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DEMARCAÇÃO CONCEITUAL AO ENSINO DE MATRIZ ENERGÉTICA NA EDUCAÇÃO CTS

6. Ciências com

2.5 Ensino de matriz energética na educação CTS crítica

É consenso que a exploração de matéria-prima (incluindo água e outros recursos naturais) e a degradação de energia na sociedade nunca estiveram aos patamares registrados na atualidade; e isso se esbarra com limites no modelo econômico de produção e consumo que acaba, muitas vezes, gerando injustiças sociais e desrespeito para com o meio ambiente (RIST, 2012). Embora os afetos do “desenvolvimento sustentável” queiram manter tudo como está, Benasayag e del Rey (2012, p. 300) alertam que um desafio primordial para nossa época consiste em construir uma nova relação entre a humanidade e o meio ambiente, nova relação

capaz de pensar a realidade em termos de ecossistema, logo, incluindo o homem – ao contrário de uma natureza que deva “servir” ao homem.

As tentativas de negar a contradição entre o crescimento contínuo na economia e a conservação da natureza fazem com que muitas reivindicações atuais sejam quase esquizofrênicas, pois ao mesmo tempo em que se pedem mais e mais crescimento, se pedem também para salvar o planeta. (CECHIN, 2010, p. 178).

Diante disso, no lugar da tentativa de alcançar a sustentabilidade socioambiental unicamente pela via tecnológica, Veiga e Issberner (2012) sugerem que estabilizar o consumo é condição sine qua non para essa busca. Igualmente, cabe à sociedade mobilizar-se em prol desse desafio, em resposta às negligências de políticas públicas.

Seria mesmo o “desenvolvimento” a panaceia capaz de solucionar todos os problemas do mundo, ou seria, afinal, uma trapaça do sistema para estender a hegemonia do capitalismo para todo o planeta, transformando a natureza e relações sociais em mercadorias? Era mesmo preciso fazer com que as leis de mercado prevalecessem para garantir a felicidade para todos, tornando pago aquilo que já fora gratuito: o uso da terra ou da água, ou a troca de dias de trabalho no campo? Qual foi o verdadeiro benefício, para nós, de ter entrado no jogo do crescimento econômico, quando substituímos o cuidado dos avós com seus netos por creches, quando pagamos desempregados para levar o cachorro para passear, quando privatizamos praias antes acessíveis a todos, quando formamos – nas universidades – estudantes que sabem “se vender” para seus futuros empregadores? A lista seria longa, se quiséssemos enumerar os efeitos da mutação social ocasionada por esta obrigação do “desenvolvimento”. Não restam dúvidas de que alguns lucraram (muito) com isso. Mas o que perdemos coletivamente? (RIST, 2012, p. 135-136).

É nesse contexto que julga-se tão relevante um ensino de matriz energética nas disciplinas de Ciências Naturais que possa ultrapassar conteúdos científicos e tecnológicos, incorporando discussões mais amplas norteadas por questionamentos no campo da insustentabilidade do modelo de crescimento econômico. Assim como deve-se admitir que o grau de desenvolvimento de uma sociedade não pode ser visto apenas pela ótica da economia. Conforme aponta Cechin (2010), trata-se de um processo que precisa comportar interações de homens com o meio no empenho de efetivarem suas potencialidades para satisfazerem suas necessidades e renovarem suas aspirações.

Sabe-se que muitos dos confortos e prosperidades valorizadas pela civilização industrial e usufruídos principalmente pelas pessoas dos países ricos foram provenientes da energia solar estocada, em forma de carbono, nos combustíveis fósseis, e cuja exaustiva combustão tem implicado em graves danos ambientais. Assim como explica Rist (2012), se cada habitante do Sul se animar a consumir tanto quanto os habitantes do Norte, certamente, será catastrófico em razão do planeta já estar bastante adoecido.

O aumento do fluxo de energia e de materiais (o metabolismo social das economias avançadas) gerou um custo social e ambiental elevado que será pago não apenas pelas gerações futuras, mas também, e desde já, pela geração atual. Existem enormes desigualdades no mundo, entre o Norte e o Sul, mas também no interior do Norte e do Sul. Algumas pessoas consomem 250 gigajoules de energia por ano; outras vivem com menos de 10 gigajoules de energia, no cálculo das quais entra a energia fornecida pela alimentação e, também, pela madeira ou esterco seco utilizado para cozinhar. Para não mudar nada nesta distribuição ainda tão ecologicamente desigual do acesso aos recursos, para manter como estão as desigualdades na eliminação do lixo (incluindo a desigualdade de acesso aos lugares de sequestro de CO2), a classe dominante exerce seu poder, um poder às vezes dissimulado nas relações de mercado e nos direitos de propriedade injustos. (MARTÍNEZ-ALIER, 2012, p. 68). Destarte, entende-se que o debate no ensino de matriz energética sobre injustiças sociais e ambientais no contexto do consumo de energia e de materiais não pode permanecer silenciado. Até mesmo em razão de que esse ensino pode acabar reforçando concepções

vinculadas à neutralidade da CT (AULER; DELIZOICOV, 2001) balizadoras de um modelo de crescimento ilimitado que ignora limites entrópicos (GEORGESCU-ROEGEN, 1971).

De acordo com Bonaiuti (2012), por mais que ninguém negue a existência de uma crise global, faz-se de tudo para convencer cidadãos e instituições que esta, como muitas outras do passado, não passa de uma crise conjuntural: “logo o ciclone passará e se retomará

a navegação como se nada tivesse acontecido, guiados por uma nova onda de crescimento”

(BONAIUTI, 2012, p. 79).

Por outro lado, Veiga e Issberner (2012) acentuam que a aposta em tirar vantagens da inovação científica e tecnológica não reduz a pressão absoluta sobre os recursos naturais; vez que a poupança resultante da eficiência energética acaba sendo empregada em outros bens e serviços que geram mais aumento no consumo.

Se mesmo as economias mais ecoeficientes continuam a aumentar a pressão sobre os recursos naturais, só pode ser por causa de um aumento de seu tamanho que mais do que compensa os ganhos obtidos pelo descolamento relativo. Em termos mais diretos: por causa do crescimento dessas economias. (VEIGA; ISSBERNER, 2012, p. 117).

Cechin (2010) critica que esse crescimento é visto como um fim em si mesmo, é reivindicado sem ser qualificado e sem reconhecer fragilidades em sua própria medida oficial (PIB) como indicador de riqueza.

O PIB como indicador de crescimento econômico não esclarece o que cresceu, como cresceu e para quem foram os frutos do crescimento. Além disso, esse indicador não pode ser uma boa medida da riqueza, pois está relacionada a estoques, enquanto o PIB mede fluxos monetários. Isso significa que pode haver crescimento com diminuição da riqueza se esse crescimento ocorrer, por exemplo, à custa da depredação de florestas inteiras ou dos depósitos de petróleo que demoraram milhões de anos para se formarem. Assim, uma das mudanças institucionais mais importantes e mais urgentes é o abandono do PIB como indicador de bem-estar e progresso das sociedades. Esse indicador acaba se tornando fonte de informações equivocadas e por isso leva agentes econômicos a tomarem decisões erradas na perspectiva do bem-estar social. (CECHIN, 2010, p. 178).

Grande parte do crescimento na produção e consumo de bens materiais que ainda persiste, mormente nas grandes economias, comporta fluxos de matéria-prima e energia que geram muitos conflitos sociais e impactos negativos sobre a cultura e o meio ambiente nos territórios explorados (BONAIUTI, 2012). Porém, é equívoco ignorar a dependência do sistema econômico em relação à biosfera, mormente, em razão do processo produtivo implicar elevada degradação dos recursos naturais (VEIGA; ISSBERNER, 2012).

Para Cechin (2010), outros custos como aqueles relativos, por exemplo, aos serviços prestados pela natureza, precisariam ser integrados aos bens produzidos, pois apesar de não

suscetíveis à precificação, são de extrema importância para a manutenção da vida. Assim, no emaranhado de relações depredatórias homem-planeta, o que se põe em risco não é o planeta, mas a própria extinção da espécie humana; visto que a Terra continuará existindo mesmo com todas possíveis catástrofes ambientais.

Diante dessas considerações, assume-se que um ensino de matriz energética na perspectiva crítica de educação CTS é aquele que tem um compromisso de articular com os estudantes reflexões, para além de uma descarbonização das matrizes, em oposição à crescente demanda por energia imposta pelo crescimento econômico generalizado, que se mostra, por demais, insuportável e carrega consigo graves prejuízos socioambientais. Nesse sentido, o debate sobre a temática matriz energética deve reclamar, sobretudo, por mudanças nos modelos de ciência, de tecnologia, e de sociedade; em prol da reorganização da estrutura científica e tecnológica, dos espaços urbanos, do aparelho produtivo, da durabilidade de produtos, da melhor manutenção de infraestruturas e, principalmente, com rejeição ao consumismo. Portanto, a questão não é tanto em termos de pensar sobre desenvolvimento de novas tecnologias de energia menos poluente e renovável, mas, sobretudo, em reconhecer a relevância de se reestruturar os modos de viver em sociedade, com vistas a proporcionar condições de vida dignas para as gerações de hoje e do futuro.

2.6 Síntese e assunções

Hoje, quando se fala de objetivos e do sentido do ensino de Ciências, geralmente se faz também referência às tecnologias. Contudo, em muitos sistemas de ensino de países industrializados não há praticamente nenhuma formação séria em tecnologias. O ensino de Ciências limita-se às Ciências Naturais, aquelas cujos objetos são supostamente “naturais”. As Ciências, diz-se então, estudam a “natureza” (mas evita-se seguidamente com cuidado precisar o que envolve esta palavra). É nesta perspectiva que os objetos das Ciências são definidos eliminando tudo o que faz referência ao humano e às finalidades humanas: são as Ciências Naturais. Ora, o mundo dos alunos não é absolutamente este “mundo natural”. Eles vivem em uma tecno-natureza. O que a princípio faz sentido para eles, não é o mundo desencarnado dos cientistas, mas a natureza tal como ela existe no seio de um universo de finalidades. Isto a que são confrontados os alunos são situações em que tecnologias e natureza estão articuladas, em um universo de finalidades. (FOUREZ, 2003, p. 119).

À vista disso, cumpre-se, neste capítulo, o propósito de sublinhar relevante demarcação conceitual ao ensino de matriz energética em uma perspectiva crítica de educação

CTS, contendo importantes aportes teóricos, de caráter crítico, fundados em Paulo Freire e no PLACTS. Nessa direção, contrapõe-se tanto à concepção de um presente bem-comportado como de um futuro pré-dado (FREIRE, 1982); em que alguns julgam-se autorizados a impor a outros uma lógica de modelos de pesquisa e desenvolvimento inadequados (DAGNINO; THOMAS; DAVYT, 1996), proibindo que sejam sujeitos de sua própria história.

Nesse cenário, deve-se reconhecer que há uma premissa implícita no discurso da “qualidade total”, com um forte viés lucrativo do modelo econômico vigente, dissimulado por falsos discursos de busca pela perfeição de produtos para oferecer ao cliente prazer, satisfação e felicidade (CABRAL NETO; SILVA, 2001). Tal discurso, contudo, tem se materializado, cada vez mais, enquanto modo de gestão tecnológica, como verdadeiro paradigma de manutenção de instâncias tecnocráticas que controlam a sociedade.

Conceber os homens como objetos implica aliená-los de suas decisões, muitas vezes, transferidas a outros. É diante disso que, em concordância com Freire (1982), no lugar de uma prática bancária, anti-dialógica, dominadora e imobilista, que desconhece os homens como seres históricos, reclama-se por uma educação insistentemente problematizadora, dialógica, empenhada em desvelar/desmitificar a realidade e que seja comprometida com a libertação.

Igualmente, espera-se que pesquisadores/educadores envolvidos com o ensino de matriz energética não venham permanecer omissos, mormente na formação de professores da área de Ciências Naturais, em problematizar a referida temática na educação CTS, apontando para a insustentabilidade da ânsia irrefreiada pelo crescimento econômico, que gera elevada degradação de energia, desigualdades sociais e compromete a preservação da espécie humana no planeta.

Por todo exposto, presume-se imprescindível que novas práticas sejam, de algum modo, agregadas aos itinerários de cursos de formação de professores da área de Ciências Naturais; caso contrário, corre-se o risco de legitimar um ensino de matriz energética centrado em conceitos científicos, seguidos de ilustrações tecnológicas, que podem servir lamentavelmente para reforçar mitos em torno da neutralidade científica e tecnológica e do crescimento econômico ilimitado, induzindo concepções reducionistas de inter-relações CTS.

CAPÍTULO 3