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3. Alteridade cultural

3.1. O estranho na rede do entendimento

Ao mapear as tendências acadêmicas dos trabalhos sobre o que seja esse Outro — o Estranho, Waldenfels (1999) mostra que há polarização entre os contextualistas e os culturalistas, por uma via, e os universalistas, por outra. Ele critica textualmente ponderações ao estilo de Bhabha (op. cit.), quando diz que “não faltam tentativas de amolecer as fronteiras, mas posições precisam ser tomadas”. Para explicar as posições desses partidos, ele diz que, de um lado encontram-se o que chama de “neo-aristotélicos” — que observam de um ângulo

continental e dão ênfase à contextualidade do entendimento e da comunicação e à multiplicidade nas formas de viver — e, do outro, os que denomina de “neo-kantianos” — que apelam para condições que não prevêem a contextualização do entendimento e da comunicação e que defendem, veementemente, a união das multiplicidades de formas de vida que se põem em concorrência. Segundo ele, os universalistas acusam os contextualistas de aceitar e de reconhecer o estranho, enquanto estranho, nas formas de canibalismo, de opressão de mulheres, nas ditaduras e crendices e de não impedir o terror das mentes fundamentalistas. Em contrapartida, os contextualistas replicam com o contra-argumento de que não existe uma medida universal e transcultural, porque medidas alternadas nascem e morrem com cada forma de vida e que o pretendido universalismo participou muito da destruição de culturas inteiras. Waldenfels (op. cit.) se põe ao lado dos contextualistas, mas diz que essa não é uma posição contra os universalistas, sendo necessário que as ponderações de ambos sejam levadas em conta e fazendo-se importante entender que as condições de ambas as partes têm suas limitações, mas que, efetivamente, só podem ser comparados alguns aspectos de um e outro mundo, de uma e outra tradição ou costume, com o que concordamos.

Entendemos, entretanto, que as ponderações efetuadas por Bhabha (2003)28 nos fornecem subsídios para afirmar que olhar a cultura-alvo a partir de questões da própria língua-cultura, se trabalhado dentro dos critérios por nós apresentados, não desencadeia uma visão estereotipada do outro. Ao contrário, a utilização de contos populares, que propomos como complementação de materiais para as aulas de língua, segundo o que vimos anteriormente com Revuz (1998)29, fomentaria um maior entendimento desse Outro, o Estranho, segundo as construções dos autores aqui trazidos.

28

Como já registramos na Introdução deste trabalho, Bhabha (2003) entende que, embora cada ato cultural signifique a possibilidade de fronteiras serem traçadas, essas, diferentemente de uma visão tradicional, se caracterizam pela sua fluidez. Para ele, existe uma flexibilidade das fronteiras, que permite o intercâmbio de elementos culturais, sendo que muitos deles vão sendo reelaborados a partir de novas construções de sentido e as marcas culturais vão sendo constantemente relativizadas, o que leva à reconfiguração das identidades culturais. 29

Que embora a relação com outras línguas — ou com variantes da língua materna — provoque uma experiência de estranhamento, em direção ao que é novo, ela também solicita as bases mais antigas da própria estrutura

Como última abordagem deste tópico, apresentamos as postulações de Bakhtin ([1979]2000) acerca do conceito de “exotopia”30. Antecipando e corroborando os raciocínios dos autores que aqui apresentamos, com alguns ajustes a serem feitos, esse autor russo de grande referência para os estudos lingüísticos pondera, na obra Estética da Criação Verbal, que é limitada a idéia de que para compreender melhor uma cultura alheia é necessário transplantar-se para ela. Segundo ele, devemos, sim, nos inserir na cultura alheia e procurar contemplar o mundo com os seus olhos, e isso seria uma fase indispensável no processo de compreensão cultural. Mas se a compreensão se reduzisse apenas a essa fase, diz Bakhtin (op. cit.), nada mais ofereceria senão uma duplicação da dada cultura, o que não traria nada de novo ou enriquecedor. Assim, “uma compreensão ativa não renuncia a si mesma, a seu próprio lugar no tempo, à sua cultura, e nada esquece” (p.366), assevera ele em sua investigação, registrando que “o importante no ato da compreensão é a exotopia do compreendente no tempo, no espaço, na cultura a respeito do que ele quer compreender” (p. 367). Exotopia aí é vista como um instrumento poderoso de compreensão, sendo que a cultura alheia só se revela em profundidade aos olhos de outra cultura — “e não se entrega em toda a sua plenitude, pois haverá outras culturas que virão e compreenderão ainda mais” (idem), pondera o autor. Nessa perspectiva, um sentido revela-se em sua profundidade ao encontrar e tocar outro sentido, um sentido alheio, isso porque se estabelece entre elas uma espécie de subjetiva; em outras palavras, daquilo que se sedimenta da sua própria história na singularidade do sujeito. Isso significa que a experiência de enunciação em novas línguas apela para a própria língua materna, que tece o inconsciente, além de reivindicar as memórias discursivas que constituem a nossa identidade cultural, mobilizando-a, questionando-a.

30

Marília Amorim, no artigo Cronotopo e exotopia, integrante do livro “Bakhtin e outros conceitos-chave”, coordenado pela Professora Beth Brait (2006), nos conta que a tradução da expressão em russo para o francês

exotopie foi proposta por Todorov, naquela que foi a primeira obra a sistematizar, para a Europa Ocidental, o

pensamento de Bakhtin. Talvez pela sua importância no trabalho de difusão e de introdução no Ocidente da obra de Bakhtin, diz a autora, a tradução de Todorov ficou consagrada. Alguns tradutores a criticam, pelo seu caráter estranho à língua portuguesa e mesmo ao idioma russo. Ela considera que, do ponto de vista do enunciado e não da língua, a expressão forjada por Todorov é bastante feliz, pois sintetiza o sentido que se produz na obra de Bakhtin, que é o de se situar em um lugar exterior. O texto de base para a idéia de um lugar exterior é O autor e

o herói, publicado na coletânea “Estética da Criação Verbal”. Tomando como base o princípio do retrato, em

pintura, para expor o significado do termo exotopia, e falando do retratado e do olhar do retratista, a autora mostra que o trabalho desse último consiste em dois movimentos. Primeiro o de tentar captar o olhar do outro, de tentar entender o que o outro olha, como o outro vê. Segundo, de retornar ao seu lugar, que é necessariamente exterior à vivência do retratado, para sintetizar ou totalizar o que vê, de acordo com seus valores, sua perspectiva, sua problemática (pp. 95-96).

diálogo que supera o caráter fechado e unívoco, inerente ao sentido e à cultura considerada isoladamente. Bakhtin (op. cit.) continua em seus raciocínios, dizendo que “formulamos a uma cultura alheia novas perguntas, que ela mesma não se formulava” (367). Com isso, buscamos nela respostas a perguntas nossas e a cultura alheia nos responde, revelando seus aspectos novos, suas profundidades novas de sentido. Um encontro dialógico de duas culturas não lhes acarreta a fusão, a confusão, adverte o pesquisador, sendo que cada uma delas conserva a sua própria unidade e sua totalidade aberta, mas se enriquecem mutuamente.

Guardadas as reservas temporais e atualizando o texto, por exemplo, com a advertência de Waldenfels (1999), de que não há a possibilidade de que aconteça, nos termos bakhtinianos acima referidos, “duplicação da cultura”, as postulações desse autor, que já são velhas no tempo, continuam muito atuais. O que fazemos neste trabalho, a partir de Revuz (1998), é propor o caminho de volta ao que Bakhtin propõe, quando diz que formulamos a uma cultura alheia novas perguntas, que ela mesma não se formulava e que buscamos nela respostas a perguntas nossas e a cultura alheia nos responde, revelando seus aspectos novos, suas profundidades novas de sentido. Neste trabalho, como vimos, reivindicamos que a experiência com novas línguas/culturas solicita as bases mais antigas da própria estrutura subjetiva; em outras palavras, daquilo que se sedimenta da sua própria história na singularidade do sujeito.