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Ensino de Língua Portuguesa e de produção de textos no Brasil

Para compreender e analisar o ensino de Língua Portuguesa no Brasil, do modo como o conhecemos hoje, é preciso retomar o processo histórico envolvido na disciplinarização desse saber.

A colonização portuguesa no Brasil fez com que o país, durante muito tempo, fosse influenciado, inclusive no ensino, pelas determinações que vinham da Europa. Um marco significativo do que consideramos hoje ensino de Língua Portuguesa foi a Reforma Pombalina. Antes dela, em meados do século XVIII, os meninos da elite iam à escola para serem

41A respeito do processo de disciplinarização, Chervel (1990, p. 184) afirma: “Essa problemática distingue-se de todas as que

foram levantadas até o presente na história do ensino. Longe de ligar a história da escola ou do sistema escolar às categorias externas, ela se dedica a encontrar na própria escola o princípio de uma investigação e de uma descrição histórica específica. Sua justificativa resulta da consideração da própria natureza da escola. Se o papel da escola é o de ensinar e, de um modo geral, o de ‘educar’ , como não ver que a história da função educacional e docente deve constituir o pivô ou o núcleo da história de ensino? Desde que se compreenda em toda a sua amplitude a noção de disciplina, desde que se reconheça que uma disciplina escolar comporta não somente as práticas docentes da aula, mas também as grandes finalidades que presidiram sua constituição e o fenômeno de aculturação da massa que ela determina, então a história das disciplinas escolares pode desempenhar um papel importante não somente na história da educação mas na história cultural.”. Nesse contexto, é sempre importante considerar a produção acadêmica da área, as políticas públicas e as práticas escolares, que podem convergir total ou parcialmente, ainda que com defasagens de tempo, ou podem se contradizer. Não raro também, as práticas escolares tendem a juntar concepções e métodos tidos como contraditórios ou pertencentes a paradigmas divergentes.

alfabetizados, mas a língua portuguesa não havia sido institucionalizada ainda como disciplina escolar, como nos conta Soares (2002, p. 144-145):

No Brasil, a determinação, que não dava lugar à língua portuguesa no currículo, parece ter sido facilmente assimilada, obedecida sem resistência desde o início do século XVI até a primeira metade do século XVIII: em primeiro lugar, os poucos que se escolarizavam durante todo esse período pertenciam a camadas privilegiadas, cujo interesse e objetivo era seguir o modelo educacional da época, que se fundava na aprendizagem do latim através do latim, fugindo à tradição dos sistemas pedagógicos de então atribuir às línguas nacionais estatuto de disciplina curricular; em segundo lugar, o português, como se disse acima, não era a língua dominante no intercâmbio social, não havendo, por isso, razão ou motivação para instituí-lo em disciplina curricular; e em terceiro lugar, embora a primeira gramática da língua portuguesa tenha sido publicada já em 1536 (a Gramática de Fernão de Oliveira), e várias gramáticas e ortografias tenham sido produzidas no correr do século XVII, o português ainda não se constituíra em área de conhecimento em condições de gerar uma disciplina curricular. Ou seja: não havia nem condições internas ao próprio conteúdo – que ainda não se configurara como área de estudos – nem condições externas a ele – seu uso apenas secundário no intercurso verbal, a precariedade de seu estatuto escrito, na incipiente sociedade brasileira, enfim, seu pouco valor como bem cultural – para que o português adquirisse estatuto de disciplina curricular.

Coube ao Marquês de Pombal, pelas reformas que implantou no ensino de Portugal e suas colônias nos anos 50 do século XVIII, intervir nas condições externas acima mencionadas.

Após as reformas pombalinas e até meados do século XIX, o ensino de português no Brasil foi realizado em torno de duas grandes áreas: gramática e retórica. Ao final do Império, criou-se, por força de decreto, a disciplina de Português, embora a mudança na nomeação não tenha significado alterações significativas no ensino. Sobre isso, Soares (2002, p. 149) esclarece que

(...) a disciplina Português manteve, de certa forma, até os anos 40 do século XX, a tradição da gramática, da retórica e da poética. E manteve essa tradição porque, fundamentalmente, continuaram a ser os mesmos aqueles a quem a escola servia: os “filhos-família”, como os denomina Houaiss (1985: 94), os grupos social e economicamente privilegiados, únicos a ter acesso à escola, a quem continuavam a ser úteis e necessárias as mesmas aprendizagens, naturalmente adaptadas às características e exigências culturais que se foram progressivamente impondo às camadas favorecidas da sociedade.

É válido salientar que o processo de escolarização do Português no país, como o conhecemos hoje, é recente e começou no século XIX. As grandes mudanças de público e a hibridização da escola, que deixou de ser apenas para os filhos da elite, passando a receber também os filhos dos trabalhadores, começou a ocorrer apenas em meados de 1960. A entrada desse novo público na escola ocorreu em função do crescimento econômico e da exigência do

mercado de mão de obra mais qualificada. Com isso, fez-se necessária a mudança no conteúdo e na estruturação das salas de aula para atender à nova demanda social (SOARES, 2002). Vale ressaltar que o processo ocorreu sem o planejamento adequado e sem que se atendesse às demandas de professores qualificados para os novos contextos e que isso contribuiu para a deterioração do ensino e desvalorização docente no Brasil. Como consequência, houve a contratação de professores em larga escala, a redução de salários e a ignorância das novas necessidades no planejamento para uma nova demanda.

E foi nesse contexto complexo de expansão das matrículas na escola básica que a disciplina de Português foi consolidada, com conteúdos mais articulados, se comparados aos anteriores. SOARES (2002, p. 152) explica que

(...) nos anos 1950 e 1960, ou se estuda a gramática a partir do texto ou se estuda o texto com instrumentos que a gramática oferece. Além disso, os manuais didáticos passam a incluir exercícios - de vocabulário, de interpretação, de redação, de gramática.

Nos anos 60 do século XX, os livros didáticos se constituíam de tópicos gramaticais e textos. Além disso, a abordagem de Português como disciplina escolarizada passou a ter uma relação mais estreita com os aspectos e domínios relacionados à comunicação.

Uma década depois, o ensino de Português, assim como de outros saberes curriculares, foi afetado de modo significativo pela Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 5.692/71) que, diferentemente de trazer mudanças paulatinamente, como antes, apresentou-as bruscamente. No contexto do golpe militar de 1964 e a consequente LDB de 1971, o ensino de Português passou a ser norteado principalmente pela gramática normativa. A escola “tinha como preocupação a formação moral e espiritual dos alunos, uma das funções básicas do percurso educacional” (MARCUSCHI, 2010, p. 68). A intervenção do Estado no currículo, em meados de 1970, fez com que a disciplina passasse a ser chamada de “Comunicação e Expressão” (SOARES, 2002; PIETRI, 2012; ROJO, 2003), e tivesse como objetivos de ensino derivados da Teoria da Comunicação. Nesse momento, também em função de uma nova expansão da escola, um processo de reorganização se iniciou: passaram a ser formados nas camadas mais pobres da população leitores e produtores de textos. Não havia, porém, preocupação com a criticidade desses sujeitos, até porque a censura ainda reinava. Por isso, os anos de 1950, 1960 e 1970 e os redirecionamentos que tiveram lugar nessas décadas são fundamentais para compreender os desdobramentos para o contexto atual do ensino de Português e, mais especificamente, para o ensino de produção de texto.

Marcuschi (2010, p. 66) caracteriza assim o período anterior à década de 1980:

Do início do século XX, até o final dos anos 1980, as aulas direcionadas para o ensino da língua portuguesa dedicavam, em maior ou menor grau, parte expressiva do seu tempo a questões voltadas para a escrita correta, compreendida como a escrita que primava pela observância das regras da gramática normativa e da ortografia. Desse modo, o investimento pedagógico na realização de análises morfológica e sintática de palavras e de frases isoladas, associado à leitura de textos literários clássicos – num primeiro momento, de textos provenientes da esfera midiática; num segundo momento, de textos da literatura infanto-juvenil; bem como, num terceiro momento, de textos escritos pelo próprio autor do livro didático -, era tido como necessário e suficiente à capacitação dos alunos para a escrita. Afinal, os textos eram vistos como um agrupamento de palavras e frases, e, neste sentido, para se chegar à elaboração textual, bastava que os alunos aprendessem a escrever e a juntar frases gramaticalmente corretas.

Como já mencionado, no período anterior à década de 1980, o ensino de Português era denominado Comunicação e Expressão. A mudança fomentou um olhar diferenciado para a disciplina e a compreensão do ensino de Português. Nesse movimento, mudou-se também o lugar da gramática tradicional.

Mais tarde, já durante a abertura política, surgiram propostas de reformulação para o ensino de língua por parte dos linguistas (PIETRI, 2012). A produção científica e as especificidades da área da linguagem começaram a se refletir no ensino da disciplina, que voltaria a ser chamada pelo nome anterior, Português. Isso fez com que o ensino de Português recebesse o impacto dos conhecimentos produzidos na academia naquele momento e, assim, os parâmetros tradicionais ligados à literatura e à escrita foram redefinidos: a linguagem passou a ser compreendida de modo mais amplo e vinculada à enunciação e aos usos sociais. No entanto, a concepção mais reflexiva da linguagem proposta pela Linguística causou polêmica, pois a maioria das pessoas não estava inserida nas discussões acerca da linguagem tomada como ciência. Sobre isso, Pietri (2012, p. 19) esclarece:

Nesse mesmo momento histórico, produziram-se discussões, em meio acadêmico, sobre como os estudos linguísticos poderiam contribuir para o tratamento de problemas de caráter social, no país, num momento em que se atribuía à Linguística a responsabilidade pelos problemas no ensino de língua portuguesa que então começavam a ser diagnosticados: ainda que sua contribuição para o ensino fosse apenas projetada naquele momento, os estudos da linguagem seriam acusados, pelos que defendiam a necessidade de zelar pelo idioma, de serem permissivos demais em relação aos usos da linguagem.

A reflexão de Pietri (2012) evidencia o contexto de mudança de paradigma no currículo, que trouxe outras implicações às compreensões e ao modo como socialmente as ideias foram

entendidas de maneira reducionista, no caso do ensino de Português. Isso se constata, por exemplo, ao se entender variação linguística como permissividade. Para além das mudanças de nomenclatura do componente curricular Língua Portuguesa, é preciso salientar a complexidade que envolve o currículo e as mudanças de percepção ao propor qualquer medida que desestabilize ou conteste o status quo.

O livro didático para o ensino de Português, como mostram Bunzen e Rojo (2005), nasce entre as décadas de 1950 e 1960, mas configura-se como o conhecemos hoje a partir da década de 1970. Para Bunzen (2011), em 1971 são definidas pela LDB de então as disciplinas obrigatórias, porém sem instruções metodológicas determinadas para cada disciplina, pois a responsabilidade de construção dos programas de cada série cabia à escola. Nesse sentido, Bunzen (2011, p. 902) explicita:

Se a ênfase é no processo de comunicação e expressão, valoriza-se a comunicação oral em seus usos mais cotidianos e a leitura como interpretação dos textos verbais e não verbais, diversificando certamente os textos que podem circular na esfera escolar e as metodologias de ensino.

Com a mudança de encaminhamentos e avanços na área dos estudos na linguagem, houve também uma maior divulgação, nas décadas de 1970 e 1980, das críticas feitas por pesquisadores acerca das práticas escolares. Por isso, a chegada cada vez maior de pesquisas sobre o ensino de língua materna fez com que os textos da academia, as leis, as diretrizes e os livros didáticos também reconfigurassem os parâmetros naquele momento (BUNZEN, 2011). Essa reconfiguração se estende nesse momento para a compreensão dos textos na sala de aula, como salienta Bunzen (2011, p. 903):

Vários documentos oficiais, como mostram as análises de Geraldi, Silva e Fiad (1996), respondem aos questionamentos da academia priorizando no discurso oficial uma concepção sociointeracionista de língua(gem), atrelada a uma noção de texto como ponto de partida para o trabalho na escola, especialmente nas práticas de leitura, produção de texto e análise linguística. Além disso, a discussão do (não) ensino de gramática e do tratamento da variação linguística fecha o círculo de propostas de mudança em contraposição sempre a algo chamado de “ensino tradicional”.

Como consequência do processo de ampliação dos currículos, no final dos anos 198042,

a academia estava debruçada sobre as críticas às propostas dos livros didáticos de língua

42Segundo Marinho (2007), apud Pietri (2018, p. 524): “(...) os documentos de orientação curricular produzidos nos anos 1980

se constituíram nas relações entre os discursos de inovação, fundamentados nos conhecimentos de vanguarda produzidos pelos estudos linguísticos, e nas ações de produção curricular, implementadas pelas instâncias oficiais responsáveis pela gestão da educação públicas”.

materna e a expansão das propostas curriculares para o ensino de língua. Como consequência das políticas públicas federais para o contexto mais recente, tem-se, como define Bunzen (2011, p. 904-905),

(...) a reformulação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Ambas são políticas de governo dos anos 90, especialmente da gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que procuraram dar continuidade a três processos inter-relacionados: (i) avaliação e distribuição do livro didático, no âmbito de uma política pública e linguística de incentivo à leitura; (ii) normatização/legitimação do ensino que acompanha o surgimento de propostas curriculares oficiais que procuram explicitar diretrizes específicas para cada nível de ensino e disciplina escolar; (iii) estabelecimento sistemático de avaliações em rede da educação básica. De forma geral, podemos dizer que tanto o PNLD quando a publicação dos PCN dialogam com as ações variadas da Lei de Diretrizes e Bases de Educação Nacional (LDB-96), além de representarem políticas públicas e documentos oficiais em que se procurou “sintetizar” as discussões (algumas consensuais outras nem tanto) sobre o ensino de língua materna ocorridas, entre os anos 70 e 90, tanto na esfera acadêmica quanto nas propostas curriculares estaduais.

A concepção de ensino de Língua Portuguesa passou por vários momentos ao longo do tempo e sofreu diversas influências, seja pelas diferentes aberturas políticas, seja pela maior presença dos estudos acadêmicos nos direcionamentos do ensino de Português. Por isso, as discussões realizadas ao longo do trabalho levam em consideração o processo histórico e suas reverberações no ensino de língua materna no Brasil.

Passaremos, na próxima seção, a discorrer sobre as questões teórico-metodológicas envolvidas no ensino-aprendizagem da produção de texto.

2.2 Contribuições teórico-metodológicas para o ensino-aprendizagem da produção de