• Nenhum resultado encontrado

O ensino de Ciências e os ambientes de heteronomia e autonomia moral: uma síntese

Justapondo-se o ensino de Ciências e a Educação Moral como desen- volvimento, com bases nas discussões feitas até aqui, em síntese, podemos construir dois grupos antagônicos (que chamaremos de ambientes) com al- guns de seus respectivos princípios, elementos e estratégias. Em compara- ção com o ambiente de heteronomia moral, o ambiente de autonomia moral apresenta uma constituição teórico-prática mais favorável: em prol tanto do ponto de vista do desenvolvimento moral, que é base para o processo de emancipação, quanto para a compreensão, análise crítica e construção do conhecimento científi co. Vejamos.

a) Ambiente de heteronomia moral: ausência de diálogo e de

cooperação; autoritarismo; imposições coercitivas intencionais ou não; transmissão de conteúdos acabados e de uma visão de ciência como produto e não como processo; conhecimentos divergentes do

científi co previamente rechaçados ou ignorados com desdém; uso do conhecimento científi co como submissão; uso de argumentos com pretensões de poder no lugar das pretensões de validade; despreocu- pação com a forma ou estilo de comunicação (transmissão não inten- cional de reforço acerca de crenças equivocadas sobre a ciência); não criação intencional de debates simetricamente participativos e com objetivos de entendimento; despreocupação com a criação de situa- ções de estímulo que visem aos níveis mais altos de raciocínio moral; estratégias que não contemplam o trabalho coletivo e trocas de ideias.

b) Ambiente de autonomia moral: presença frequente de diálogo e

cooperação; ausência de autoritarismo e de imposições coercitivas di- versas; discussão de conteúdos sem o reforço das visões equivocadas sobre a ciência; não ignorar ou rechaçar previamente e sem discus- são nenhum tipo de conhecimento que se apresente divergente do científi co; uso de argumentos com pretensões de validade no lugar de pretensões de poder; preocupação e autorregulação com a forma ou estilo de comunicação (não transmissão de crenças equivocadas sobre a ciência); criação intencional de debates simetricamente par- ticipativos e objetivos de entendimento; criação de situações de estí- mulo que visem aos níveis mais altos de raciocínio moral; estratégias diversas que contemplem o trabalho coletivo com trocas de ideias.

Considerações fi nais

“Um docente que não dá valor ao modo como ensina nem ao conteúdo ensinado talvez devesse realizar outro tipo de trabalho.”

(Mario Sergio Cortilla, apud Cortella; La Taille, 2005, p.80)

O ensino de Ciências na escola básica não é para formar especialistas, mas para aprendizagens gerais que incluem também o desenvolvimento moral.

Tomando-se por base as teorias da Educação Moral como desenvolvi- mento, encontramos diferentes e contrárias possibilidades para o ensino de Ciências. Da mesma forma, encontramos no ensino de Ciências as mesmas possibilidades correspondentes para o desenvolvimento moral.

Se por um lado os aspectos do ambiente heterônomo são obstáculos para a aprendizagem cognitiva e evolução do raciocínio moral, ainda reforçam a visão mística de ciência e de compreensões mais abalizadas sobre os dife- rentes tipos de conhecimento existentes. Por outro lado, os aspectos do am- biente de autonomia moral, além de se harmonizarem com o ensino desmis- tifi cado do conhecimento científi co, também ampliam as possibilidades de uma aprendizagem mais consciente e crítica das Ciências. Uma consciência crítica e racional que pode atuar sobre o conhecimento científi co, a fi m de melhor entendê-lo no seu processo de construção e diferenciá-lo dos demais tipos de conhecimentos, porém sem excluí-los a priori e sem a obrigação de aceitar esse ou aquele por algum tipo de imposição externa (coerção).

Por fi m, ressaltamos que o espaço limitado deste artigo nos fez optar por alguns recortes que impediram maiores detalhes ou aprofundamentos sobre o tema. Dessa forma, apresentamos as seguintes informações com- plementares, a fi m de dirimir possíveis dúvidas dos leitores sobre os nossos propósitos: i) distanciamento das ideias apresentadas neste trabalho com algum tipo de relativismo ou liberalismo irrefl etido (laissez-faire); ii) ideias não desvinculadas das preocupações com o conteúdo científi co; iii) nenhu- ma proposta de fazer outra defesa que não da racionalidade da Ciência e da relevância dos conhecimentos científi cos; iv) defesa de uma Educação Mo- ral em prol do ensino de Ciências baseada em princípios racionais, laicos e de emancipação.

Referências bibliográfi cas

ALVES-MAZZOTTI, A. J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências

naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira/

Thomson, 2004.

CORTELLA, M. S.; LA TAILLE, Y. Nos labirintos da moral. Campinas: Papi- rus, 2005.

DURKHEIM, E. La educación moral. Madrid: Editorial Trotta, 2002.

. La enseñanza de la moral en la escuela primária. Reis – Revista Española de

Investigaciones Sociológicas, n.90, p.275-287, abr./jun. 2000.

FLECHA, R.; GÓMEZ, J.; PUIGVERT, L. Teoría sociológica contemporánea. Barcelona: Paidós, p.125-160, 2001.

FREITAG, B. A questão da moralidade: da razão prática de Kant à ética discursi- va de Habermas. Tempo social – Rev. Sociol. USP, v.1, n.2, p.7-44, 1989.

. Itinerários de Antígona: a questão da moralidade. Campinas: Papirus, 1992. HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2003.

. Comentários à ética do discurso. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

. Teoria de la acción comunicativa I: racionalidad de la acción y racionaliza- ción social. Madri: Taurus, 1987a.

. Teoria de la acción comunicativa II: crítica de la razón funcionalista. Madri: Taurus, 1987b.

KOHLBERG, L. Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Editorial Desclée de Brauwer, 1992.

KOHLBERG, L.; MAYER, R. El desarrollo del educando como fi nalidad de la

educación. Valencia: Vadell Hermanos, 1984.

LEMKE, J. L. Aprender a hablar ciencia: lenguaje, aprendizaje y valores. Barcelo- na/Buenos Aires/México: Paidós, 1997.

. Investigar para el futuro de la educación científi ca: nuevas formas de apren- der, nuevas formas de vivir. Enseñanza de las Ciencias, v.24, n.1, p.5-12, 2006. LOURENÇO, O. M. Psicologia de desenvolvimento moral: teoria, dados e implica-

ções. 3. ed., Coimbra: Almedina, 2002.

PIAGET, J. O juízo moral na criança. São Paulo: Summus, 1994.