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O ensino da gramática na escola

No documento 2018RosangelaHannel (páginas 101-107)

3.3 As diferentes concepções de gramática e as implicações para o ensino

3.3.2 O ensino da gramática na escola

Como vimos, não são recentes os estudos que se preocupam com o tratamento dado ao ensino de Língua Portuguesa na escola. Ao mesmo tempo, esses mesmos estudos provocam- nos a indagar: Que gramática estamos ensinando na escola? Ainda devemos ensiná-la? Que gramática é preciso oferecer ao aluno? Como ensiná-la?

No que se refere à primeira questão “que gramática estamos ensinando na escola, estudos mostram que ainda se prioriza o ensino de uma gramática descontextualizada, mecânica, de classificação e de memorização de definições, contrapondo-se ao que propõem os documentos oficiais e aos estudos acadêmicos sobre o ensino da língua na escola. Sobre como tem sido o ensino de gramática nas escolas, seja no ensino fundamental, seja no ensino médio, Travaglia (2006) acentua que:

O ensino de gramática em nossas escolas tem sido primordialmente prescritivo, apegando-se a regras de gramática normativa que, como vimos, são estabelecidas pela tradição literária clássica, da qual é tirada a maioria dos exemplos. Tais regras e exemplos são repetidos anos a fio como formas ‘corretas’ e ‘boas’ a serem imitadas na expressão do pensamento. [...] Observa-se também uma concentração muito grande no uso de metalinguagem no ensino de gramática teórica para a identificação e classificação de categorias, relações e funções de elementos linguísticos, o que caracteriza um ensino descritivo, embora baseado, com frequência, em descrições de qualidade questionável (TRAVAGLIA, 2006, p.101).

Antunes (2003) afirma que o estudo da gramática na escola é o ensino de

[...] uma gramática voltada para a nomenclatura e a classificação das unidades; portanto, uma gramática dos “nomes” das unidades, das classes e das subclasses dessas unidades (e não das regras de seus usos). Pelos limites estreitos dessa gramática, o que se pode desenvolver nos alunos é apenas a capacidade de ‘reconhecer’ as unidades e de nomeá-las corretamente (ANTUNES, 2003, p.32).

Essa abordagem apresenta um conjunto de regras relativamente explícitas e coerentes que, se dominadas, poderão produzir, como efeito, o emprego da variedade padrão oral ou escrita (POSSENTI, 2006, p.64). Com isso, segundo Possenti (2006), cria-se a falsa ideia de que memorizar definições e regras é aprender gramática. Esse fato provoca um afastamento de propostas didáticas inovadoras, já que se acredita ser desnecessário estudar gramática, pois tal estudo pode não levar a benefício algum, criando, assim, falsas concepções sobre o que seja, de fato, o ensino da gramática.

Neves (2015) denuncia esse quadro pelo fato de dar origem a certo descrédito por parte de muitos professores e estudiosos da língua em relação à importância de estudar a gramática na escola, já que, dessa forma, é entendida como um simples conjunto de regras que precisa ser memorizado para aprender a língua padrão e, consequentemente, ler e escrever corretamente.

Em relação à segunda problemática - devemos ensinar gramática na escola? -, consideramos fundamentais as contribuições de Perini (2010). Para ele, o estudo da gramática na escola deve ser presente, porque a gramática é uma disciplina científica, “tal como a astronomia, a química, a história ou a geografia”, e “ela deve ser estudada como parte da formação científica dos alunos – formação essa que se torna cada vez mais indispensável ao cidadão do século XXI” (PERINI, 2010, p.18).

[...] a escola não tem como função única a preparação de jovens para eventuais carreiras profissionais. A escola – ou melhor, a educação tem objetivos muito mais amplos e muito mais importantes para a comunidade e para seus membros. Existem disciplinas de valor prático imediato (a leitura, elementos de matemática, a escrita). Mas existem disciplinas que formam um componente, digamos ‘cultural’, e cuja presença no currículo ninguém pensaria em questionar: a geografia, a biologia, a história, a física, etc. Cada uma dessas disciplinas pode vir a ser útil para alguns alunos, mas apenas para uma minoria. São elas que baseiam a alfabetização científica a que me refiro neste capítulo. E é entre elas que a gramática encontra (ou vai ter que encontrar) o seu lugar (PERINI, 2010, p.38).

Para o autor, não se deve estudar gramática na escola para que isso leve obrigatoriamente a mudanças no formato e na qualidade dos textos que as crianças produzem, mas porque a gramática estuda aspectos da linguagem, “um fenômeno tão presente em nossas

vidas quanto os seres vivos ou os elementos químicos” (PERINI, 2010, p.35). O autor ainda pontua que “o conhecimento de uma língua é uma parte do nosso conhecimento do mundo, programado no nosso cérebro, e acessível à observação através do comportamento e dos julgamentos dos falantes”. Por isso, Perini (2010) salienta que a gramática é uma disciplina científica, pois tem, como finalidade, o estudo, a descrição e a explicação de fenômenos do mundo real (PERINI, 2010, p. 36), assim sendo, “é uma disciplina que estimula o pensamento, a reflexão e a observação cuidadosa do funcionamento da língua”. Por isso, esperar que o “estudo da gramática possibilite alguém a ler ou escrever melhor é como esperar que o estudo da fisiologia melhore a digestão das pessoas” (2010, p.18). Para ele, “a gramática não esgota nem o estudo da língua, nem o da comunicação humana; mas é um ingrediente fundamental dela”. Essa perspectiva assemelha-se à de Neves (2012), segundo quem a gramática é uma disciplina que estimula o pensamento, a reflexão e a observação. Com base nisso, ela desafia a escola:

Não seria o caso de – em primeiro lugar – a escola (exatamente a escola) começar a mostrar àqueles que estão se formando para a sociedade que não é só nas aulas de matemática, física, química que o aluno tem de pensar? Que são especialmente nas aulas de língua pátria que têm de ser baseadas em atividades reflexivas, porque nelas está a porta - e a chave da porta – de tudo? Que é por elas que o falante vai chegar a saber, realmente, definir melhor suas pendências, escapando da angústia de passar a vida tentando resolver pendências falsas (por exemplo, as de adequação a uma etérea “norma”)? Que na explicação da gramática está o exercício fundamental sobre o cálculo da produção de sentido da linguagem (que é o que resolve todas as pendências de todos os ramos do conhecimento)? (NEVES, 2012, p.194-195).

Assim como em outras disciplinas, os estudos gramaticais exigem uma nomenclatura específica, já que, como necessário ao pensamento científico, é preciso nomear os fenômenos quando nos referimos a eles. Por outro lado, não é a memorização de termos que nos garante a apropriação de conceitos. Possenti (2006) define, assim, a sua posição face à questão de usar ou não nomenclatura nas aulas de português:

Eu sugeriria que se falasse normalmente em concordância, em verbo, em sujeito, em pronome, em plural etc., sem que a terminologia fosse cobrada, de forma que, eventualmente, ela passasse a ser dominada como decorrência de seu uso ativo, e não através de listas de definições. (POSSENTI, 2006, p.90).

De acordo com Camps (1988, p. 103), em nenhum momento, devemos “fugir” ao uso da terminologia gramatical que será necessária para falar dos fatos da língua que a criança observa, mas é preciso cuidado e não abusar do uso desses termos, pois é necessário ter

prudência com as definições a serem oferecidas às crianças. Uma proposta, segundo a autora, seria o uso progressivo dessa terminologia técnica, que parta de uma definição semântica implícita para ser seguida de uma definição funcional, para, finalmente, chegar a uma definição formal (CAMPS, 1988, p. 104). Para Camps (1988), as crianças, nos anos iniciais do ensino fundamental, precisam começar a adquirir uma terminologia gramatical mínima que lhes permita falar sobre a língua que usam e organizar as observações que fazem sobre ela.

Ressaltamos que, com base na proposta didática que elaboramos para explorar o ensino da gramática com as crianças do 4° (quarto) ano, o uso de nomenclaturas está presente, sejam elas mobilizadas pela professora ou pelas crianças. Temos clareza de que, não obstante, considerando o nível de ensino em que as crianças encontram-se, as definições das crianças ainda serão inconsistentes e são provisórias. No entanto, o uso das terminologias deve auxiliar na compreensão e na sistematização dos conhecimentos que estão construindo sobre a língua. Além disso, o emprego de terminologias deve dar-se em decorrência de um processo ativo e reflexivo das crianças sobre a língua e não como resultado de definições formais, sejam elas apresentadas pela professora ou pelo material didático.

A respeito da indagação que gramática é preciso oferecer ao aluno, Neves (2015, p. 22) pondera que “a natureza da gramática que se defende para o uso escolar é, pois, a de uma gramática não desvinculada dos processos de constituição do enunciado, ou seja, dirigida para a observação da produção linguística operada”. Por isso, frisamos que não se pode abdicar da importância da gramática escolar numa perspectiva de reflexão sobre a linguagem, considerando as variações linguísticas, inclusive, a língua-padrão. Neste sentido, Neves (2015) assinala:

Sob pena de perder toda legitimidade, a disciplina gramatical escolar não pode alhear- se do real funcionamento da linguagem, e limitar-se ao oferecimento de um simples mapa taxonômico de categorias, definidas em planos isolados; fica instituída a legitimação do tratamento da língua-padrão, já que é real a necessidade de os cidadãos adequarem seus enunciados aos diferentes contextos socioculturais de interação (NEVES, 2015, p.123).

Possenti (2006) entende que a escola não pode privilegiar apenas a variante padrão, porque ela é uma das variedades de uma língua e dá conta de apenas um subconjunto dos fatos de uma língua. Ele critica o fato de a escola considerar a gramática normativa como, praticamente, a única que pode ser objeto de estudo na escola, inclusive, com uma postura preconceituosa em relação às outras manifestações linguísticas. Porém, o autor não exclui o

ensino da gramática normativa da escola. Para ele, a escola deve considerar o conhecimento linguístico que a criança possui – a gramática internalizada - e, a partir disso, ampliar os seus conhecimentos sobre a língua. O estudioso entende que a escola tem o compromisso de colocar as crianças em contato constante com a variedade padrão da língua e frisa, ainda, que a tarefa da criança que aprende a língua e a do linguista que descreve e explica o funcionamento da língua é semelhante, assim sendo, em ambos os casos, “é essencial uma vivência profunda, ainda que intuitiva, dos dados da língua” (POSSENTI, 2006, p.85). Neste sentido, o autor salienta que é necessário expor o aluno a experiências linguísticas que o obriguem a viver a variedade que se quer que ele aprenda, neste caso, a norma padrão. Segundo o linguista, qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico (POSSENTI, 2006, p.17).

De modo semelhante, Franchi (2006, p. 32) considera a possibilidade de não se excluir o aprendizado da gramática normativa na escola, já que se trata de uma “ciência de um aspecto da linguagem” e que isso permite ao estudante transitar por uma área de investigação e de conhecimento que poderá ou não lhe persuadir para uma atividade futura. Já, para Neves (2015, p. 157), “a escola é o foro institucionalmente preparado para colocar os falantes nas situações de uso prestigiado da língua e isso tem de ser feito dentro do princípio de que a norma padrão é um uso linguístico e tão natural e legítimo quanto qualquer outro [...]”.

Por isso, considerando a importância de não apenas saber usar a língua, mas também a relevância de tomarmos consciência das escolhas linguísticas que fazemos, bem como da capacidade reflexiva das crianças, que já operam com a língua desde os primeiros anos de vida, é importante refletir sobre o ensino da gramática numa perspectiva de oportunizar reflexões conscientes, não apenas dos fatos linguísticos, mas também das estruturas que compõem os enunciados linguísticos, desenvolvendo, portanto, atividades de reflexão metalinguísticas, tornando, assim, o ensino da gramática mais produtivo e menos prescritivo. Neves (2012) corrobora a nossa discussão, apontando também:

A gramática que vai à escola não pode descaracterizar-se por uma inocente aceitação de que simples receitas e rótulos serão mais fáceis de digerir do que fundas reflexões que revelam a verdadeira natureza da linguagem, a qual, necessariamente é complexa (NEVES, 2012, p.192).

Em relação à inquietação “como ensinar gramática na escola”, observamos, no estado do conhecimento que produzimos, o aspecto lacunar de pesquisas sobre propostas de inovação para o ensino da gramática. Considerando os limites do ensino tradicional da gramática, Ferrer e Zayas (2004) afirmam que é frequente a demanda por uma gramática pedagógica, que possa

servir como programação para os conteúdos gramaticais, com base em um enfoque de reflexão gramatical e de uso da língua, sem que se limite a descrever as formas linguísticas que faz uso a escola, mas que mostre para que servem e como as utilizam em diferentes usos sociais da língua.

Neves (2015) também entende que deve existir uma relação entre a reflexão gramatical e o uso que fazemos da língua. As aulas de língua, para a autora, devem ser baseadas em atividades reflexivas, pois, na explicação do funcionamento da gramática, está o exercício fundamental para dar sentido à linguagem que fazemos uso. Por isso, o tratamento da gramática deve estar assentado na reflexão sobre o funcionamento da linguagem, refletindo sobre as relações naturais entre as diversas modalidades de desempenho linguístico, seja na modalidade oral ou escrita, seja no aspecto coloquial ou culto.

Assim como para Ferrer e Zayas (2004), Neves (2015) também acredita que privilegiar a reflexão é exatamente preconizar um tratamento da gramática que vise ao uso linguístico. Para a autora, conduzindo na reflexão sobre o uso da linguagem, o falante comum poderá orientar-se para a utilização eficiente dos recursos do processamento discursivo e, a partir disso, chegar a uma sistematização dos fatos da língua legitimada pelo efetivo funcionamento da linguagem (NEVES, 2015, p.115). Além disso, Neves (2015) assinala que a gramática não deve desvincular-se do funcionamento da língua, considerando a existência de uma língua padrão e a necessidade de os sujeitos adequarem os seus discursos aos diferentes contextos comunicativos.

Para Camps (1988), nesse espaço, avança um novo conceito de gramática, a “gramática didática ou pedagógica”: “la gramàtica didàctica o pedagógica, a mig entre la intuitiva (implícita) i l’analìtica (científica), destinada a l’ensenyament de conceptes i d’habilitats que podem anomenar-se, genericamente, gramaticals”36. Ainda para Camps (1988), essa gramática “té com a objectiu uma descripció explícita global, coherent i econômica dels fets linguistcs, em relació amb l’us de la llengua per a la comunicació i per l’expressió oral i escrita37 (1988, p.42), ou seja, o objetivo da gramática didática ou pedagógica deve ser o de favorecer ao aluno o domínio de todos os recursos de sua língua para expressar-se e comunicar-se adequadamente, considerando as situações comunicativas das quais ele participa. Nesse contexto, entende-se a

36 A gramática didática ou pedagógica, entre intuitiva (implícita) e analítica (científica), destinada a ensinar

conceitos e habilidades que podem ser denominados genericamente gramaticais. (Tradução nossa).

37 "(...) tem como objetivo uma descrição explícita, global, coerente e econômica dos fatos linguísticos, em relação

gramática não apenas a partir do uso das estruturas, mas também com vistas à reflexão sobre essas estruturas (CAMPS, 1988, p.43).

No documento 2018RosangelaHannel (páginas 101-107)