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Os fazeres cotidianos e as habilidades para tal, bem como para a expressão pelas artes, a prática desportiva, a produção de artesanato, dentre outras produções humanas, nem sempre foram vistos como algo relevante na vida das pessoas, muito menos pensado como possibilidade para cuidado em saúde.

A utilização de oficinas laborais com o fim de ocupar pessoas com transtornos mentais teve seu início e reconhecimento em uma forma diferenciada do que hoje chamamos de oficinas terapêuticas, pois se introduziram inicialmente em instituições psiquiátricas, e geralmente, eram ligadas a trabalhos com o propósito de disciplinar a pessoa com transtorno mental à ordem dos manicômios (MENDONÇA, 2005).

Para Pinel, esta pessoa era considerada como alienada, por isto deveria estar submetida a meios coercitivos, intuindo restringir sua liberdade devido a condição alienatória da doença (AMARANTE, 2007). Acreditava-se que a loucura era causada pelo convívio social, por esse motivo, a restrição do convívio seria benéfica para a recuperação da sanidade do sujeito.

Durante as décadas de 1920 e 1930, o médico sanitarista Osório César, uma referência na utilização de “atividades” como terapia, buscou realizar um trabalho em São Paulo voltado a pessoas com transtornos mentais, centrado no desenvolvimento da expressão espontânea e no encorajamento da livre criação, partindo de uma abordagem baseada no estímulo, no incentivo e nas orientações técnicas, proporcionada por meio de “oficinas” (FERRAZ, 1998).

Em 1946, no Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, a psiquiatra Nise da Silveira (1905 - 1999) propôs o uso de atividades diversas, dentre estas, as artísticas, como recurso terapêutico, aproximando-se assim do que hoje chamamos de oficina terapêutica (CERQUEIRA, 1973; MELO, 2001).

Como estudiosa das mandalas de Jung e da sua relevância enquanto potencial auto curativo, Nise implantou ateliês de pintura e modelagem (MELLO, 2009), buscando melhores resultados para a reabilitação dos seus pacientes. Entretanto, somente no Brasil dos anos 1950/60, é que o potencial curativo da arte passou a ser reconhecido, atentando-se para a arte como vivência e campo ampliado de experimentação através da prática em oficinas (MACAGNAN, 2010).

Pelo fato de ser uma mulher, romper com a lógica hegemônica do manicômio e da biomedicina propondo novas práticas para a reabilitação, Nise da Silveira pode ser considerada uma das pioneiras da reforma brasileira por meio de sua resistência e empreendimento na humanização do cuidado. Cabe também honrosamente atribuir-lhe a credibilização do uso da arte como terapia em saúde mental e difusão de importantes resultados na reabilitação.

Com a aprovação da lei 9.8675 de 1999, a qual dispõe sobre a criação e o funcionamento de cooperativas sociais com a finalidade de

com a

“finalidade de inserir as pessoas em desvantagem no mercado econômico, por meio do trabalho, fundamentam-se no interesse geral da comunidade em promover a pessoa humana e a integração social dos cidadãos” (BRASIL, 1999).

Pessoas que necessitam de acompanhamento psicossocial e/ou com déficit cognitivo passaram a acessar meios de geração de renda, ampliando consequentemente seu convívio social. Deste modo, os CAPS também passaram a ser incentivados a oferecerem oficinas terapêuticas e ampliarem as propostas que já existiam, com uma perspectiva de reabilitação e empoderamento do sujeito.

Para Minayo (2007), o trabalho pode ser considerado como meio para articulação do campo de interesses, das necessidades e dos desejos humanos. Com a evolução dos serviços de saúde e do modo psicossocial, pensar trabalho é pensar em múltiplas possibilidades de interação entre as pessoas e no exercício das relações.

Nesse sentido, as oficinas constituem-se em importantes espaços para a reabilitação de pessoas com transtornos mentais, nos quais, ações operacionais do CAPS podem ser concretizadas (ALMEIDA, 2004).

Para este processo efetivamente ocorrer, é necessária a disponibilização de meios pelos quais o usuário possa se expressar, elaborar seus conteúdos e avançar no processo de auto percepção e autoconhecimento (LUNARDI FILHO et al, 2001; BECKER; BARRETO, 2005).

A presença do oficineiro ou terapeuta neste espaço é fundamental, porém, o processo de reabilitação é interno e individual de cada sujeito, de modo que o

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Lei criada pelo deputado federal Paulo Delgado, o qual foi considerado um dos maiores militantes brasileiros pela reforma psiquiátrica. Por meio de seus projetos que atualmente são leis, o país conta com importantes marcos na evolução da reforma e na implantação e implementação de serviços substitutivos.

profissional passa a ser um incentivador do processo de cura e mediador da produção de afetos que emergem nos espaços de oficinas (BENITES, 2004).

A oficina terapêutica pode também ser considerada como espaço no qual as pessoas podem agir livremente na construção de uma identidade coletiva e na manifestação individual dos seus sentimentos e desorganizações, na busca de organizá-las por meio de um processo educativo produzido pelas experiências, buscando, assim, envolver o trabalho, a geração de renda e a autonomia da pessoa (BRASIL, 2004).

Podem ser desenvolvidos trabalhos com o uso da arte na perspectiva de compreender o sujeito na sua integralidade, considerando, portanto, suas expressões subjetivas (MIRANDA, 2011). A música é vista como um dos aspectos da arte, ou linguagem artística, a qual tem proporcionado importantes contribuições para o bem-estar, a socialização, o resgate da dignidade e a integração entre as pessoas, estimulando sua expressividade e criatividade (TORCHI; BARBOSA, 2006; SILVA; FARIAS, 2013).

No modo psicossocial, a convivência, as relações interpessoais e os afetos são fatores primordiais para o processo terapêutico, de modo que as pessoas podem se comunicar e expressar seus sentimentos, vivenciar a cooperação e o cuidado (NASCIMENTO; PITIA, 2010).

O Ministério da Saúde (BRASIL, 2004) orienta os serviços para a disponibilização de oficinas terapêuticas, de modo que elas podem operar nas modalidades de acordo com a tabela a seguir:

Tabela 1 – Modalidades de oficinas terapêuticas

Expressivas Geradoras de renda Alfabetização

Objetivam o desenvolvimento de atividades relacionadas à expressão, provenientes das artes, da educação física e aquelas que proporcionam a expressão verbal e/ou vocal, com a finalidade de estimular as funções cognitivas da pessoa. Abarca todas as atividades que promovem a expressividade da pessoa.

Buscam promover a geração de trabalho e renda aos usuários a partir da valorização das suas habilidades laborais, podendo incluir atividades que venham a decorrer na sua [re]inserção na sociedade por meio das suas produções.

Possuem o objetivo de proporcionar um espaço para o aprendizado e/ou prática da escrita e da leitura àquelas pessoas que não frequentaram a escola devido a alguma limitação ou que, por alguma razão, não tiveram acesso ao ambiente escolar.

Na constituição atual, as oficinas apresentam uma configuração que abarca atividades diversificadas voltadas ao lazer e recreação, esportes, cultura e distintas linguagens artísticas e técnicas artesanais, buscando contemplar as normativas do Ministério da Saúde.

Enquanto campo de intervenção psicossocial, a oficina torna-se objeto de diversas áreas do saber como Psicologia, Serviço Social, Terapia Ocupacional, Enfermagem, Música, Artes Plásticas, Agronomia, Educação, Moda e Educação Física (LAPPANN-BOTTI, 2004), dentre inúmeras possibilidades de atividades que possam ser desenvolvidas terapeuticamente no cenário de cada serviço.

O uso das diversas linguagens artísticas viabiliza espaços de expressão, lazer e promoção do bem estar, evidenciando assim, o quanto a atividade artística realizada nas oficinas é benéfica para a saúde mental (SILVA; FARIAS, 2013).

Dessa forma, é fundamental considerar o uso de distintas oficinas terapêuticas para o cuidado em saúde mental, uma vez que se constituem em uma potente ferramenta para a atenção psicossocial, sendo consideradas como diferencial nos serviços substitutivos em relação a clinica ambulatorial.

Estes espaços podem estimular a manifestação de subjetividade, o empoderamento e a interlocução com o território, de modo que viabiliza múltiplas trocas entre os seus protagonistas, constituindo-se numa potente ferramenta para a interação entre as pessoas (TEIXEIRA JUNIOR; KANTORSKI; OLSCHOWSKY, 2009).

O ser humano se constitui como ser social a partir da interação com outras pessoas, por meio de trocas simbólicas e afetivas, o que, para Saraceno (1997), é de primordial exercício para que pessoas acometidas pelo sofrimento mental possam recuperar sua sociabilidade e reestabelecer seus laços afetivos de forma harmônica e saudável.

A reabilitação por meio das oficinas pode viabilizar a reinserção da pessoa ao convívio em sociedade, reavendo seus direitos e deveres e estimulando o exercício da produção de benefícios comuns e o acesso aos meios de comunicação, o que contribui para a desmistificação do estigma da “loucura” (VALLADARES et al, 2003).

A oficina permite a manifestação de uma gama de significações expressas pelos sujeitos que só são possíveis pelas características especificas que este mecanismo disponibiliza. Dentre estas, acolher e proporcionar espaço para

expressão, negociações e fala, potencializa o processo de reabilitação (SARACENO, 2001; AZEVEDO; MIRANDA, 2011).

Estas características são avaliadas pelos usuários e também por familiares como potentes mecanismos que tem contribuído significativamente para melhorias na vida das pessoas (LAPPANN-BOTTI, 2004; AZEVEDO; MIRANDA, 2011).

Tais benefícios transcendem a permanência do usuário no CAPS, transformando-se em conquistas e valores que são incorporados na vida das pessoas, mesmo após sua alta do serviço (SILVA; FARIAS, 2013).

A reinserção no mercado de trabalho, a retomada do convívio social e do prestigio perante a sociedade são alguns dos resultados esperados pelo modo psicossocial para a vida das pessoas (TAVARES, 2003), mesmo que estas necessitem de algum acompanhamento no curso de sua vida devido à cronicidade de uma patologia mental. O que vale ser considerado de fato, e isto sim infere pensar reabilitação, é o processo de construção de possibilidades de vida para pessoas com sofrimento psíquico (BABINSKI; HIRDES, 2004).

Deste modo, pensar reabilitação é planejar e organizar, juntamente com o usuário, sua trajetória no CAPS e suas perspectivas para quando estiver fora dele, considerando suas capacidades de gerir sua vida e de conviver com o mundo ao seu redor.

Uma das potencialidades terapêuticas das oficinas reside na viabilização de relações interpessoais e do exercício de planejamento e organização para que as atividades possam ocorrer de modo equânime e harmônico.

Estes elementos são trabalhados por meio de propostas voltadas aos coletivos, seja pelas oficinas ofertadas pelo CAPS, pontos de cultura, associações e outros dispositivos que componham a RAPS, buscando comtemplar o sujeito com suas potencialidades e considerando sua integralidade enquanto ser social.

Na visão de familiares, as oficinas terapêuticas representam instrumentos importantes de ressocialização e reabilitação psicossocial (AZEVEDO; MIRANDA, 2011). Para usuários, as oficinas são avaliadas como espaços que viabilizam convivência, expressão, lazer e promoção de bem estar além de gerarem entusiasmo e novas perspectivas para a vida fora do CAPS (SILVA; FARIAS, 2013).

Considerando o principal aspecto deste modo de atenção – a liberdade de ir e vir – trabalhar cotidianamente com a perspectiva de ressocializar a pessoa é investir em uma reabilitação para a vida como ela é, com seus sabores e dissabores,

preparando-a para a frustração e resiliência frente aos acontecimentos da vida social real.

As lutas, os compromissos e responsabilidades da cidadania são construídos durante o processo de preparação do sujeito para ampliação de seus vínculos e espaços de circulação social.

Considerando o fato histórico ainda presente na vida de muitas pessoas como marcas pelo sofrimento na clausura nos manicômios, observa-se que com a reforma psiquiátrica e a mudança no modo de cuidado em saúde mental, estas pessoas acessam um cuidado ampliado e o respeito como seres humanos.

Neste sentido, importantes avanços foram conquistados com muitas lutas, estudos e sofrimentos pelas perdas ao longo dos anos de manicômio. As leis reformistas, os serviços regulamentados pelo paradigma psicossocial e o empoderamento de sujeitos na sociedade implicam no inconsciente coletivo e regulamentam as práticas de cuidado, sendo determinantes para a desconstrução do preconceito em torno do estigma que “patologizou” e condenou os “diferentes” instituindo a ideia de loucura.