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Rorty e o fim da filosofia

3 SÍNTESE TEÓRICA

3.4 PRAGMATISMO E LINGUAGEM

3.4.3 Rorty e o fim da filosofia

Richard Rorty (1931 – 2007) pode ser apresentado como um discípulo de John Dewey. Ele também recebeu influências diretas das ideias de Charles Sanders Peirce e não deixou de admirar a obra de William James. Nascido em Nova York, teve contato desde cedo com as ideias do pragmatismo, pois seus pais eram militantes socialistas e simpatizantes das preocupações de Dewey. Rorty orgulha-se do pragmatismo enquanto contribuição originariamente americana para a filosofia mundial. Embora alguns filósofos rotulem seu trabalho como neopragmatismo, ele próprio não o vê assim. Para Rorty, seu pensamento está em relação de continuidade, e não de ruptura com seus antecessores. Para ele, a diferença entre sua filosofia e a dos pioneiros do pragmatismo é apenas a de que, atualmente, a linguagem tem mais importância na discussão filosófica ocidental.

Agora, a linguagem substitui a mente enquanto algo que supostamente se encontra sobre e em contraposição à “realidade”. Assim, a discussão deslocou-se de pergunta sobre se a realidade material é “determinada da mente” para a questão sobre que tipos de asserções verdadeiras, se alguma houver, encontram-se em relações representacionais para com itens não-linguisticos. Uma discussão acerca do realismo gira agora apenas em torno de se as asserções podem corresponder aos “fatos da questão”, ou se as asserções da matemática e da ética têm também uma tal possibilidade (RORTY, 1996, p.15)

Segundo Rorty, Kant substituiu a “filosofia da compreensão humana do celebrado sr. Locke” pelo “tema mítico da psicologia transcendental”. Kant pôs a filosofia “na trilha segura de uma ciência”, colocando o espaço externo dentro do espaço interno (o espaço da atividade constituinte do ego transcendental) e, então, afirmando a certeza cartesiana sobre o interno para as leis do que, previamente, se pensava ser o externo. Ele reconciliou, assim, a afirmação cartesiana de que apenas podemos ter certeza sobre nossas ideias com o fato de que já tínhamos certeza (um conhecimento a priori) sobre o que parecia não serem ideias. A revolução copernicana foi baseada na noção de que apenas podemos saber a priori sobre objetos se os “constituímos” e Kant nunca foi perturbado pela questão de como poderíamos ter conhecimento apodítico dessas “atividades constitutivas”, pois se supõe que o acesso privilegiado cartesiano cuidaria disso. (RORTY, 1994).

O anti-representacionalista está inteiramente pronto a admitir que nossa linguagem, como nossos corpos, foi formada pela ambiência na qual vivemos. Portanto, ele ou ela insistem nessa posição – a posição segundo a qual nossa mente ou nossa linguagem não poderiam (como o cético representacionista teme) esta nem um pouco mais “fora do contato com a realidade” do que nossos corpos podem estar. O que ele ou ela negam é que seja proveitoso para a explicação selecionar e escolher algo entre os conteúdos de nossas mente ou de nossa linguagem, bem como dizer que este ou aquele item “corresponde a” ou “representa” o ambiente de uma forma que algum outro item não faz. De um ponto de vista anti-representacionista, uma coisa é dizer que um polegar articulável, ou a capacidade de usar a palavra “átomo” como os físicos o fazem, é proveitosa para lidar com a ambiência. Um outra coisa é tentar explicar essa capacidade pela referencia a noções representacionalistas, tais como a noção de que a realidade referida pelo “quark” estava “determinada” antes da palavra “quark” vir a tona (e isso enquanto, por exemplo, a realidade referida pela admissão da fundamentação só se afirmou no momento em que emergiu a prática social relevante) (RORTY, 1997, p. 18).

Para Rorty, a noção kantiana de “condições de possibilidade” invoca toda e qualquer tentativa que viesse a lhe permitir menosprezar a ciência natural e a história e preserva um método e um tópico que fez com que a filosofia permanecesse uma disciplina basilar. Para Kant, era suficiente que a “experiência possível” abarcasse os domínios dos cientistas e dos historiadores. A “experiência possível” de Kant moldava os domínios cujos limites a filosofia deveria estabelecer. A estratégia kantiana para alcançar esse escape era substituir uma divindade atemporal por um sujeito atemporal da experiência. Enquanto a física e a história encontram condições para a existência, descobrindo atualidades temporalmente antecedentes, a filosofia só pode adquirir autonomia se escapar do tempo, se ela escapar da atualidade para a possibilidade (RORTY, 1999).

Na obra A Filosofia e o Espelho da Natureza, Rorty deixa claro que a tradição metafísica teve como base a descrição de como os céus e a terra são reunidos. Ela não tinha nenhum desejo de distinguir o que estava fazendo de alguma coisa chamada “ciência”. Foi depois que a batalha contra os inquisidores foi ganha que a separação das ciências pode surgir. Até que os poderes da igreja sobre a ciência perdesse forças, as energias dos homens em que hoje pensamos como “filósofos” eram dirigidas no sentido de demarcar suas atividades em relação à religião. Mas foi depois de Kant que a moderna distinção entre filosofia e ciência entrou em vigor. Kant conseguiu transformar a antiga noção da filosofia, a metafísica, em rainha das ciências, por causa de sua preocupação com o que era mais universal e menos material. A consequente demarcação da filosofia em relação à ciência foi tornada possível pela noção de que o cerne da filosofia era a “teoria do conhecimento”, uma teoria distinta das ciências, porque era seu fundamento. Sem a ideia de teoria do conhecimento seria difícil imaginar o papel da filosofia na era das ciências modernas. Rorty argumenta:

Desde Kant, o principal emprego de tais teorias tem sido apoiar intuições relativas à distinção subjetivo-subjetivo – sejam tentativas de mostrar que nada além da ciência natural conta como “objetivo”, ou tentativas de aplicar esse termo honorífico á moral, ou a política, ou a poemas. A metafísica, como tentativa de descobrir sobre o que se pode ser objetivo, é forçada a perguntar sobre as similaridades e diferenças entre, por exemplo, a descoberta (como resultado de finalmente resolver um dilema moral bastante antigo) de um novo artigo da lei Moral, a descoberta (pelos matemáticos) de um novo tipo de número ou de um novo conjunto de espaços, a descoberta da indeterminação quântica e a descoberta de que o gato esta sobre o capacho. A última descoberta – um point d´appui simples para as noções de “contato com a realidade‟, “verdade como correspondência” e “precisão de representação” – é o padrão contra o qual as outras são comparadas em termos de objetividade (RORTY, 1994, p. 329).

O que torna a linguagem algo especial é que ela nos permite entrar em uma comunidade cujos membros trocam justificações e asserções com outros membros desta comunidade. A linguagem em nada se relaciona com a mudança da qualidade de nossas experiências, tão pouco ela abre novos panoramas da consciência ou qualquer outro tipo de alteração interna. Precisamos antes voltar para fora do que para dentro, antes para o contexto social da justificação que para as relações entre representações internas. Como a linguagem é um Espelho da natureza “público”, enquanto o pensamento é algo “privado”, parece que deveríamos ser capazes de reformular grande quantidade de perguntas e respostas cartesianas e kantianas em termos linguísticos, e dessa forma reabilitar uma porção de temas filosóficos (RORTY, 1994).

Rorty acredita que o caminho tradicional da filosofia, ao insistir na importância da questão da verdade, cedo ou tarde, desemboca no dilema de ter de responder se a verdade é descoberta ou inventada. Esta questão limita nossos movimentos no interior do campo traçado por Platão. O pensamento grego e o platonismo dizem que o conjunto dos candidatos a valor de verdade já estão dados e todas as razões que podem ser fornecidas para que eles sejam eleitos ou não eleitos, também estão já postas. Assim, filosofia, entendida como metafísica, é um discurso que não pode ser nem refutado nem confirmado, um saber teoricamente irrelevante. Por definição, diz respeito ao mundo e contém declarações que não podem, no limite, ser reduzidas a relatos de experiências. Segundo Rorty, se passarmos a ver as crenças como hábitos de ação e não mais como representação, será possível deixar de lado a busca por um fundamento seguro para verdade (GHIRALDELLI, 1999).

Dizer que os filósofos sonham que haja apenas uma metáfora verdadeira é dizer que eles sonham erradicar não apenas a distinção entre o literal e o metafórico, mas também a distinção entre a linguagem do erro e a linguagem da verdade, a linguagem da aparência e a linguagem da realidade – isto é, a linguagem de seus oponentes e a sua própria linguagem. Eles gostariam de mostrar que só há realmente

uma linguagem e que todas as outras (pseudo) linguagens carecem de alguma propriedade necessária para que elas sejam “significativas”, “inteligíveis”, “completas” ou “adequadas”. É essencial para a filosofia, se ela for definida por esse sonho, ansiar por alguma declaração que tenha a seguinte forma: “Nenhuma expressão linguística é inteligível a não ser que...” (A não ser que, por exemplo, seja traduzível na linguagem de uma ciência unificada, ou corte a realidade em suas juntas, ou exponha sua forma lógica, ou satisfaça os critérios de verificabilidade, ou que esteja na linguagem em que adão nomeou as bestas, ou qualquer outra coisa do gênero) (RORTY, 1999, p. 123).

A filosofia antimetafísica de Rorty oferece instruções sobre como lidar com padrões conceituais recebidos, condenando-os pela falácia idealista de generalização exagerada ou de falsa abstração. Novos paradigmas filosóficos têm de lidar com contingências percebidas, não simplesmente com os novos tipos de contingências, sentidas na vida cotidiana, mas com as contingências de uma natureza e de uma história objetivadas. As grandes mudanças de paradigmas, da ontologia para o mentalismo, e, de novo, da filosofia centrada no sujeito para a filosofia linguística, decorre de um tipo de resposta desconstrutiva e reconstrutiva. A desconstrução de hipostasias pretende fazer justiça às contingências anteriormente reprimidas. Entendidas em traços gerais, elas são inspiradas pelas pressuposições nominalistas do empirismo clássico e do historicismo/pragmatismo, respectivamente (SOUZA, 2005).

Todos concordam sobre como avaliar tudo o que todos os demais dizem. Mas geralmente, o discurso normal é aquele que é conduzido dentro de um conjunto combinado de convenções sobre o que conta como uma contribuição relevante, o que conta como resposta a uma pergunta, o que conta como ter um bom argumento para aquela resposta ou uma boa crítica a mesma. O discurso anormal é o que acontece quando se junta ao discurso alguém que seja ignorante a respeito dessas convenções ou as coloque de lado (RORTY, 1994, p. 316).

Para Rorty, justificar é mostrar como são usados certos jogos de linguagem, qual é o contexto apropriado e qual a finalidade específica de certo jogo. As situações e os modos de emprego são diversos, variados, apropriados ou não; eles se reportam à circunstâncias especiais. Assim, conhecer não é algo mental, racional, mas séries de procedimentos que se dão em certas relações entre uma pessoa e as proposições que ela emprega. Os pioneiros do pragmatismo mostram que vem de Platão a nociva identificação do estar presente de algo (physis) para alguém, como sendo a ideia, ou seja, a realidade, a essência de algo deriva da presença da coisa, que é vista. Esse olho físico é a metáfora do olho interno, da mente que representa, nesta mesma trilha. Assim, o pragmatismo de Rorty é extremamente aberto, contrário a qualquer tipo de dogmatismo e cético quanto qualquer tipo de sabedoria pronta, cânones inamovíveis, autoridade política, intelectual ou filosófica (ARAÚJO, 2008).

Ninguém pode estabelecer nenhum limite a priori para o que a mudança na opinião filosófica pode produzir, não mais do que para o que a mudança na opinião cientifica ou política pode fazer. Pensar que alguém pode conhecer tais limites é tão ruim quanto pensar que, agora que aprendemos que a tradição ontológica exauriu suas possibilidades, nós precisamos nos apressar para reformular todas as coisas, tornar todas as coisas novas. Mudanças nas perspectivas filosóficas não são nem intrinsecamente centrais, nem intrinsecamente marginais – seus resultados são tão imprevisíveis quanto as mudanças em qualquer outra área da cultura (RORTY, 1999, p.19).

Uma gramática dos jogos de linguagem entrelaça símbolos, ações e expressões; ela fixa os esquemas de apreensão da “mundividência” e da interação. A realidade constitui-se na moldura de uma forma vital exercitada por grupos que se comunicam, e organizada nos termos da linguagem ordinária. Assim, no contexto do agir inerente à comunicação a linguagem e a experiência não se apresentam sob as condições transcendentais da ação enquanto tal. As regras gramaticais definem o terreno de uma fragmentada intersubjetividade entre indivíduos socializados. Nesse sentido, é real aquilo que pode ser experimentado, de acordo com a interpretação de uma simbólica vigente, podemos conceber a realidade sob o ponto de vista da manipulação técnica possível, e aprender a experiência operacional correspondente como sendo um caso limite (HABERMAS, 1982).

No pensamento de Rorty, ver a filosofia como a busca pela verdade, ou seja, a verdade sobre os termos que proporcionam a comensuração última para todas as inquirições e atividades humanas é ver os seres humanos antes como objetos que como sujeitos. Assim, entender como um método que nos permita ver o sujeito que descreve como, ele próprio, um tipo de objeto descrito é entender que todas as descrições possíveis podem ser tornadas comensuráveis com a ajuda de um único vocabulário descritivo. Com essa noção de descrição universal poderíamos identificar a essência do homem. Mas essa tarefa só leva o filósofo ao vácuo.

Se encararmos o conhecer não como tendo uma essência a ser descrita por cientistas ou filósofos, mas antes como um direito, pelos padrões correntes, de acreditar, então estaremos bem no caminho de ver a conversação como o contexto último dentro do qual o conhecimento deve ser compreendido. Nosso foco muda da relação entre seres humanos e os objetos d sua inquirição para a relação entre padrões alternativos de justificação, e daí para as mudanças efetivas naqueles padrões que firmam a história intelectual (RORTY, 1994, p. 382).

Dizer que verdadeiro e correto são questões de práticas sociais pode parecer condenar-nos a um relativismo. Mas a imagem de uma disciplina – filosofia – que irá selecionar um dado conjunto de visões como mais “racionais” que as alternativas, por apelo a

algo que forma matriz neutra permanentemente para toda a inquirição e toda a história, torna possível pensar que tal relativismo deve excluir automaticamente as teorias de coerência, de justificação intelectual e prática. Pois a visão de que não há matriz neutra permanente, segundo a qual os dramas da inquirição e da história são encenados, tem um corolário de que a crítica da cultura de alguém só pode ser fragmentada e parcial – nunca “por referência a padrões eternos”. Isso ameaça a imagem neokantiana da relação da filosofia com a ciência e a cultura. Uma razão por que os filósofos profissionais se retraem frente à afirmação de que o conhecimento pode não ter fundamentos ou direitos e deveres com base ontológica, é que o tipo de behaviorismo que dispensa fundamento está bastante inclinado a dispensar a filosofia. (RORTY, 1994).

O que fica claro no pensamento de Rorty é que não existem razões para descrevermos a linguagem como algo institucional. Aprendemos uma linguagem no momento que fizemos parte de uma cultura. Porém isso não acontece como imaginam alguns linguistas psicólogos ou filósofos que defendem a ideia que a linguagem é algo acabado. O que se deve levar a sério ao tratarmos da linguagem são os elementos comuns nas trocas de comunicação no dia a dia.

O pensamento filosófico, uma vez reduzido à epistemologia, teria a pretensão de estabelecer uma teoria para descrever como o homem descobre ou produz o saber, o que nada seria senão a forma de redução da filosofia ao esquema sujeito-objeto, cujo resultado nada seria a não ser a reprodução do esquema manipulativo. A cultura, uma vez transformada em cultura científica, forçaria todos as valorizarem o saber metodológico sobre outro tipo de saber. Os procedimentos ganhariam força maior que as metas. A vida cotidiana, então conduzida pela tecnologia, terminaria por ver tudo em termos de “recurso” – o que “rende” e o que “não rende”. Nós mesmos nos veríamos assim. Pela educação principalmente, procuraríamos nos transformar em elementos mais habilidosos para servir como recurso – “recursos humanos” -, tais como os objetos ao nosso redor. Nosso propósito seria o de nos fazer passíveis de troca. Um propósito que pudesse ser chamado especial, isto é, imanente ás entidades do mundo, desapareceria uma vez que nós e todas as coisas do mundo simplesmente teríamos passado a pertencer ao campo da circulação dos objetos, imposta pela tecnologia (GHIRALDELLI, 2012, p.49).

Rorty propõe redescrever a filosofia, adequando-a a outras narrativas, mais condizentes com nosso tempo. A atividade redescritiva, nos daria o rumo de um novo tipo de filosofia, voltada para a colaboração da transformação de nossas conversações e, portanto, um instrumento mais explicitamente consciente em favor da mudança de nossas opiniões e modos de pensar. Caso o fundacionismo viesse a desaparecer, então a filosofia poderia se ver livre das vanguardas, que sempre reclamaram para si mesmas. A filosofia não teria mais razão para se circunscrever à atividade de encontrar fundamentos últimos, de caráter metafísico ou epistemológico, para toda a cultura humana. Assim, cada filósofo poderia intervir nas narrativas

comuns, as pessoas, as situações, as práticas de governo ou de amor, os livros e os filmes, os problemas diários de nossa sociedade. Em relativismo, objetivismo e verdade, Rorty diz:

Se nós pudéssemos nos libertar da noção de que há um caminho científico especial para lidar com ideias “filosóficas” em geral (uma noção que Dewey deu o melhor de si para desaprovar), então nós teríamos muito menos problemas em pensar na cultura inteira, da física a poética, como uma única atividade, contínua, sem emendas, na qual as divisões seriam meramente institucionais e pedagógicas. Isso nos preveniria de fazer pergunta sobre onde se deve traças a linha entre “verdade” e “conforto”, um tema moral (RORTY, 1997, p. 107).