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2. Os mal-entendidos interculturais

2.1. O entendimento dos mal-entendidos

Os autores defendem a idéia de que para se eliminar, evitar ou reconhecer mal- entendidos é necessário que se estabeleça um "campo de referência" que permita checar as condições de entendimento entre falante e ouvinte. Tratar-se-ia esse campo de referência de "um conjunto de proposições que possibilitam definir uma referência clara para os enunciados numa comunicação", existindo, para isso, o ponto de vista de quem fala (chamado por eles de perspectiva dêitica) e o ponto de vista de quem "guia" (perspectiva intrínseca). Embora a investigação seja feita numa perspectiva espacial, buscando entender como funcionam os mal-entendidos nesse âmbito em diferentes faixas etárias, os autores sugerem que o mesmo se dá em relação a jogos ou à argumentação, sendo necessário, também nesses casos, que campos de referência sejam definidos. Segundo o que afirmam os pesquisadores, um mal-entendido aparecerá sempre que os parceiros da interação partirem da idéia de que se apóiam num campo de referência que, na verdade, não se estabeleceu. Isso significa que o ouvinte interpreta a afirmação do falante baseando-se num campo de referência que não foi o pretendido pelo falante.

Weissenborn e Stralka (op. cit.) afirmam, assim, ser necessário desenvolver a capacidade de construir e de usar campos de referência coerentes e coesos no contexto, com o objetivo orientado para a interação verbal. A partir de um experimento baseado em duas maquetes de madeira, simétricas e tridimensionais, de uma pequena cidade e com grupos pertencentes a faixas etárias que variavam de 9 até 14 anos, além de um grupo de adultos, os autores diferenciaram quatro estágios de comportamento em relação ao mal-entendido: a ilusão do entendimento; a tematização do mal-entendido; o entendimento dos mal-entendidos e a antecipação dos mal-entendidos.

Para eles, a ilusão do entendimento acontece quando há, por parte dos parceiros da interação, uma forte dependência da percepção (intuição em ação). Parece aí que o ouvinte

sempre se satisfaz com a afirmação de quem descreve, quando ele consegue ligar qualquer elemento de seu campo de percepção (intuitivo) com essa afirmação. Ao conseguir aplicar as instruções de quem fala num espaço livre de interpretação, aleatoriamente, os mal-entendidos não são percebidos. Ele, o mal-entendido, só aparece, então, quando a descrição não pode ser mais executada pelo ouvinte.

A tematização do mal-entendido, por sua vez, como um estágio mais avançado que o anterior, substitui a definição de campos ligados à percepção e sem perspectiva (espacial) pela representação hierárquica, guiada por perspectivas. Trata-se de situações que são orientadas por problematizações. Por causa de uma maior definição referencial, falante e ouvinte podem agora checar concordâncias e discordâncias, descortinado mal-entendidos. A deficiência desse estágio em relação aos próximos está no fato de que aqui não se consegue ainda construir na interação um campo de referência estável. O problema parece ser que a consciência da perspectiva não está à disposição nessas situações, como um método genérico para a coordenação explícita do campo de referência, mas apresenta um princípio implícito de auto- monitoramento das descrições.

O estágio denominado o entendimento dos mal-entendidos é caracterizado por outro lado, pela generalização e pela unificação das estratégias fundadas em perspectivas, para a construção de um campo de referência comum. Fica claro, nesta pesquisa, que os problemas de entendimento que surjam só podem ser resolvidos através de uma definição determinada das posições específicas dos participantes. Entretanto, os mal-entendidos que ainda não são eliminados nesta fase são resultado, como na fase anterior, de implicitude da perspectiva. Quem descreve, pressupõe que haja consenso sobre o sistema de referência utilizado. Nesse nível, o entendimento entre os parceiros da interação é menos ameaçado, porque quem descreve se baseia num campo de referência fixo. Essa perspectiva consistente simboliza para o ouvinte uma posição definitiva, que vale até que seja introduzida explicitamente uma outra definição.

Por fim, na antecipação de mal-entendidos, os parceiros definem desde o início, as diferentes perspectivas possíveis ou os campos de referência possíveis e fazem disso um campo de referência explícito. Além disso, usam perspectivas diferentes de forma simultânea (a dêitica e a intrínseca). A ordenação de um campo de referência, que foi introduzido através de concordância explícita, possibilita, para esse último nível, uma ação coordenada desde o início, que não oferece mais problemas não-solucionáveis, por haver um entendimento comum.

Entendemos, entretanto, serem necessárias readequações no que tange ao que Weissenborn e Stralka propõem como estágios de comportamento em relação a mal- entendidos, quando o foco é a interação em sala de aula. As noções sobre ilusão, tematização, entendimento e antecipação de mal-entendidos são muito bem elaboradas pelos autores, mas acreditamos que, principalmente em situações de interação intercultural em sala de aula, não se aplica a dimensão hierárquica estrita dos estágios por eles proposta.

Assim, parece razoável acreditar na possibilidade de haver uma ilusão de entendimento quando há, por parte dos sujeitos da interação, uma forte dependência da percepção (intuição em ação), situação em que, num espaço livre de interpretação, aleatoriamente, os mal-entendidos não são percebidos. Parece razoável também defender a idéia de que possa haver situações em que há a tematização do mal-entendido. Tratam-se de situações que são orientadas por problematizações. Por causa de uma maior definição referencial, falante e ouvinte podem checar concordâncias e discordâncias, descortinando mal-entendidos. Em situações outras, parece também razoável aplicar a noção de entendimento dos mal-entendidos, que é caracterizada pela generalização e pela unificação das estratégias fundadas em perspectivas, para a construção de um campo de referência comum. Nesse âmbito, o entendimento entre os sujeitos da interação é menos ameaçado, porque eles se baseiam num campo de referência fixo. Por fim, mostra-se bastante coerente a idéia de que, através do estabelecimento de campos de referência definidos explicitamente

desde o início da interação, os mal-entendidos podem ser antecipados. Situações de contato menos familiares poderiam desencadear ilusões de entendimento entre os sujeitos da interação intercultural. A tematização e o entendimento dos mal-entendidos se fundariam, por sua vez, em situações de maior familiaridade, em que campos de referência tenham sido inadequadamente estabelecidos. Mas daí a afirmar que esses seriam estágios progressivos ligados a mal-entendidos é algo muito pouco consistente, especialmente quando se está no âmbito das interações interculturais em sala de aula bilíngüe. Casos haveria também, é provável, em que mais apropriadamente se poderia falar em estágios, quando, por exemplo, se tratassem de sujeitos de vivências culturais situadas em extremidades absolutamente opostas de um mesmo continuum cultural, mas seriam casos isolados.

Entendemos, ainda, com base nos postulados da AD20

, que é impossível cercar todos os sentidos, sendo exatamente por isso que o mal-entendido ocorre, entre falantes praticando a língua materna, e mais ainda, entre falantes praticando a língua estrangeira. Assim, em sala de aula, dadas as relações de poder entre professor e alunos, cabe ao primeiro evidenciar os possíveis mal-entendidos, talvez prevê-los e trabalhar com eles de maneira a não torná-los algo negativo. Se os mal-entendidos se dão por causa de diferentes interpretações do mundo, causadas por diferentes formações discursivas, e, portanto, culturais, o professor pode mostrar que há sempre diferentes interpretações possíveis.

Passemos, então a questões vinculadas ao tema alteridade cultural, investigando significados desse “outro” cultural, que incomoda, que nos atravessa e que é fonte e destino desses ditos mal-entendidos.

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