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3 SÍNTESE TEÓRICA

3.3 O SEGUNDO WITTGENSTEIN

3.3.3 Ensinando ostensivamente

Vimos acima que, se buscarmos saber qual critério é seguro para uma fórmula do significante, devemos recordar a maneira como as palavras nos foram ensinadas. Um critério

de como o professor teve em mente a fórmula é o fato de ele dominar uma técnica determinada da matéria que ensina e de dar a outro uma lição habitual sobre o desenvolvimento de uma série. Uma circunstância desse tipo surge quando nos perguntamos como aprendemos ou fomos ensinados a usar determinada fórmula, e não a adivinhação de um processo que teria ocorrido na mente do professor. Desta forma, podemos descobrir não que o professor nos levou a adivinhar o que se passou em sua mente ao nos apresentar a fórmula, mas que fomos educados para executar essas atividades, para usar essas palavras ao executá-las e para assim reagir as palavras de outras pessoas.

A criança aprende a acreditar num grande número de coisas. Isto é, aprende a atuar de acordo com essas convicções. Pouco a pouco forma-se um sistema daquilo em que acredito e, nesse sistema, algumas coisas permanecem inabalavelmente firmes, enquanto algumas outras são mais ou menos susceptíveis de alteração. Aquilo que permanece firme não o é assim por ser intrinsecamente óbvio ou convincente; antes aquilo que o rodeia é que lhe dá consistência (WITTGENSTEIN, 1969, p. 53).

Eduardo Simões, em seu livro Wittgenstein e o Problema da Verdade, faz uma reflexão interessante sobre o conceito de ostensão em Santo Agostinho. O significado de uma palavra é aquilo que se obtém mediante referência a algum objeto: aponta-se para o objeto e ele é nomeado. Trata-se de um modo primitivo da práxis linguística cujo aprendizado se dá por ostensão: ensina-se apontando para o objeto designado por uma palavra e aprende-se ao compreender quais coisas estão sendo designadas e por quais palavras. Essa postura, segundo o autor das Investigações, acaba por negligenciar a distinção das espécies de palavras. Quem descreve o aprendizado da linguagem dessa forma pensa, primeiramente, em substantivos, somente em segundo plano em nomes de certas atividades e qualidades e nas restantes espécies de palavras como algo que se irá encontrar. Nas palavras de Simões:

Assim, a relação que fundamenta a compreensão da linguagem é uma relação de quem fala e de quem ouve não diretamente com as palavras, mas com as coisas que elas significam – conhecer uma palavra é conhecer o objeto que ela nomeia. Nesse caso, a definição ostensiva funcionaria como uma regra gramatical fixa para definir o significado de todas as palavras da linguagem. Poderíamos dizer que “Santo Agostinho descreve a aprendizagem da linguagem humana como uma criança que chegasse a um país estrangeiro e não entendesse a língua do país; isto é: como se ela já fosse capaz de pensar, mas não ainda de falar. E „pensar‟ significaria algo como: falar para si mesmo” (SIMÕES, 2008, p. 133).

Ao ensinarmos uma palavra como “amarelo”, apontando repetidamente para uma mancha amarela e pronunciando a palavra, este exercício nos fará associar uma imagem amarela, coisas amarelas, com a palavra “amarela”. Uma ordem como procurar uma bola amarela dentro de uma caixa cheia de bolas coloridas, a palavra amarelo pode produzir uma

imagem, ou uma sensação de reconhecimento quando o olhar da pessoa incidiu sobre a bola amarela. Se o sentido da palavra “amarelo” nos for ensinado por recurso a uma espécie de definição ostensiva, uma regra para o uso da palavra, este ensino pode ser considerado como uma repetição, levando-nos a associar uma imagem amarela, ou obetos amarelos, com a palavra “amarelo”, ou ele pode ter-nos proporcionado uma regra que está envolvida nos processos de compreensão, execução de uma ordem, etc., significando que a expressão desta regra faz parte destes processos (WITTGENSTEIN, 1992).

A interação entre adulto e criança, na situação de aprendizagem ostensiva, fornece as condições necessárias para o surgimento da linguagem e do pensamento proposicional, criando um espaço no qual pode haver êxito e fracasso. O choro é o primeiro passo em direção a uma linguagem quando o chorar é uma forma ou outra de alívio ou satisfação. Sons mais específicos, imitados ou não, são rapidamente associados a prazeres mais específicos. Um passo maior é dado quando a criança nota que outros também fazem sons distintos no mesmo momento em que ela, criança, está tendo as experiências provocadas pelos seus próprios sons voluntários. Aqui, uso seria significado se a intenção ou o significado fossem descritos. Para o adulto, esses sons têm um significado, talvez como sentença de uma palavra só. O adulto se vê como ensinando através de ostensão: “como”, “vermelho”, “bola”, “mamãe”, “leite”, “não”. Isso ainda é algo bastante simples, pois nada mais está necessariamente envolvido além de respostas verbais, cada vez mais condicionadas ao que o professor pensa como sendo circunstâncias apropriadas e que a criança, com muita frequência, acha satisfatórias (DAVIDSON, 2002).

Isso leva Wittgenstein a chamar de ensino ostensivo a técnica de mostrar objetos seguidos de seus nomes. No processo de ensino ostensivo das palavras, chamamos a atenção de alguém que esteja aprendendo uma nova língua para o objeto a ser ensinado e, em seguida, pronunciando a palavra referente a esse objeto nessa língua. Se isso acontecer, pode-se dizer que a finalidade da palavra teve êxito. Wittgenstein deixa claro que esse processo se afasta da elucidação ostensiva ou definição, pois, na verdade, a pessoa que está aprendendo a língua ainda não pode fazer perguntas sobre tais denominações. No processo de ensino da linguagem para as crianças ocorre o mesmo, elas são educadas para reagir de determinadas maneiras, conforme escutam as palavras dos adultos.

Mesmo que a crença “existe objetos físicos” seja essencial para nos movermos dentro de um determinado jogo de linguagem, essa crença não nos foi ensinada explicitamente e não raciocinamos para chegar até ela. Se olharmos para nosso aprendizado, para quando começamos a fazer parte de um sistema linguístico, dificilmente veremos uma mãe dar o seguinte ensinamento a seu filho “Hoje vou te ensinar uma coisa muito importante: existem objetos físicos! Este livro, esta cadeira

e esta mamadeira são objetos físicos. Assim sendo, você pode pegá-los”! o ensino geralmente se dá de uma forma totalmente inversa, da seguinte maneira: “Filho! Pegue o livro pra mamãe, sente na cadeira e tome sua mamadeira”. Em todas essas sentenças está pressuposta a existência de objetos físicos porém, essas sentenças implícitas no nosso atuar linguístico formam aos poucos nossa visão do mundo, nossa maneira de nos comunicar (SPICA, 2012, p. 86).

Na qualidade de uma resposta definitiva à pergunta pela denominação, a definição ostensiva deveria ser considerada como um jogo de linguagem peculiar, análogo a “pregar uma etiqueta numa coisa”. Mas como nem sempre somos treinados a etiquetar coisas com palavras – e, quando isto ocorre, podemos também ser treinados a fazer usos muito diferentes dessas “etiquetas” – Wittgenstein prefere adotar o “ensino ostensivo” como expediente descritivo da aquisição da linguagem. Assim, ela poderia, inclusive, ser vista como “preparação” para o uso de uma palavra. No entanto, ela só poderia elucidar o uso – o significado – de uma palavra quando já estivesse claro o papel que ela deveria desempenhar no jogo de linguagem. Isso quer dizer que a inserção de uma palavra num jogo de linguagem determinado é gramaticalmente prioritária à sua “definição ostensiva”, que, além de insuficiente pode, às vezes, se tornar inadequada para ilustrar usos possíveis daquela palavra. Como a simples definição ostensiva da “rainha do xadrez” (quando se aponta para esta peça e se pronuncia o seu nome) só elucida o uso dessa peça quando a sua função dentro do jogo já está clara para o aprendiz (FAUSTINO, 1995).

Já frisamos acima que a definição ostensiva tem uma relação muito próxima ao conceito de jogo de linguagem pois, desde crianças, nossos pais e professores nos estimulam a perguntar como as coisas são nomeadas, isso se constata nas Investigações:

Pode-se, pois, definir um nome próprio, uma palavra para cor, um nome de matéria, uma palavra para número, o nome de um ponto cardeal etc.,ostensivamente. A definição do número dois “isto se chama dois” – enquanto se mostra duas nozes – é perfeitamente exata. – Mas, como se pode definir o dois assim? Aquele q que se dá a definição não sabe então, o que se quer chamar com “dois”, suporá que você chama de “dois” este grupo de nozes! – pode supor tal coisa; mas talvez não o suponha. Poderia também, inversamente, se eu quiser atribuir a esse grupo de nozes um nome, confundi-lo com um nome para número. E do mesmo modo quando elucido um nome próprio ostensivamente, poderia confundi-lo com um nome de cor, uma designação de raça, até com o nome de um ponto cardeal. Isto é, a definição ostensiva pode ser interpretada em cada caso como tal e diferente (WITTGESNTEIN, 1999, p. 37).

O método da definição ostensiva é utilizado quando apontamos e pronunciamos palavras como “isto é”. Algumas destas palavras seriam nomes próprios dos objetos, outras, nomes genéricos (como mesa, cadeira, etc.), outras ainda, nomes de cores, nome de formas etc. Se os objetos que nos rodeiam tivessem etiquetas, com palavras escritas para guiar nossos

discursos sobre eles, a nossa ideia é que, quando apontássemos e a outra pessoa entendesse a qual objetos nos referimos, ela conheça o uso da palavra. Ora, poderíamos facilmente imaginar que ficaríamos impressionados com o mero caso de vermos uma etiqueta numa coisa, esquecendo que o que torna esta etiqueta importante é seu uso (WITTGENSTEIN, 1992).

A origem e a forma primitiva do jogo de linguagem é uma reação. É só a partir disto que formas complexas podem desenvolver-se. Quando uma criança chora alto quando se fere, faz careta, berra, geme, tenta amenizar a dor do membro ferido. Uma criança que quer seu urso de pelúcia estende as mãos e chora, nós lhe ensinamos o uso de “Eu quero”. Nós a confortamos. Algo semelhante vale para outros termos psicológicos, embora não para todos, nem para as formas mais desenvolvidas de estados e condições psicológicas. As raízes do jogo de linguagem estão aqui, e não na observação do privado. Não tem cabimento perguntar à criança, neste caso, como ela sabe que se machucou, ou se ela tem certeza disso.

Wittgenstein observou que são necessárias outras regras na linguagem além daquelas que são comunicadas ao aprendiz numa definição ostensiva. Para a linguagem cotidiana das Investigações, a definição ostensiva bem sucedida poderia dar ao receptor a regra para o uso da palavra a ser definida ou, pelo menos, uma parte importante dessa regra. Se esse uso é governado por uma regra e se esta pode ser comunicada ao aprendiz numa definição ostensiva, essa definição pode também servir como uma maneira de atribuir significado. Contudo, Wittgenstein considerava o papel das definições ostensivas como o único modo não verbal de dar ao aprendiz certas regras fundamentais que regem a palavra a ser aprendida. Assim, são necessárias outras regras na linguagem além daquelas que são comunicadas ao aprendiz numa definição ostensiva (HINTIKKA, 1994).

O “ensino ostensivo” é o ensino de uma regra de uso da linguagem e não o ensino de um “significado”: é o ensino de uma regra para a produção, reprodução ou invenção de “significados”. Tomando como paradigma o ensino das práticas normativas ordinárias, a reflexão wittgensteiniana estabelece que o aprendizado das regras não implica o conhecimento prévio de todas as circunstâncias futuras sãs suas aplicações, mas apenas o conhecimento do campo de aplicação dessas regras, um campo no qual estas regras – e não outras – terão validade. Pois uma coisa é aprender as regras que determinam o movimento correto das peças de xadrez, outra é prescrever todos os lances possíveis com as respectivas peças do jogo. Determinadas regras definem e permitem identificar um tipo de jogo: identifica-se um jogo com um jogo de futebol pelas regras que são seguidas. Mas nenhum jogo de futebol é igual outro (FAUSTINO, 1995, p. 108).

Vimos, até agora, que a relação entre o ensino ostensivo e o ensino de regras para nossa linguagem são complementares. Se formos ensinados a jogar xadrez, poderão ensinar-

nos regras, se depois jogarmos xadrez. O ensino de uma palavra, na visão de Wittgenstein, seria comparável ao ensino do uso de uma peça num jogo de xadrez: assim como não aprendemos as funções da peça denominada “o rei do xadrez” simplesmente ao nos ser mostrada a figura do rei, mas ao nos serem mostrados os descritos lances válidos com esta figura no interior do jogo, estas regras estarão necessariamente envolvidas no jogo. A regra que nos foi ensinada é, subsequentemente, aplicada apenas na medida em que está envolvida na aplicação, ela não age à distância. Não aprendemos o desempenho gramatical de uma palavra em um jogo de linguagem pela simples identificação do nome com algum referente, mas pelo exemplo de seu emprego em circunstâncias variadas. A partir de agora nos ateremos a uma breve discussão sobre o que significa seguir uma regra no pensamento de Wittgenstein.