir sobre como tornar mais efetivo o cuidado, e como de fato reabilitar e reinserir na sociedade. Consequentemente, caberia pensar em que condição esta pessoa está “normal”, imersa e aceita pela sua comunidade, não como o louco, mas como cidadã, ou ainda, de que modo ocorre tal pertencimento desta pessoa a sua comunidade, de acordo com as normativas próprias da comunidade.

Um dos maiores desafios da reforma psiquiátrica no Brasil, além de romper com o modelo psiquiatrizado e com a cultura manicomial, refere-se à aceitação da pessoa com sofrimento mental como sujeito que possui direitos e possui deveres, deseja e sonha, como pessoa que pensa e que pode manifestar seus pensamentos e opiniões (BEZERRA, 2007).

Uma vez que existem políticas públicas que asseguram os direitos das pessoas acometidas por transtornos, ocorre-me um questionamento inquietante sobre no que consiste a loucura para a sociedade brasileira atual.

Na publicação do Ministério da Saúde (BRASIL, 2005, p. 47), o fragmento textual pode nos instigar a pensar o “cenário do cuidado a loucura” e como o concebíamos na época em que foi escrito:

Desde o início do debate nacional sobre a nova lei da reforma psiquiátrica, a partir de 1989, instalou-se nos meios profissionais e científicos um importante debate sobre a mudança do modelo assistencial, e mesmo sobre as concepções de loucura, sofrimento mental e métodos terapêuticos.

Ao final dos anos 1980, contava-se com a construção de um novo jeito de conceber a atenção à saúde mental: o paradigma psicossocial, que viria desconstruir

ideias de cuidado ao louco com o assistencialismo e com objetivo de manter a ordem social. A atenção psicossocial contempla a inovação, a reabilitação e a inclusão da pessoa na sociedade.

Dentre os objetivos do cuidado com enfoque no psicossocial, pode-se destacar o de resgatar capacidades que possibilitem ao sujeito gerir sua vida e suas emoções, manifestando equilíbrio entre os distintos aspectos que o constituem como ser social, o que é apontado por Amarante (2007) como manifestação de saúde mental, ao contrário de pensarmos doença mental.

O usuário dos serviços de saúde mental, por intermédio das suas ações, juntamente com familiares e profissionais, vêm cada vez mais conquistando sua autonomia e seu empoderamento no cenário da participação social. Atualmente, esse sujeito é menos visto como paciente, mas como usuário do SUS e como cidadão de direitos e deveres (SANTOS et al, 2000).

A posteriori, como os egressos destes serviços reconstroem seus vínculos e suas redes sociais pós-tratamento? Que vínculos são estes? Que mecanismos são produzidos por estas pessoas para que, de fato, sejam e/ou sintam-se reinseridas socialmente?

Pois bem, quando, de alguma forma se consegue dar credibilidade as manifestações desse “louco” e considerar sua percepção da vida e de mundo, estamos possibilitando a [des]construção de conceitos e a [re]construção de novos conceitos. Des/construindo, o sujeito [re]constrói seus valores e sua postura diante do seu semelhante.

De acordo com Freire (1997), processos educacionais não formais7, dentro de um novo paradigma para conceber o ser humano como sujeito complexo, podem servir-se de ferramentas e de estratégias para resgate de valores e construção de práticas com sensibilidade ao outro.

Em consonância com o modo psicossocial, tias processos se darão com a improvisação da vida cotidiana ou com a vivência de cada momento efêmero, considerando-se o outro como sujeito importante para a sociedade.

Assim, pode-se perceber que o investimento no “novo” e no “desconhecido”, tem viabilizado importantes experiências e saberes para o crescimento e para a

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Promoção de educação por meio do diálogo e da reflexão, com vistas e meios e espaços alternativos de encontros e trocas, através de associações, rádio comunitária, festas, encontros informais, oficinas ou quaisquer outros modos de promoção de diálogo, trocas e afetos.

evolução do ser humano, o que ao longo dos anos de experiência, me permito afirmar que são emancipadoras para as pessoas com as quais venho trabalhando e adquirindo conhecimentos.

Durante o mestrado, pelo Programa de Pós Graduação em Enfermagem (PPGEnf) da UFPEL, entre os anos de 2012 e 2013, foi possível dar continuidade aos estudos sobre saúde mental. Com a maturidade do tempo de trabalho como “oficineiro” e uma análise pelo prisma da teoria sócio histórico de Vygotsky (2007), pude aproximar-me de alguns dos significados de oficinas terapêuticas nos CAPSII de Pelotas para profissionais de saúde (psicólogos, médicos e/ou psiquiatras, enfermeiros e assistentes sociais), cujos resultados consistem na apresentação das suas percepções e significados construídos pelo convívio com este espaço de trabalho (FARIAS, 2013).

Além de revelar informações que foram ao encontro dos pressupostos da pesquisa, o estudo aponta o desconhecimento de alguns profissionais sobre o processo de trabalho do CAPS ou sobre o objetivo das oficinas dentro deste serviço, o que mostra fragilidade na comunicação e na apropriação das equipes de saúde mental para o cuidado de acordo com o modo psicossocial. Para tal, é primordial o conhecimento do modelo de atenção em que o CAPS está inscrito, suas diretrizes e seu modo de trabalho.

Os resultados da presente pesquisa podem nos remeter a exercícios de avaliação do processo de reforma psiquiátrica no Brasil, do funcionamento dos serviços substitutivos e dos modos de operação das oficinas e dos seus respectivos encaminhamentos enquanto instrumento para reabilitação psicossocial.

Com a sustentação teórico/cientifica das oficinas terapêuticas no CAPS, o que foi revisado para este estudo, agregado às vivências de trabalhador em oficinas extra-CAPS8, me vi inquietado diante de questões como: Até que ponto estas oficinas viabilizam uma efetiva reabilitação e emancipação do usuário, uma vez que seu cuidado ainda é regido por uma lógica biomédica?

Mesmo que o usuário esteja em um serviço que prima por promover sua reabilitação, está vinculado a uma instituição de saúde, portanto, estará de fato em um processo de emancipação e/ou de exercício da sua cidadania?

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Termo utilizado para referir-se a atividades desenvolvidas com usuários do CAPS, familiares e comunidade, em espaços fora das suas dependências físicas.

Tais questionamentos se fazem presentes nas minhas reflexões como disparadores para a prospecção de novos estudos que venham revelar significações referentes ao que acontece quando a pessoa rompe seus vínculos de usuário do CAPS.

Assim, ela estabelece novos vínculos e novas relações com outras redes sociais? De que modo isto ocorre? Neste sentido, cabe pensar na potencialidade da reabilitação quando alinhada com a lógica do cuidado em liberdade, o que requer conhecimento por parte dos profissionais, não somente da área específica de formação, mas principalmente, da lógica de cuidado pelo modo psicossocial.

Neste momento, o entrelaçamento de questões relacionadas a reforma psiquiátrica, as oficinas terapêuticas e aos avanços no cuidado em saúde mental torna-se inevitável, uma vez que a orquestração é complexa para pensar um sistema de altíssima complexidade com implicações múltiplas para avançarmos ou retrocedermos na humanização das relações.

No Brasil atual, mesmo depois de 15 anos de existência da lei 10.216, sabe- se que o CAPS, os leitos em hospitais gerais e a própria RAPS com seus dispositivos ainda coexistem com os hospitais psiquiátricos, havendo justificativas de falta de estrutura ou despreparo das cidades para tal coexistência, e um importante descompasso entre a legislação vigente e as práticas de cuidado em saúde mental.

Diversas são as razões, dentre as quais se destacam a gestão dos municípios, organização estrutural para gerenciamento de recursos financeiros e humanos, mapeamento das redes, funcionamento da intersetorialidade, contribuindo para que os processos de consolidação da reforma no Brasil sejam mais morosos e, consequentemente, ainda ocorra tal coexistência entre modos antagônicos de olhar para o sujeito.

Falar de reforma psiquiátrica, mais que primar pelo cuidado em liberdade, é buscar a emancipação da pessoa, proporcionando mecanismos para que ela conquiste liberdade e autonomia. Deste modo, a autonomia refere-se justamente a possibilidades para que o sujeito alcance a oportunidade de conviver socialmente como cidadão e seja respeitado justamente pela condição de cidadão, independentemente das suas particularidades, sendo, portanto um sujeito social9.

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Neste caso, o termo sujeito social é utilizado para referir-se ao alcance da condição de conviver socialmente, interagindo com outras pessoas, no bairro ou comunidade, acessando direitos e cumprindo deveres (exemplo: pagar contas, se manter, cumprir com responsabilidades).

Em um ensaio publicado por Marx em 1844, o conceito de emancipação faz referencia à libertação do Estado em relação a qualquer crença ou ideologia religiosa (judaísmo ou cristianismo), resultando no que hoje chamamos de estado laico (MARX, 1991), sustentando também uma proposta de emancipação da humanidade, o que seria a libertação do ser humano de todo o tipo de domínio ou autoridade.

Para Martins (1993), emancipação do homem está ligada a autonomia e a liberdade, de modo que não há emancipação sem que o homem seja livre e autônomo.

De acordo com França (2011), a emancipação é “conscientização”, “racionalidade” e a autonomia é sua condição necessária, de modo que, para a reabilitação psicossocial, o sujeito necessita de tal autonomia.

Em suma, os autores convergem na ideia de que emancipação refere-se à possibilidade da pessoa gerenciar suas ações e suas atitudes, buscando a realização pessoal e desfrutando da liberdade para tomar suas decisões com base nas normas que regem a sociedade na qual está inserido.

Neste sentido, a questão presente nesta reflexão suscita o desejo de conhecer a realidade dos sujeitos e suas perspectivas e pensamento em relação à reabilitação e a autonomia.

Considerando a discriminação e até massacres com tortura e abandono de pessoas com transtornos mentais ao longo da história do Brasil, em comparação ao curto período da reforma psiquiátrica, deve-se valorizar a série de lutas e reconstruções ideológicas e técnicas ocorridas em pouco mais de 30 anos com vistas ao cuidado.

Através da contextualização histórica do cuidado em saúde mental desde a criação do modelo asilar no Brasil, da sua substituição pelo modo psicossocial e da contribuição de oficinas terapêuticas neste novo cenário, este estudo busca suprir uma lacuna neste campo diante da escassez de estudos acerca da vida e do cotidiano de pessoas após sua passagem pelo CAPS.

Quando passam a conviver em um cotidiano que possibilita afetos e trocas, as pessoas tendem a se inserir na sociedade e interagir com outras pessoas, fortalecendo os aspectos saudáveis e aumentando os vínculos e relações interpessoais.